O LAGO DE CORUPUTUBA

A foto acima obtive em 1967 com a minha antiga Bieka. É o lago da Fazenda Coruputuba, em Pindamonhangaba.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Os Yoshinaga em Coruputuba


Amigo é coisa para se guardar
No lado esquerdo do peito
Mesmo que o tempo e a distância digam "não"
Fernando Brant e Milton Nascimento

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Fazenda Coruputuba, em Pindamonhangaba, 1958.

O quarto ano estava quase terminando e um acontecimento, feito um presságio, rondava o ar, entre as nuvens brancas que iam se encastelando no horizonte, por trás dos eucaliptos: quem vai ganhar a bolsa?

A Companhia Cícero Prado presenteava com uma bolsa de estudos o aluno que tirasse o diploma do primário em primeiro lugar. Naquele tempo, a conclusão do primário conferia um diploma, com cerimônia de entrega, com padrinhos, missa em ação de graças, festinha no galpão etc. O curso primário tinha terminalidade.

 Meu irmão José Pedro tinha conseguido o prêmio quatro anos antes, e já estava completando o ginásio na cidade. Apesar de ser gratuito o curso, pois o ginásio era estadual, havia muitas despesas envolvidas: transporte, uniforme, livros, cadernos e tudo o mais, que todos os pais sabem disso. Tudo precisava ser comprado, ainda não existia a noção de acesso democrático à educação, a escola nada fornecia, mas exigia tudo: sem material não entra, sem uniforme não entra, sem sapato preto não entra – e assim por diante.

Por isto, a bolsa ofertada pela Companhia era desejada por muitos, e disputada por poucos.  Meu irmão Luiz Gonzaga, dois anos antes, tinha obtido o segundo lugar na disputa, deixando de ganhar a bolsa, que ficou com o Anderson Balbo, mas o Zaga foi para o ginásio assim mesmo.

Agora, a esperança da família era que eu tirasse o primeiro lugar e pudesse continuar os estudos sem muito aperto para a família. Naquele ano, os professores comentavam que o primeiro lugar seria obtido ou por mim ou pelo Américo Yoshinaga, meu colega na classe do Professor Toninho Calixto.

Estudávamos de manhã, mas o Américo, à tarde, cursava o preparatório para a admissão ao ginásio. Nos exames finais disputamos as melhores notas prova por prova. E acabamos empatados em primeiro lugar. Nós dois empatados significava: metade da bolsa para cada um.

Esta era a minha expectativa, enquanto penteava o cabelo diante do espelho do bufê, exagerando na brilhantina. E era este o meu pensamento ainda, entrando no cinema lotado, de braço dado com a Shirley, minha madrinha, numa longa fila dupla de alunos e alunas, madrinhas e padrinhos, todos com a melhor roupa disponível. Minha irmã Ana Clara era a madrinha do meu amigo Adilson Rodrigues.

Bailados, cantos, danças, coreografias com borboletas de asas roxas, azuis, vermelhas... E eu esperando, sentado no cinema quentíssimo, esperando a metade da bolsa.

Chegado o momento supremo, o diretor da escola, Prof. Frederico, anunciou: dois alunos haviam lutado como leões para ganhar a bolsa – e terminaram empatados. Eu, um dos leões (e isto ia gerar mais um apelido irônico entre os irmãos), ficaria com a metade. A outra metade iria para o leão de olhinhos orientais, o Américo. Mas – prosseguiu o diretor – os pais do Américo, o Sr. Soichiro e a Dona Yae, haviam aberto mão de sua metade da bolsa, deixando-a toda para mim!

 Mais tarde, os professores me contaram que o Sr. Yoshinaga, agricultor na Vila Campineira, lhes dissera que o Américo iria estudar mesmo, de qualquer jeito, com ou sem a bolsa, e os Yoshinaga sabiam das dificuldades da minha família.

No ano seguinte à nossa formatura, os Yoshinaga mudaram-se de Pindamonhangaba e nunca mais os encontrei. A vida toda, nestes cinquenta anos, aguardei a oportunidade de um dia poder agradecer ao Américo a nobreza do gesto de seus pais. Quando se comemorou o centenário da imigração japonesa no Brasil, ajudei a organizar as festividades, como diretor da Cultura na cidade. Mas não obtinha notícias concretas dos Yoshinaga.

Agora, pela internet, reencontrei o Nelson e o Américo e, com eles, episódios de minha infância.

O nome dos Yoshinaga era pronunciado com respeito em minha casa. Nelson tinha sido colega de classe do Luiz Gonzaga. José Pedro tinha estudado com o Acácio e com os primos Daikichi e Setsuo. Papai, que reconhecia e valorizava nas pessoas o talento e a seriedade, tinha grande apreço pelos pais e pelos irmãos do Américo.  E um carinho especial pelo Renato, para quem dava aulas em nossa casa. Eram aulas enciclopédicas, de várias matérias.

Quando contei esta historinha na internet, recebi uma linda resposta do Nelson Yoshinaga:

Paulo:

Penso que nossa infância foi marcada pela felicidade de se morar num local tranquilo, numa época em que as pessoas tinham tempo de cultivar amizades e podiam dedicar-se umas às outras, conhecendo-as melhor. Sem ser saudosista, penso que foi uma época boa e talvez melhor que os dias atuais.

Hoje existe uma pressa quase neurótica que ceifa esse tipo de relacionamento e induz as pessoas a uma velocidade incompatível com relacionamentos como os de antes. Uma pressa que não leva a lugar nenhum nem eleva a produtividade, mas esteriliza as relações humanas conduzindo tudo a um solo semidesértico do isolamento.

Não só as casas se fecham atrás de pesadas grades, como as pessoas, em seus pequenos casulos - acreditando estar fazendo o melhor. Penso que não...

Fiquei muito contente de poder encontrar pela internet esta comunidade virtual onde estão algumas pessoas, relatos e fotos de um tempo passado, mas que são nossas raízes. Sem elas, não teria um passado nem origem. Conto a meus filhos sobre o passado em Pindamonhangaba e agora posso mostrar-lhes como foi essa época - ou ao menos dar-lhes uma ideia.

Essa sua gratidão, caro Paulo, é um sentimento dos mais nobres e dignos das grandes pessoas. É conveniente, contudo, esclarecer que o sucesso profissional - seu e de seus irmãos, se deve ao exemplo de dignidade que foi o professor Marcondes, o melhor exemplo de como a Educação forma e impulsiona as pessoas nas carreiras que escolheram.

Olhando o passado, vejo que fomos todos pobres, mas tivemos força de vontade, tenacidade e muita fibra - o suficiente para podermos galgar o caminho do bem e nos formarmos para ser úteis à mesma sociedade que paga e mantém as escolas. Podemos assim devolver o que recebemos, em prol dessa mesma sociedade - sem o que toda nossa formação não teria o menor sentido.

Estou muito contente de reencontrá-lo e aparecerei aí em Pinda para revê-lo. Abraços.

Nelson


Em outra correspondência, Nelson me contou que a Família Yoshinaga é que sempre se sentia agradecida ao meu pai, Professor Francisco.  E explicou: o Renato, irmão mais velho, não podia frequentar escola regular devido a precoces problemas cardíacos. Assim, o Pai Yoshinaga foi conversar com o Pai Marcondes, ficando combinado que em minha casa o Renato teria aulas de todas as matérias, como se estivesse mesmo cursando o ginásio.

E assim aconteceu. Toda tarde meu pai lecionava para o Renato. Do quarto ou da varandinha do jardim, eu ouvia o respeitoso diálogo entre eles, as explicações de meu pai, as respostas ou a leitura do Renato, na sua voz rouca, cansada...

Meses depois, Renato faleceu. Mais alguns meses, meu pai também se foi. Restou a admiração entre as duas famílias.

Então, foi por isto que pude estudar. Procurei honrar o presente que recebi dos Yoshinaga. Sempre levei a sério os estudos, mas sempre me diverti muito estudando. A generosidade do Sr. Soichiro e da Dona Yae não foi em vão. Professor, advogado, poeta, artista plástico: sim, tenho do que humildemente me envaidecer. Mas meu orgulho maior é ser querido pelos meus professores e pelos meus alunos. Uma boa parte dessa construção eu devo aos Yoshinaga.
Americo Tomio Yoshinaga: Minha mãe Maria Tereza, em 1958, me dizia que os Yoshinaga gostavam tanto do Brasil, tinham tanta esperança em sua nova vida aqui, que quiseram colocar num dos filhos o nome do nosso continente.
• • •

Este é um capítulo do Livro “ACONTECEU NA ESCOLA”, de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes – Registro na Biblioteca Nacional n. 344.938 – 22.03.2005 – Todos os direitos reservados.

5 comentários:

  1. Adorei ler esse artigo, bons tempos aqueles, que nos trazem tantas lembranças boas, parabéns Paulo!

    ResponderExcluir
  2. Paulo, é emocionante esta sua história. A carta do Nelson também traz toda verdade em relação aos tempos vividos em "Coruputuba", que só é lembrado e relembrado por ter tido como habin=tantes pessoas como os Yoshinaga, os Marcondes, os Silva, os Rodrigues, os Durand, e todos os demais

    ResponderExcluir
  3. Luiz Carlos G. Silva29 de agosto de 2012 às 17:41

    Paulo, este seu relato me fez lembrar os bons tempos de Coruputuba que, como o Nelson Yoshinaga diz em sua carta, eram atempos em que os relacionamentos humanos eram mais valorizados. Também nos remete ao nosso Grupo Escolar Rural "antonio Bicudo Leme" seus professores (Toninho, Tomé, Maria Goulart e outros) e seus funcionários.
    Luiz Carlos G. Silva

    ResponderExcluir

  4. Trabalhei na fábrica de Coruputuba de 1972 a 1977, pude constatar que aquilo era mesmo um verdadeiro paraíso.

    ResponderExcluir