O LAGO DE CORUPUTUBA

A foto acima obtive em 1967 com a minha antiga Bieka. É o lago da Fazenda Coruputuba, em Pindamonhangaba.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Beira do lago


 O curiango é bobo, pensa que eu acredito que ele está machucado, sai arrastando a asa, piando. Coitado, quer que eu vá atrás dele, quer que eu pense que dá para pegá-lo enquanto ele se arrasta entre os troncos de eucalipto. Eu sei que ele está pensando no seu ninho, preocupado, tem medo de que eu pise nos seus ovinhos e fica fingindo que está machucado, que é uma presa fácil. Bem capaz! Se eu fosse um cão eu acreditava nele e ia querer pegá-lo, ele me levando cada vez para mais longe, até que de repente ele ia “sarar” e sair voando seu vôo de asas moles, deixando o cachorro com cara de bobo.
Mas quem se assustou comigo de verdade foi a capivara saindo da água do lago. Eu ali sentado, desempenhando meu papel de poeta, contemplando as águas, vendo as garças chegando para dormir na ilha... Então um latido no lago. Era a capivara pondo a cabeça para fora. E veio vindo, nadando. Chegou nos aguapés da beirada, saiu, água pingando dos bigodes, subiu na terra firme, vinha pela picada. Deu de cara comigo! Parou. Não saiu em disparada não, que ela tem a sua dignidade. Recuou, entrou de novo no lago e mergulhou! Sumiu! Foi aparecer lá no meio do lago, quase caminho da ilha.
A ilha barulhenta. Roncos dos pássaros todos. Garças e biguás, socós e seus parentes todos. E todos fazendo ninho nas árvores da ilha...  Ah! Mas lindo mesmo é ver a chegada.
Meia hora antes de escurecer, as garças abandonam a companhia dos bois, em todos os pastos do município. Lá do Borba, lá do Pinhão, do Goiabal, elas de repente se despedem dos bois e vacas, tomam um breve impulso, abrem as asas, ganham altura e vêm! Lá do Mandu, lá do Maçaim: até amanhã boizinhos!
Lá dos arrozais do Campo de Pesquisas, lá das plantações da Cruz Pequena, onde fisgaram rãzinhas e lambaris o dia todo... lá de longe elas surgem.
E vêm! Vêm nos vôos mais variados e interessantes. Umas em grandes grupos. Outras em turminhas de quatro ou cinco. De repente, uma vem sozinha. Algumas preferem os caminhos mais elevados, só baixam quase sobre a ilha, num mergulho e numa curva. Então espalmam as asas para a frente, baixam a cauda, erguem os pés e pousam nas árvores da ilha. E ficam lá, ralhando umas com as outras. Algumas gostam de voar os últimos quilômetros só em rasante. Sobre o lago passam como flechas quase à flor da água.
Um dia eu fiquei em pé sobre a barragem e elas tiveram que subir para me evitar. O vento estava contrário, percebi claramente que elas estavam cumprindo um forte trabalho ao voar. Até aquele dia eu pensava que voar, para elas, era esporte, diversão, rotina, coisa leve, um balé. Quando vi o malabarismo inesperado, elas subindo para não tirar rasante em cima de mim, umas passando pelo meio dos fios do poste, eu vi a carinha delas, os olhinhos, percebi a respiração, entendi o esforço, a tarefa de voar, o empenho, a seriedade no fazer as asas baterem...
Chegam por último as garças grandes, as imponentes pescadoras. Estas chegam quando já escureceu quase completamente.
E agora tudo acabou. A Prefeitura precisou esvaziar o lago do Haras, a barragem estava comprometida, podia (Deus nos livre!) podia de repente a barragem ceder e milhares de toneladas de água iam descer de repente, causando tragédias no Carangola, no Andrade... Então o lago foi esvaziado, para evitar os problemas. Agora o lago, seco, se encheu de mato. As garças foram embora, largaram seus ninhos. Elas não gostam de criar onde não se sentem seguras. E, sem a água em volta, elas iam ficar muito expostas. Foram embora, acho que foram aninhar em algum recanto na beira do Paraíba, sei lá. Sei que agora, de tardezinha, se eu puder vê-las voando, elas não estarão vindo na direção do Haras, mas estarão indo em direção contrária. Adeus bandos de garças!
As capivaras sumiram por aí. Teriam subido o riozinho, em direção à Serra da Quebra-Cangalha? Mas elas não gostam de água rasa, então não sei. Desceram o rio, em direção ao Paraíba? Pode ser. O mais certo é que tenham virado mistura na janta em algum dos bairros da beira do Ribeirão do Curtume...
O poeta ficou triste, parece que a poesia vazou igual à água do lago. Barragem rompida, tristeza, tanta água, tanto entardecer, luzes, asas... Os engenheiros não consultaram o poeta, foram decretando de cara: tem que esvaziar.
Mas o curiango, com ele ninguém mexe. Deve estar aninhando por aí mesmo, no meio dos eucaliptos, tapeando quem chega muito perto do ninho dele. Acho que nem reparou que o lago secou e as garças foram embora, a capivara sumiu.
Vai ver que ele até gostou, menos perigo de alguém pisar nos seus filhotes. Parou aquele negócio de ir gente escondido pescar no lago, ficar zanzando...
Parou aquele negócio de chegar um poeta na beira do lago. Parou aquele negócio de ficar de bobeira, olhando os bichinhos de Deus, os bichinhos ocupados na tarefinha de suas vidas pequenas. Ficar ali pensando que a paz daqueles momentos devia ser universal, envolvendo no seu manto todos os seres humanos, mas também todos os bichos, grandes e pequenos.
Desde os carneiros das várzeas do Tigre e do Eufrates até os bois e as garças do Vale do Rio Paraíba...
E, barragem rompida, a tristeza do poeta quer vazar de seus olhos...

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Conto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Premiado com o 2º lugar estadual no Mapa Cultural Paulista 2003-2004
Fotos:
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