O LAGO DE CORUPUTUBA

A foto acima obtive em 1967 com a minha antiga Bieka. É o lago da Fazenda Coruputuba, em Pindamonhangaba.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Não é preciso temer o trabalho



Desde os seis ou sete anos eu já participava da divisão das tarefas de casa. Havia uma escala envolvendo todos os irmãos, definindo a arrumação da casa, a lavagem das louças, a varrição do quintal, o trato das galinhas, o buscar água no Largo, buscar leite na fazenda, lenhar. 
Alguns anos depois, quando eu tinha uns quatorze anos, o rol foi ampliado porque chegaram o porco, a cabra, os coelhos – e tinham que ser tratados, era preciso cortar capim, construir os chiqueiros, os ranchos, os galinheiros, os pinteiros. Era preciso cuidar da horta, buscar esterco, misturar a terra, alinhar as leiras, preparar as sementeiras, fazer o transplante das mudas, gerenciar os pés de chuchu junto às cercas dos vizinhos. Pedi para Vovó e ela me ensinou a fazer arroz e feijão, aprendi a controlar o fogo no fogão a lenha, a bater bolos e preparar broas para aproveitar o calor do forno. 
Logo aprendi também a transformar os animais do quintal em saborosos pratos para a mesa da família. Fiquei hábil em todas as etapas, desde a matança até o preparo das carnes e miúdos. Estas tarefas eu as executava às vezes sozinho, outras vezes em dupla ou em trio com o Pedro (nas tarefas mais pesadas), ou com o Zaga, ou com o Bosco. Com o Carlos não tinha jeito, ele já trabalhava desde os quinze anos na Companhia: primeiro na Sacaria, depois no Escritório. A Ana Clara, também desde os quinze, trabalhava na Farmácia. As outras meninas eram muito pequenas ainda.
E eu me sentia feliz participando do esforço para manter o lar, além de estudar bastante para garantir o êxito na escola.
Aos quatorze anos dediquei minhas tardes, durante as férias escolares, para fazer trabalho voluntário no Ambulatório, preenchendo as fichas de atendimento médico aos moradores, para agilizar o trabalho do Dr. Lessa, do Dr. Caio, do Dr. Chiquinho. Assim, eu também ajudava a diminuir um pouquinho a carga de trabalho da Ana Clara.
E eu me sentia muito feliz, entrevistando os pacientes e preenchendo as fichas na salinha do Ambulatório, de costas para a janela que abria para o Escritório, onde trabalhava o meu irmão.
Quando estava na quarta série do ginásio – hoje seria a oitava série – fiz o curso de datilografia com a Dona Semíramis. No ano seguinte, com dezessete anos, cursava de manhã a Escola Normal (porque era um curso que ia me garantir emprego) e à tarde comecei a trabalhar na Associação Rural, em cima da Leiteria, no início da Av. Cel. Fernando Prestes. Meu trabalho era preencher as guias de recolhimento de impostos e fazer outros serviços para os fazendeiros associados, além de preparar os livros da entidade, redigir as atas e cuidar da correspondência. Cuidei pessoalmente das tramitações burocráticas para transformar a Associação em Sindicato Rural. Levei o Bosco para cuidar da limpeza do prédio e nós dois assumimos também a tarefa de misturar ração para os criadores de coelho, que tinham sido recentemente acolhidos pela Associação. O salão de reuniões, nessas tardes, ficava tomado de uma névoa verde: era o pó de alfafa que estávamos misturando com as farinhas e farelos de soja, de aveia, de arroz, de carne, de osso etc.
E eu me sentia feliz por estar convivendo com os fazendeiros, com o pessoal que cuidava de vacas, de boi, de arroz. Eu sentia que estava contribuindo para o sucesso da atividade de produzir alimentos para o país.
Quando completei vinte anos já estava lecionando para as crianças na escola de Coruputuba. Aos vinte e um, era professor de manhã, mas era metalúrgico à tarde e à noite, pois comecei a trabalhar na AISA. À meia-noite tocava a sirene de encerramento do turno, eu batia o cartão, montava na bicicleta e voltava para Coruputuba pelo meio dos eucaliptos. Às oito da manhã já estava na escola, dando aula até o meio-dia. Almoçava, estudava para o concurso que iria me efetivar como professor do Estado, pegava a bicicleta e às quinze horas já estava de novo sendo metalúrgico na fábrica. Aproveitava o intervalo da janta para jogar palitinho com os colegas, falar de futebol e aprender piadas que não poderiam ser repetidas na sala dos professores.
E eu me sentia muito feliz por estar trabalhando em dois segmentos diferentes da sociedade: a educação e a indústria. Nas duas atividades eu trabalhava direito e me sentia bem com os resultados.
Quando eu passava de noite pelo meio do eucaliptal, o curiango, deitado na beira do caminho, esperava que eu passasse e então erguia voo para me alcançar quase roçando a minha cabeça – e ia sentar-se de novo bem lá na frente. Então esperava novamente que eu passasse para de novo se levantar, me alcançar etc. É por isto que os roceiros chamam a este pássaro de mede-léguas. Quando ele passa sobre a cabeça dos caminhantes noturnos, alguns ficam amedrontados, pensam em almas do outro mundo. Mas o curiango dos eucaliptos não me dava medo, eu não tinha medo de assombração.
E nem de trabalho. Graças a Deus, eu nunca tive medo de trabalho. Nem eu, nem os meus irmãos.

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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto: alagoinhaipaumirim.blogspot.com

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Medo do diabo e outros medos


Fui até o fundo do quintal, que era bem fundo mesmo, batia no muro da fábrica. Estava escurecendo, hora de sereno, hora de "entrá pra dentro". No pau da cerca da divisa com o quintal do Seu Eurico (da Dona Eleuzina), tinha uma coisa de olhos arregalados, olhando firme para mim.
Voltei correndo e o Bosco estava brincando perto do galinheiro. Falei: “Bosco, tem um diabo trepado na cerca do Seu Eurico!” Ele não acreditou e foi lá ver. Eu fiquei vendo ele ir. Foi indo pelo caminho varridinho do meio do quintal. Daí ele parou, olhou para o lado que eu falei e voltou na disparada, branco mas branco mesmo. Falou: “É o diabo memo, Paulo!”
No dia seguinte (porque o sol deixa todo mundo valente) nós fomos lá perto, jogamos água benta na cerca e riscamos no chão uma cruz. Rezamos de montão, para o diabo não voltar mais lá. Mas eu sabia que era só uma coruja. Só que eu me assustei e queria que o Bosco também se assustasse, caramba!
Daí eu cresci mais um pouco, fiquei adolescente e resolvi perder o medo do escuro. Todos nós fomos criados com muito medo do diabo, de tanto que a gente vivia na igreja... Acho que os adultos falavam muito mais no diabo e no inferno do que em Deus e no céu. Para manter a criançada obediente, parece que tinha que manter o pavor.
Mas eu decidi que ia perder o medo do escuro e eu mesmo planejei a minha terapia. Uma noite, sem falar nada para ninguém, saí para o quintal, fechei a porta da cozinha e fui indo pelo meio da escuridão, com o plano de chegar até o muro da fábrica. Eram uns setenta metros de caminhada sem ver quase nada, só as estrelas. Passei pelas ameixeiras, pelo galinheiro, pelo abacateiro, tudo meio que adivinhando o caminho, tocando nos troncos e nas cercas. Até passar do chiqueiro e chegar no fim do quintal. Fiz força para tocar o muro com as mãos. E comecei a voltar. Agora eu via a luz da cozinha se filtrando pelo vão da porta. Tive que resistir à vontade de correr disparado. Esta foi de fato a parte mais difícil: voltar devagar. Cheguei à varandinha do tanque, empurrei calmamente a porta, entrei e – num supremo esforço – fechei a porta beeeeem devagarzinho.
E nunca mais tive medo do escuro. Depois de adulto, muitas vezes dormi acampado sozinho no meio da Mata Atlântica, na serra de Ubatuba – e sempre em paz.
Mas os adultos antigamente falavam muito no diabo, demais. Quando eu tinha dezessete anos, trabalhava na Associação Rural, em cima da leiteria (onde hoje fica a Imobiliária Derrico). Atendia os fazendeiros, preenchia guias de impostos etc. Um dia chegou o Seu Tranin, de bota e chapelão. Perguntei as horas para ele e ele me perguntou de volta: “Mais ocê qué sabê nas hora de Deus ou nas hora do diabo?”
É que o governo militar tinha acabado de implantar o horário de verão e ele não concordava com isto. Achava que mexer no horário de Deus só podia ser coisa de quem? Do diabo!
 

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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

Foto: avassouradabruxa.blogspot.com

terça-feira, 22 de maio de 2012

A morte no museu

Agora ele já não sabia como tinha ido parar ali. Lembrava-se da movimentação das pessoas, das conversas. De dia, tinha vagado pelas escadas e rampas, tinha descido até a horta e ficou um bom tempo na porta do Arquivo, até que lhe pediram que saísse dali.
Quase na hora de fechar, o Donizete insistiu que ele saísse – e ele foi de novo em direção à horta, mas o Donizete não reparou que ele deu um jeito e retornou. Ninguém percebeu que ele tinha voltado. Quando a porta da Biblioteca foi baixada, ele permaneceu atrás da Carruagem, imóvel e silencioso.
Disto ele agora se lembrava de um modo confuso. A fome de três dias, o frio e a solidão não permitiam que ele pensasse direito. Sabia que precisava sair dali – e gastava suas últimas forças procurando uma saída. A luz do sol, entrando pelo vitrô, dava-lhe uma ilusão de ar livre, parecia-lhe que já tinha alcançado a liberdade...
Agora a fraqueza já não permitia que ele tentasse achar a saída. Parou de se arrastar como tinha feito durante os dois primeiros dias, quando se movimentava meio desesperado entre a Carruagem e o Sino. Compreendeu que não ia encontrar nenhum alimento, nenhuma água. Compreendeu que os companheiros lá fora já tinham desistido de procurá-lo, se é que em algum momento tinham de fato se preocupado. Aliás, bem antes de ficar preso ali, já fazia tempo mesmo que não conversavam com ele, desde que começou a apresentar aquela dificuldade de locomoção.
Houve um momento em que ouviu as vozes dos antigos companheiros, mas estavam longe, falando de outros assuntos.
Vagamente compreendeu que não devia ter retornado à Biblioteca, devia ter obedecido o Donizete, devia ter se afastado. Mas não esperava que nunca mais retornassem aquelas pessoas, nunca mais viessem abrir a porta.
Quando terminou o feriado prolongado foi o Flávio que encontrou o corpo, frio e imóvel, entre a Moenda e o Sino Pequeno. O próprio Flávio o enterrou debaixo das árvores do quintal. O Donizete comentou com o Professor: “Coitado do pombinho, judiação, morreu de fome, de sede”. Mas o Professor comentou que no sábado, quando tentaram tocá-lo para longe da Biblioteca, ele já estava meio mancando, talvez estivesse doente, ou machucado.

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Texto e foto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes