O LAGO DE CORUPUTUBA

A foto acima obtive em 1967 com a minha antiga Bieka. É o lago da Fazenda Coruputuba, em Pindamonhangaba.

domingo, 28 de janeiro de 2018

Por onde passava o trem





Quem hoje passa pela Av. Dr. Francisco Lessa Júnior, a nossa “via expressa”, talvez não saiba que de primeiro o trem passava por ali. Isto antes da retificação da linha da Estrada de Ferro Central do Brasil na década de 1940. Com a retificação, vários trechos foram abandonados, mas seus vestígios permanecem.
Imagine um trem naquele tempo saindo da nossa Estação, indo em direção a São Paulo. Logo na passagem de nível da Rua Campos Salles, a linha já fazia uma curva fechada para a esquerda, tomando o rumo que falamos, da atual “via expressa”.
Puxa vida! Em 1970 ainda existia um trecho de linha, com trilhos, dormentes e tudo, no começo da “via expressa”. Terminava numa rampa destinada ao embarque de gado, acho que mais ou menos perto do atual depósito dos Correios.
O trem passava por trás da Igreja do Socorro, pegava a atual Rua Alcides Ramos Nogueira, que serve ao Shopping, ao Fórum, à Câmara e ao Real Ville. Nesse trecho, a ferrovia corria paralela à Estrada Velha e só se afastava para a direita na altura do final do Araretama, seguindo para Tremembé, atravessando o Rio Una por uma ponte no meio do mato.
Agora imagine o trem saindo da nossa Estação com destino ao Rio de Janeiro. No começo, ia seguindo o trajeto atual, passando nos fundos do Supermercado Maktub. Mas atrás do Sassaki já começava a se afastar para a direita. Hoje o leito abandonado virou rua: Rua Tribuna do Norte e, depois da rotatória do cemitério, Rua Francisco de Oliveira Linha, passando entre os dois cemitérios. Aliás o nome da rua foi dado em homenagem ao guarda da cancela, Sr. Francisco, que tinha o apelido de Chico Linha.
Então começava uma curva para a esquerda, atravessando a atual Av. Manoel César Ribeiro e atravessando o leito atual da ferrovia. Passava no espaço entre o terreno da Alcoa e o atual Castolira. Seguia pelos fundos da Sourcetech e começava uma enorme curva em “s”: entortava-se para o lado direito, cruzava em ângulo reto o traçado atual, entrava pelo terreno que hoje é da Confab e ali dentro iniciava a curva para a esquerda, aproximando-se de novo do traçado atual. Na ponte sobre o Rio Ipiranga já estava tudo certo e seguia para a Estação de Coruputuba sem maiores sustos.
Essa grande curva em “s” tinha o nome de Volta da Bananeira. Até ali chegavam os passeios que eu e meus irmãos fazíamos pelo meio dos eucaliptais quando morávamos em Coruputuba.

Pronto, agora pode acessar o Google Earth e conferir as marcas que o tempo antigo deixou no tempo moderno.

A “Volta da Bananeira” era uma dor de cabeça para os maquinistas da Central.

Nesse trecho, o trem precisava passar bem devagarzinho
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Seu Francisco Professor

Francisco Fonseca Marcondes aos 21 anos de idade. Foto datada de 23 de maio de 1935. Do álbum de Maria Clara Fonseca Marcondes.

Meu pai, o Professor Francisco Fonseca Marcondes, filho de Francisco Carlos Marcondes e Maria Clara Fonseca Marcondes e neto de José Pedro Marcondes, fazendeiros no bairro de Itapecerica em Taubaté, queria ser padre e estudou nos seminários até quase se ordenar. Quando faltavam dois anos para isto, ficou doente e teve que desistir do sacerdócio. Trabalhou na CTI e depois no Diocesano, até que o bispo decidiu que só padres podiam lecionar naquele colégio. Então, o Padre João, vigário em Pindamonhangaba, indicou papai para dar aulas em Coruputuba, para os funcionários da Companhia que precisavam completar os estudos.
Foi para Coruputuba no início de 1942, com a esposa Maria Tereza. Ele tinha vinte e oito anos, ela vinte, e tinham dois filhos. Primeiro, foram morar na Vila Tanque, vizinhos do Seu Alcides Sampaio. Seis anos depois, a família mudou-se para a Avenida Dr. Cícero Prado, a rua de entrada do bairro.
Papai era muito religioso. Ele que tinha a chave da Igreja, abria, trocava o azeite da lâmpada do Santíssimo, tocava os sinos, ajudava as missas. Ensinou os filhos a ajudar as missas, em latim.
Era um sábio. Eu vivia atrás dele, enquanto ele molhava os canteiros da horta: Pai, como que é casa em latim? E em alemão? E em francês? E em italiano?  Ele respondia com paciência, mas eu não guardava as respostas, só me interessavam as perguntas. Mas eu prestava muita atenção no jeito dele dar aula, explicar, tornar a explicar... Conhecia vários idiomas e dava aulas particulares de latim, francês e inglês, além de matemática e as outras matérias. Preparava alunos para os exames de admissão ao ginásio e dava aulas de reforço.
O quintal da nossa casa na Avenida Cícero Prado era enorme. Papai, amante da natureza, foi enchendo esse quintal com pés de fruta. Banana tinha de todo tipo: prata, nanica, ouro, São Domingos, da terra, banana-figo... Várias mangueiras... E tinha coqueiros de coquinho, pés de goiaba, de caju, de laranja pera, laranja lima, laranja morja, laranja baiana... Tinha dois pés de araçá. Dois pés de fruta do conde, um raro pé de uva-japonesa, que os colegas da escola conheciam por macaquinho. Tinha um pé de uvaia, que papai morreu pensando ser um pé de jabuticaba. Um lindo pé de ingá também só encorpou e frutificou depois de seu falecimento. E sempre tivemos pés de maracujá subindo pelas árvores, chuchu se enganchando nas cercas – e o que mais estranhei quando fui morar na cidade foi ter de pagar pela baciinha de chuchu na feira...
Quando eu ia ao bar com papai, comprar alguma coisa, reparava que todos faziam silêncio quando ele entrava, tiravam o chapéu, interrompiam o bilhar e as piadas, até que a gente saísse. O Professor era muito respeitado. Nossa casa era a “casa do Professor”. Éramos “os filhos do Professor”. Até hoje, mais de meio século depois daqueles acontecimentos, se preciso refrescar a memória de algum coruputubense que não se lembra mais de mim, digo: Sou filho do professor – e o rosto da pessoa se ilumina, e a conversa toma velhos rumos.
Depois de algum tempo, a delegacia de ensino não permitiu mais que as aulas do curso de adultos fossem dadas no grupo escolar. Por isto, a Companhia mandou fazer várias mesas de armar sobre cavaletes e mandou tudo para nossa casa. A partir daí, toda noite nós retirávamos os móveis da sala (tão poucos!) e as nossas caminhas do quarto da frente, para que os pobres cômodos se transformassem em salas de aula. Então chegavam os alunos, uns trinta homens em busca do saber.
Papai morreu com quarenta e três anos. Morreu do coração, na Santa Casa, depois de uns quinze dias internado. Morreu na presença de mamãe e de dois padres, o Padre Mario Cury e o Padre Orlando. Quem foi a Coru avisar a gente foi nosso Tio Gordo, o radialista Jota Marcondes, que era o irmão mais criança de papai. Fomos todos buscar o corpo na cidade, fomos na ambulância da Companhia. Paramos no Grupo Escolar para pegar o Zaga, que estudava de tarde e ainda não sabia de nada. Alguém foi lá chamá-lo. Quando apareceu no portão da escola, saindo com o embornal e seus cadernos, ele estava tão vermelho, parecia que ia explodir. Entrou na viatura chorando, nós todos começamos a chorar alto e alguém dizia chorando: Não chora!
De tudo, no meio daquela tristeza, o que mais me chamou a atenção foi o mundo continuar funcionando: quando a gente estava voltando da cidade, as içás estavam caindo, era outubro, e elas se esborrachavam no vidro do carro. O céu estava azul, continuava ventando nos eucaliptos, continuavam a flutuar no céu as nuvens brancas, tudo continuava, e eu achava esquisito aquele negócio de tudo continuar, era como se a morte do papai não fosse nenhum acontecimento importante...
Mamãe ficou viúva com trinta e cinco anos – e oito filhos. O maior, o Carlinhos, tinha dezessete anos. A caçula, Salete, tinha dois anos. Coitada da mamãe, para nos sustentar ficou só com a pensão do papai. E o esforço do Carlinhos e da Ana Clara, que tinha quinze anos e começou a trabalhar na farmácia. O Carlinhos já trabalhava no escritório fazia dois anos. Devo tudo a esses dois irmãos mais velhos, que não puderam prosseguir os estudos porque precisavam trabalhar para sustentar a casa.
Naquele tempo a gente nem reparava, mas agora sei que vivíamos na pobreza, mesmo no tempo de papai vivo, coitado, ganhando tão pouco. Na hora do almoço e da janta, não tendo prato para todos, alguns comiam na tampa da panela, ou na lata de goiabada. Imagino o sofrimento dos adultos, vendo que as crianças sofriam a falta de coisas essenciais.
Mas nós não percebíamos.  Nossa casa era uma agitação de alegria e de brincadeiras. Os móveis foram feitos quase todos por papai. Nossas camas ele fazia com madeira que ganhava da fábrica. Os brinquedos, muitos ele mesmo fazia. Lembro de um ônibus feito de toco de madeira, onde ele pintou as janelinhas com as caras dos passageiros. E, se até hoje eu e meus irmãos nos encantamos diante de um presépio, é por causa do costume que ele plantou em nós naqueles dezembros de Coruputuba.
Quando papai morreu, nossa casa virou um ajuntamento. Eu nunca tinha visto um movimento assim, a não ser nas procissões. Todo mundo foi em casa, cumprir a obrigação do velório. Dona Naná e o Seu João Mexas, da padaria, mandaram dois enormes sacos de pão. E também uma grande lata de manteiga. A Cooperativa mandou muito pó de café e açúcar. E a noite foi movimentada. Fui dormir tarde, meus irmãos também. Eu tinha nove anos e estava mais espantado do que triste. Até chorei no dia seguinte, na saída do enterro, mais por ver mamãe chorar do que de tristeza própria.
O povo ficou tão bonzinho para nós! Passamos a ser tratados com tanta atenção naquela comunidade! Várias famílias nos ajudando, tanto carinho, que nem sobrava muito lugar para tristeza.
Tristeza eu fui ter passado algum tempo. Após a semana de luto, voltei para a escola, estava no segundo ano. Um dia aprendi uma coisa nova, não lembro o quê, na aula. Cheguei em casa correndo e fui direto para o quintal, queria contar o que tinha aprendido, fui chamando: Pai, pai! Mas não tinha ninguém na horta, os canteiros estavam secos, o mato crescendo, papai não estava lá, regando as verduras... Então bateu em mim, de um jeito duro, a compreensão de que ele tinha morrido mesmo, e isto era sem volta.
* * *
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Eu te batizo, Paulo ou Tereza


Antiga Maternidade Cícero Prado. Ficava onde hoje fica a ala nova da Santa Casa de Pindamonhangaba, ou seja, depois da segunda cancela.

Noite gelada a de 13 para 14 de junho. Mas as contrações se tornaram frequentes e a ambulância da Companhia levou Dona Tereza com Seu Francisco para a Santa Casa, para a Maternidade Cícero Prado.
Parto difícil, demorado. A mãe sofria, a criança sofria. Doutor Caio e a Maria José se empenhavam, Dona Tereza forçava. O quinto filho demorava para nascer.
Finalmente, surgiu o topo da cabecinha. Mas o parto não progredia e o coroamento, que não avançava, preocupou a todos naquela sala. A criança nasceria com vida? Dona Tereza, em dores, pedia: ‒ “Batiza a criança!” ‒ e insistia, com medo de que, morrendo sem ser batizada, ela fosse parar na solidão do limbo.
Era o caso de um batismo de emergência. Maria José, experiente, trouxe água num copo e, derramando-a na parte visível da cabecinha, pronunciou as palavras sagradas: ‒ “Eu te batizo, Paulo ou Tereza, em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, amém.”
Mais esforço, mais diligências, a cabeça surgiu por inteiro. E viu-se que era uma bela criança. Mais um pouco, mais força, e eis a criancinha inteira. E viu-se que era Paulo.
Mas não chorava, não respirava. Técnicas de ressuscitação, sem efeito. Dona Tereza se lembrou das dificuldades com o nascimento do terceiro filho, o Pedro, e instruiu o médico: ‒ “Dá uma injeção de coramina, doutor, o meu terceiro também nasceu assim, deu certo, doutor!”
E aplicou-se a injeção, e deu certo, e a criança respirou, e chorou.
No outro dia, ainda na maternidade, Dona Tereza e Seu Francisco conversavam sobre o nome da criança. Ele queria Paulo de Tarso. Ela ponderou que todos os filhos, até ali, tinham nomes de dois santos protetores: Francisco Carlos, Ana Clara, José Pedro e Luiz Gonzaga. Mesmo o primogênito, morto algumas horas após o parto, chamou-se Antônio Gerson.
Por tudo isto, o pequeno Paulo deveria receber mais um nome de santo. Talvez pela proximidade fonética com Tarso, decidiram: Paulo Tarcizio.
E o bebê, tendo nascido rodeado por nomes romanos (Cícero, Caio) e nomes cristãos (Maria, José, Tereza, Francisco), acabou ganhando os nomes de dois romanos cristãos: Paulo e Tarcizio.
O primeiro, em homenagem ao soldado que abraçou o cristianismo sem abdicar da cidadania romana. O único apóstolo que teve a coragem de, na cara, apontar os erros de São Pedro, o dirigente da igreja que se fundava*.
O segundo, lembrando o adolescente que, indo levar as hóstias consagradas para a comunhão dos encarcerados na Prisão Mamertina, sofreu o ataque de ladrões, que supunham ser sua carga secreta um punhado de valiosas moedas. O jovem defendeu até a morte a riqueza verdadeira, muito mais valiosa, e que nunca lhe seria tirada.
Com esses nomes, voltou para Coruputuba, cresceu e foi chutar bola no quintal, tratar das galinhas e apanhar coquinho em volta da capela.
*****
*Gál 2:11-14
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes


Foto: http://www.pindamonhangaba.sp.gov.br/downloads/coruputuba/Fotos%20de%20Coruputuba/Fotos%20Coruputuba%202.pdf

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Uma servente de escola


Fachada primitiva da escola de Coruputuba, antes da primeira ampliação, quando havia apenas quatro salas de aula. Nessa escadinha ousei as minhas primeiras declamações. A janela da esquerda correspondia à Biblioteca. A outra, à Diretoria.


Dona Tereza era servente da escola de Coruputuba. Casada com o professor Francisco, contratado pela fábrica para lecionar no curso noturno, destinado aos funcionários que ainda não tinham completado o primário. Quatro filhos até então, e a avó. Sete bocas, portanto, na casa humilde cedida pela Companhia Agrícola e Industrial Cícero Prado.
Casa cedida, ainda bem, não se gastava com aluguel.  E a Companhia acrescentava o fornecimento gratuito de água e luz. E mais o direito de lenhar entre os eucaliptos. Ah, meu leitor urbano: lenhar quer dizer recolher lenha, catar as varas secas caídas, para formar com elas belos e pesados feixes que aguardarão em pé, num canto do quintal, a sua vez de alimentarem as chamas do fogão...
O fogão era aceso às cinco da manhã. Era a avó quem fazia isso, colocando no fogo a chaleira de água para o primeiro café do dia. Dona Tereza saía cedinho para o serviço na escola, ia cuidar da limpeza das salas de aula, lavar os banheiros, preparar o leite que os alunos tomariam no recreio. Um serviço pesado. Ainda mais para ela, esperando o quinto filho.
O diretor da escola não tinha contemplações: servente grávida continua sendo servente, nada de passar para outro funcionário algum serviço dela...
Pois veio finalmente o quinto filho. Sem direito a licença maternidade, dentro de poucos dias volta ao serviço a Dona Tereza, levando o bebê junto. O carrinho de vime, o dorme-dorme, ficava na cozinha. E a servente se desdobrava para desempenhar as tarefas de limpeza e correr para ver a criança, amamentá-la. Esforçando-se para não dar margem a reclamações quanto à qualidade do serviço. Não adiantou o esforço. O diretor a pressionava todo dia, reclamando de qualquer coisa, incomodado com a situação.
Até que Dona Tereza não aguentou mais fazer silêncio sobre a perseguição. Chorando, aconselhou-se com o marido. O professor Francisco gostaria de dizer: “Minha nega, larga desse serviço”. Mas como dizer isso, no meio daquela pobreza, ganhando tão pouco pelas aulas do curso de adultos... Acabaram decidindo por um meio-termo. Assim, Dona Tereza expôs ao diretor sua intenção de conseguir uma licença, um afastamento, até que a criança pudesse ficar em casa, para ela trabalhar mais sossegada.
“Assina aqui”, lhe diz o diretor. Ela assina. À tarde, em casa, ela recebe um recado: não precisava ir para a escola no dia seguinte.
No dia seguinte ela vai sim à escola, informar-se sobre o afastamento, a licença. E fica sabendo que não é mais para ela ir trabalhar. Ela tinha assinado, sem perceber, um pedido de exoneração.
Reclamar? Com o bispo? Reclamou sim, inclusive com o bispo em Taubaté, com o vigário em Pinda.  Não adiantou, o diretor tinha costas quentes na política. Era assim, naquele tempo.
Aquele tempo passou, faz tempo, muita coisa melhorou para os professores e os funcionários das escolas. No entanto, ainda há injustiças a serem corrigidas.
Dona Tereza sobreviveu àquelas injustiças, que acabaram por ensiná-la a estar sempre muito atenta ao mundo à sua volta. Desenvolveu, debaixo de sua aparência tranquila, uma disposição defensiva que podia assumir o comando repentinamente.  Sobreviveu a muitas outras dificuldades que foram aparecendo no seu caminho de mulher jovem, bonita, pobre e honesta. Defendeu seus filhos contra tudo e contra todos, muitas vezes deixando a estratégia defensiva e partindo para o ataque preventivo... Viveu até quase completar setenta e nove anos de lutas, bem mais que o Professor Francisco, que tombou ainda jovem e a deixou sozinha para proteger e orientar a prole.
E sabe a criança, aquele menino que viveu uns tempos num carrinho de vime na cozinha da escola...? Aquele menino, anos mais tarde, voltou para a mesma escola como aluno, e depois voltou como professor: Foi ali o seu primeiro dia de trabalho no magistério.
E depois foi ser diretor de escolas por esse mundo de Deus. E em cada professor ele via o Seu Francisco lutando pela vida.  Em cada servente, em cada merendeira, ele enxergava a figura da Dona Tereza. E nunca achou ruim com funcionárias e professoras que precisavam levar suas crianças para o serviço.
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto de Jacinto Avelino Pimentel Filho


sábado, 6 de janeiro de 2018

As lembranças mais antigas



Os irmãozinhos agachados dentro de uma pequena clareira que papai abriu no exuberante capim gordura, que nos encobria. Papai plantava na terra grudenta um pezinho de banana. Regador do lado, ajudei. Ainda agachado, inclinei o regador, fazendo muita força, o que resultou num chuveirinho parcial, minha primeira contribuição para este planeta. Era de manhã, céu azul e sol forte. Eu era muito pequeno. Aquela talvez fosse a primeira bananeira do quintal, que ainda era só capim e tocos de eucalipto. Em alguns anos, papai transformaria aquilo num pomar, que nós íamos varrer todo dia, e por onde iriam circular as galinhas, ciscando.

Naquele dia papai estava começando a colonização do quintal. Era na Avenida Cícero Prado, número oito, a segunda casa em que a família morou em Coruputuba. A primeira tinha sido na Vila Tanque, mas dali fui levado com um ano de idade e sem nenhuma lembrança. Os irmãos me contavam que na primeira casa, numa noite de tempestade, aconteceu um curto-circuito, começou a pegar fogo na caixa de luz.

Foi na Cícero Prado que aprendi a andar, certamente. E andava bastante. Com os irmãos, percorria as casas novas ainda desocupadas. Do número nove em diante, todas vazias. Mas abertas, a gente percorria os cômodos, o piso de tijolo, as paredes caiadas, cheiro de casa nova. Algum dos irmãos despejava água na jardineira da varanda, para ver as biqueirinhas funcionando. Meti a cabeça na ponta de uma biqueira, doeu, chorei.

Primeiros moradores daquela rua, na minha lembrança... A primeira casa era distante das outras, planta diferente, maior. Era a casa da Dona Marina e do Seu Totoizinho. Depois, vinha um bloco de três casas geminadas: a do Seu Eneas e Dona Sinhá, a da Dona Basta e a do Seu Sebastião Leite e Dona Maria. A casa da Dona Basta não tinha, portanto, entrada para o quintal. Isto nos fornecia um mistério: a única da rua com quintal invisível. Depois, duas casas geminadas: a do Seu Dimas e a dos Duran. O próximo bloco de duas geminadas era o nosso: a casa dos Crepaldi e a nossa.

Desse ponto em diante, as casas foram sendo ocupadas aos poucos. Nossos primeiros vizinhos no número nove foram o Seu Jofre Macedo e Dona Laura. Essa casa depois foi residência do Seu Dolivo e Dona Maria Varela e, mais tarde, dos Amarante. A casa de número dez foi ocupada pela família da Dona Anésia. E aí chegava a esquina, diante da linha do trem. A casa dessa ponta de rua era geminada e ficava escanteada, meio querendo participar da rua Nossa Senhora Aparecida, que fazia frente para os trilhos e terminava no muro da fábrica. Na casa da ponta morava... o Seu João da Ponta.

De frente para os trilhos moraram pessoas das quais me lembro em ordem atrapalhada no tempo e no espaço. Armando Machado (ou seria o Inácio?), os pais da Vera Corrêa, a Dona Maura, o Seu Eurico e Dona Eleuzina, que tocavam a Pensão, o Seu Dionísio Marcondes, que tinha sete filhos homens, o Seu Nikita, pai da Dona Maura e da Dona Teresinha, o Seu Pedro, já colado ao muro da fábrica. Mais tarde, a família do Seu Fusco.

Seu Nikita andava a cavalo pelos matos, vigiando os eucaliptos. Em dias de chuva, usava uma capa enorme, que cobria até a garupa.

Seu Dionísio tomava conta do portão do trem, ficava o dia todo na guarita, como se todo dia fosse chegar trem. Ficava jogando xadrez, não me lembro com quem. Foi a primeira vez que vi um jogo de xadrez, o tabuleiro igual ao de damas, mas com peças magníficas, intrigantes, misteriosas.

O trem chegava em festa, a locomotiva a vapor, com sino em lugar de apito, resfolegava. Acho que vinha uma vez por mês, não sei. Mas sei que eu tinha uns quatro anos quando, passeando com os irmãos no bosque de eucaliptos, cheguei aos trilhos. Estava comendo banana e pus a casca em cima do trilho. Dias depois, ouvimos o sino, o trem chegava. Pedro correu para me falar que o trem ia escorregar e cair por causa da minha casca de banana, culpa minha. Fui para debaixo da cama e fiquei chorando alto. Mas o trem veio, descarregou, foi embora e nada aconteceu, graças a Deus.

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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

Foto de Roberval E. de Godoy