O LAGO DE CORUPUTUBA

A foto acima obtive em 1967 com a minha antiga Bieka. É o lago da Fazenda Coruputuba, em Pindamonhangaba.

domingo, 14 de outubro de 2018

O meu pé de manga-espada



Meu primeiro contato mais emocionante com a mangueira foi a minha primeira e única lição de paraquedismo. Com o guarda-chuva do meu pai. Sozinho, calculei que dava. Do último galho, pulei, aberto o guarda-chuva, que virou do avesso. Mas caí sem dor. Chato foi devolver o paraquedas para o meu pai. Surpreendente foi ele não achar ruim, deu risada. Talvez tenha se lembrado de alguma aventura da infância dele, na fazenda Itapecirica, em Taubaté...
Mas, nas brincadeiras de esconde-esconde, o piques não era a mangueira, era o abacateiro. Você vai brincar com os irmãos e os vizinhos que pularam a cerca, ou passaram por baixo. Vai contar e tapar a cara no pé de abacate. Então vai gritar: Quem não escondeu não esconde mais!
E vai sair procurando: atrás das bananeiras, dentro do chiqueiro, atrás do galinheiro... E vê, junto à mangueira, um par de chinelos velhíssimos. Ah! Danado de alguém! Subiu na mangueira, bobo deixou os chinelos embaixo, denunciadores. Agora você tem que chutar um nome, não pode errar, os chinelos podem estar trocados. Vai de um lado para outro, olhando a copa da mangueira (cabe alguém ali, dentro da folhagem?).
De repente, num vento gargalhante, passa alguém correndo por trás de você e vai ao piques e bate: Um dois três! Um dois três!
Os chinelinhos engaram você. Tinha ninguém lá em cima não.
Mas isto tinha sido havia muito tempo, meu pai ainda era vivo, eu ainda não tinha nove anos. Depois fomos crescendo, e o quintal continuou sendo nosso espaço de magia.
O quintal não era muito largo, mas era bem longo... Começando na varandinha do tanque e terminando no muro da Fábrica. Na primeira metade  dele ficavam a horta com suas leiras verdes, o viveiro dos passarinhos, o galinheiro, a casa das cabras, as coelheiras, os caixotes para ninho dos pombos. Tudo isto no meio das ameixeiras, os pés de laranja-natal, o pé de uva japonesa, a parreira, o pé de conde. Então, uma cerca de taquaras, com o portão.
Ali começava a parte mais selvagem. Pés de lima com espinhos ameaçadores. Bananeiras em duas filas, acompanhando as cercas laterais. O meio, limpo, desimpedido, varrido. Era o campinho de futebol. Improvável, mas sim. Com duas caixas de abelhas num dos lados e o chiqueiro no outro. Nesse trecho os esquemas futebolísticos se comprimiam, num afunilamento.
Abelha não ataca quem joga bola, suando muito. Mas é erro pisar descalço numa abelha. Dói muito, e o jogo não para.
A mangueira velha no centro do campo, detendo os chutes de qualquer dos times. Se a bola ficasse presa nos galhos considerava-se bola fora, lateral.  Bola que resvalasse no velho tronco e entrasse no gol, era o quê? Era gooooool...
Triste era se a bola, ultrapassando o gol, fosse se espetar nos espinhos do pé de lima, vazando num assobio desalentador...
A touceira de espada-de-são-jorge, numa lateral, foi destruída aos poucos. A bola caía lá dentro e ninguém concordava em bola fora. Vinha todo mundo chutando, despedaçando as espadas, arrancando os caules subterrâneos. Até que um dia não existia mais a touceira.
E, meio que de repente, não existia mais a infância encantada, que ia dando espaço para a adolescência curiosa e mais encantada ainda. E o entorno da mangueira era uma espécie de templo de meditação solitária, ou de convívio com os irmãos, agora um bandinho de adolescentes.
A mangueira velha também era o meu posto de observação. Assim: Olhe bem a mangueira, buscando as frutas mais coloridas. Nada de cutucá-las com bambu, isto seria para iniciantes. Você não. Você suba, ágil como um macaco. É fácil. A casca é grossa, áspera, com cicatrizes salientes. Mãos e pés acham apoio fácil, não escorregam. Vá para os galhos mais altos. Alcance a manga madura. Sente-se, montado. Agora, aproveite para ver a paisagem.
Aqui por perto, os quintais. O do Seu Luiz Crepaldi, com o galo vermelho, as galinhas carijó, os pés de cana, as enormes goiabeiras. Adiante, o quintal dos Duran, o terreiro varridinho, o galinheiro e a coelheira, os marrecos. Do outro lado, o quintal dos Amarante, do Jurandir, do Seu João da Ponta, dos Machado, do Seu França. Vire mais a cabeça: o quintal do Seu Eurico, o que foi do seu Dionísio e agora é do Seu Nikita. O do Seu Fusco não dá para ver, muita folhagem tapando seus olhos.
Então, mais distante, a torre do sino e os coqueiros da igreja. Ainda mais longe, as últimas casas da Alberto Simi e, além, a Vila Jacarandá... Fechando de azul o panorama, a Serra da Quebra Cangalha.
Opa. Pronto, agora, a manga. Aperte-a de leve contra o tronco da mangueira. Gire-a, aperte de novo, até que sinta que se criou um meio líquido envolvendo todo o caroço, que ficou solto no meio desse mel. Com cuidado, morda e arrance o biquinho da casca. Eis uma perfeita mamadeira, cheinha de suco dourado, doce. Aproveite, sugue tudo, tudo. Depois, só resta arrancar a casca, lambê-la, rapar com os dentes as fibras amarelas, açucaradas. Por fim, aproveitar do caroço tudo o que sobrou de chupável e mordível. E olha a pontaria: o caroço voa e vai parar dentro da touceira de banana-prata.
Já pode descer. Vai lavar essa cara feliz lá na torneira do tanque.  
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes