terça-feira, 25 de setembro de 2012

Tucanos em blitzkrieg


Na maior calma, sem se incomodar com as reclamações dos pombos e dos pardais, sem ligar a mínima para os ataques rasantes dos bem-te-vis, os tucanos-de-bico-verde foram rapinando os ovos. Entraram pelos vãos das marquises da Peratur e, com estranha gentileza – como se os bicos enormes fossem delicadas pinças –, colhiam os ovinhos, depois levantavam a cabeça para engolir. Os pardais em volta, agitados. Os pombos, escandalizados. No meio dos ovinhos, foram também alguns filhotes, mais difíceis de engolir, mas uma bela fonte de proteínas.
Voaram para a sacada do Palacete Dez de Julho. O pessoal ficou olhando: Ô louco, será que vão entrar pela janela? Mas não entraram, voaram para o telhado da Acip, depois foram aos cabos de alta tensão. Um deles ainda tinha que engolir alguma coisa e fez isto à vista de todo mundo, empoleirado nos cabos sobre a rua principal da cidade. Era de manhã, não tinha mais neblina, mas ainda estava meio frio.
Um voou, o outro de repente voou também. Para onde foram? Um, ficou no alto do Literário. O outro, na arvorezinha da calçada. O guarda da FAPI já está acostumado, os dois vêm comer frutinhas, não vivem só de saquear ninhos.
Isto deles comerem os ovos e os filhotes dos pombos e dos pardais causou uma espécie de revolta nos circunstantes. Certo que ninguém adora muito os pombos urbanos, nem os pardais, mas o pessoal preferia ficar fantasiando que os tucanos (ramphastus vitellinus), além de serem portadores de uma linda plumagem e de um bico de chamar a atenção, seriam inocentes vegetarianos. Que nada! Aquele bicão serve para outras coisas mais sanguinárias, os espíritos mais delicados que afastem o olhar.
Antes de estarem trepados na Prefeitura Velha, estavam empoleirados na árvore do quintal do Museu, o jequitibá-rosa. Foram vistos lá, inicialmente. Depois voaram para o corrimão do segundo andar do Museu. Ora essa, estavam catando os bichinhos que ficam presos nas teias de aranha debaixo das sacadas. Fizeram uma limpeza, paciência, a aranha não consegue comer tudo que a teia prende de noite, deixa ali guardado... Então chegam os tucanos e fazem a colheita.
Foram embora de repente, igual um sonho que some quando a gente acorda. Ficou a lembrança das cores voando. Voltaram para o Bosque, onde está o ninho deles, no oco da palmeira. Lá eles têm os ovinhos, os filhotinhos deles. E ficam sempre rezando para o gavião-pinhé não descobrir, não querem que aconteça com a familinha deles a mesma desgraça que eles provocam para os pombos e os pardais.
Agora o bem-te-vi nem sei por que se meteu, não era com ele que os tucanos estavam mexendo. Mas é que o bem-te-vi detesta esses pássaros grandes que atacam os outros. Só de ver um gaviãozinho rodeando a cidade já vai atacando, atacando, até o bicho pegar a reta da várzea e ir embora.
Na Natureza não tem bonzinho não. E também não tem malvado. Todo mundo se defende, de um jeito ou de outro. Mas foi bonito ver as pessoas assistindo às cenas ao vivo, sem ser pela televisão.
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Fotos de Letícia Marques Alves, obtidas na manhã do dia 13/09/2012

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Meu amigo Welton Cypriano de Oliveira


Foi com alguns colegas do colegial que fui aos poucos deixando de me comportar como um bicho do mato. Não aprendi com todos os colegas, alguns eram tão assustados quanto eu, não podiam ajudar muito, podiam, quando muito, comentar comigo como o mundo era assustador. Mas quem me ajudou de verdade, e sem querer, foram os mais saídos.
Louvo as figuras do Welton, do Mineiro, do Mirinho. Mas, principalmente, do Welton, porque era meu colega de classe na Escola Normal e eu convivia todos os dias com ele. O Mineiro e o Mirinho contavam com minha admiração mais distante, eram monstros sagrados que perambulavam pelos corredores do Instituto, junto com meu irmão Zaga, bradando palavras secretas extraídas do fundo dos dicionários – ou lendo poemas cabalísticos em voz sussurrada. Mas o Welton estava ali na classe, perto de mim, e eu fui um aplicado observador do seu comportamento, para ir aprendendo a como deveria agir no mundo da cidade.
Fui me admirando e aprendendo, naquele universo de jovens entre dezessete e vinte anos. Welton, sempre ajeitando os óculos que teimavam em cair, conversava com os adultos de igual para igual, com urbanidade e bom humor, cumprimentava pegando na mão, olho no olho. Tinha sempre um gracejo e uma palavra boa para todos. Não se acanhava com ninguém, não desrespeitava ninguém. Tinha pronta argumentação diante de professores e funcionários, se fosse preciso defender um ponto de vista.
Todos estudávamos de manhã e trabalhávamos à tarde. Eu, no Sindicato Rural, em cima da antiga leiteria – onde hoje é a imobiliária do Derrico. Welton trabalhava na Tribuna do Norte, ajudando o pai, o Seu Argemiro. Aos sábados, convidado, eu ia à Tribuna ajudar em alguma coisinha. Cheguei a rodar a prensa. Aproveitei a minha proximidade para apresentar ao Seu Argemiro os meus poemas – e ele aceitou. Estão lá, nas edições de 1967, muitos dos meus sonetos.
Fui crescendo como estudante, aprendendo que não precisava me afastar dos colegas para com isto agradar aos professores. Dava para agradar aos dois públicos, mantendo-me cordial com todos – isto aprendia com o Welton. Depois vi que esses moradores da cidade – Welton, Mirinho, Mineiro e outros – eram bons também nas coisas nossas da roça, nas atividades que eu e meus irmãos desenvolvíamos em casa, no quintal, no mato. Eles foram nos visitar em Coruputuba e nós ficamos esmagados com o desempenho do Mirinho na bolinha de gude! Depois, durante o futebol debaixo das mangueiras, deram um completo baile em nós, os donos do campinho!
E de repente todo mundo cresceu e os adultos faleceram e todo mundo se separou e a gente ficou quase que sem se encontrar de novo, fomos virando uns estranhos uns para os outros. Cada um foi trabalhar para um lado, para cidades distantes. O Zaga, o Mineiro, o Welton, o Mirinho... Eu também, mudei de Pinda, demorei para voltar. Foi ficando difícil a gente se reencontrar. Mas as raízes que cada um de nós plantou no outro viraram referência, viraram instrução sobre como nos comportarmos diante do mundo, mesmo na distância, mesmo na ausência dos nossos companheiros.
E o mundo perdeu para mim uma parte de sua graça quando o Welton se foi. Ele, que sem saber, tinha me ensinado a me portar sem medo diante da Cidade.
  
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto do I.E. João Gomes de Araújo: Arquivo Histórico Waldomiro Benedito de Abreu