quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Um Deus para a gente amar




Choveu muito de madrugada. Mas a manhã veio esplêndida, cheiro de terra e de mato. E logo logo eu já estava na horta. Tudo em volta tão brilhante que eu tive de parar, entre as leiras de alface e as ramas de abobrinha. Era para contemplar melhor a natureza, exagerada de bonita. Fui para a sombra do pé de conde e, apoiado no cabo da enxada, olhei para o céu: pequenos flocos branquinhos e o azul muito azul da manhã de quase primavera.
Tinha quinze anos e ainda não tinha me decidido: Creio? Não creio? Meu pai morreu quando eu tinha nove anos e, com ele, terminou a leitura semanal da História Sagrada. Mas continuamos, eu e meus irmãos, a ajudar a missa, a rezar o terço juntos à noite. Continuamos a pedir a bênção para minha mãe e minha avó. Continuamos a dizer vai com Deus, fica com Deus... Continuamos a ouvir Deus te acompanhe, dorme com Deus...
Deus estava presente nas nossas falas, naquela casa de Coruputuba, rodeada de mangueiras e ameixeiras, na aldeia dos eucaliptos e cafezais. Por dentro de mim, no entanto, a crença em Deus balançava.
Estávamos no ginásio, eu, o Zaga e o Bosco. O Pedro, no científico. E a nossa conversa em volta do fogão de lenha começava a envolver novos temas. Já não falávamos só dos animais e das plantas. A filosofia já metia o bedelho. A teologia se coçava. Tomás de Aquino e Santo Agostinho finalmente iam sendo confrontados com Nietzsche e Platão. Lutero, ousadamente, mostrava a cara. Ao som dos estalidos das brasas, entre um gole e outro de café do bule preto, Kardec levemente se aproximava.
A noção de pecado, ao invés de me aproximar da igreja, afastava-me dela. O confessionário tinha virado uma inquisição. O padre queria saber do meu progresso em renegar os maus pensamentos e os desejos da carne. Mas a carne e os pensamentos estavam deliciosamente vencendo, abrindo-me para o mundo e me afastando das proibições. E ainda vieram as santas missões, com o sermão dos redentoristas falando muito do inferno, falando quase nada do céu.
Limpando a horta, fazendo a enxada grande deslizar com delicadeza entre as mudinhas para retirar o mato, sacando manualmente as tiriricas, eu pensava, pensava... Sozinho na horta eu pensava... e ia me decidindo. Chega de igreja, chega de confissão, chega de Deus malvado e vingativo, chega de temer castigos repentinos ou eternos!
Mas eu gostava de Jesus, pelo que eu sabia dele. E não queria ficar sem Deus completamente. Então, ali na sombra do pé de conde, fui optando por um Deus incorpóreo, sem idade, sem sexo, sem variações de humor. Fui me resolvendo por um Deus diluído na natureza, um Deus que não manda, mas sugere. Um Deus de eterna bondade e de nenhum julgamento, acolhedor e amoroso sempre.
Agora, com o pensamento pacificado, respirei profundamente o aroma que me subia da terra úmida dos canteiros. E olhei para o céu. Os espaços entre as nuvens eram agora frestas da gigantesca porta do paraíso. E falei dentro do coração uma coisa: eu creio sim. E isto foi doce, e foi bom. E me senti pequeno, pequeno mesmo, um irmão das folhas do pé de abóbora. Mas me senti enorme, eu me senti imenso, diluído na diluição de Deus pelo universo.
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
19.02.2017