terça-feira, 17 de julho de 2018

A flauta do Seu Bartolo




No terceiro ano estudei no período da manhã com o Professor José Murillo Françoso, jovem recém-chegado de Piracicaba. Na verdade, eram quatro professores que chegaram a Coruputuba nos anos cinquenta: Frederico Perencin Filho, Antonio Calixto Rodrigues, José Thomé Junior e o Prof. Murillo. A Companhia cedeu para residência temporária deles a linda Casa Verde na beira do lago, a casa coberta de heras, que bem mais tarde abrigou a assistência social.  O Professor Frederico veio para ser diretor da escola. Os outros, para dar aula.
O Professor Murillo era engraçado. Muito magro, de óculos, sempre de terno escuro, às vezes vinha de bicicleta para a escola. Certa manhã, todos os alunos já estavam em fila no galpão, preparando-se para a sineta, e o Prof. Murillo ainda não tinha chegado. De repente, chegou, de bicicleta, a toda. Tentou fazer a curva para entrar pelo portão dos alunos, mas derrapou, caiu e foi com bicicleta e tudo nas ripas da cerca. Naquele tempo os alunos não davam risada dos professores. Pelo menos abertamente não. Imagino o que aconteceria hoje, num caso desses. Mas o Professor Murillo nem se abalou com a queda, limpou o pó, desentortou o guidão e entrou empurrando a coitada da bicicleta, guardou e veio fiscalizar a nossa fila de entrada.
Os alunos ficavam perfilados, no galpão, antes de entrar. Cada dia era uma classe que cantava. Músicas patrióticas, ou folclóricas, tinha de tudo. Eu gostava do Hino da Escola Rural. Muito, mas muito mais tarde, fui descobrir que o hino tinha letra de Gustavo Kukinann e música de João Gomes Junior – este, um famoso compositor pindamonhangabense, filho do maestro João Gomes de Araújo.  No tempo da ditadura militar, a música recebeu uma versão meio plagiada, assinada por famosos cantores sertanejos, incentivados pelos generais de plantão. Mas a letra verdadeira é esta:
Nesta escola modesta da roça / Rodeada de pés de café / O Brasil se levanta e remoça / Numa nova alvorada de fé! / Batida de sol ardente / És do saber o fanal / Que nos guia para frente / Bendita Escola Rural! / Através da lavoura florida / Que a riqueza da Pátria produz / Nossos pais vão lutar pela vida / E nós vimos em busca de luz!
Batida de sol etc..
O Prof. Murillo era um humorista. Ensinou para a gente uma canção que nunca mais acabava, um moto-perpétuo:
Bartolo tinha uma flauta / A flauta do Seu Bartolo / Sua mãe sempre dizia / Toca flauta seu Bartolo / Tinha uma flauta / A flauta do Seu Bartolo / Sua mãe sempre dizia / Toca flauta seu Bartolo / Tinha uma flauta... (e assim a gente iria ad infinitum, ninguém queria parar, precisava o Seu Frederico mandar a classe entrar – e a classe entrava cantando...)
No entanto, o bom humor do professor não o deixava imune aos costumes disciplinadores então vigentes. Era a época dos castigos humilhantes. Certo dia, eu, que estudava de manhã, fui condenado a permanecer na sala de aula uma hora a mais que os colegas. Quer dizer, todos foram embora e fiquei em pé no fundo da sala. Então entrou a classe do período intermediário – e era uma classe feminina. As alunas, ao entrar, foram dando de cara com aquele menino parado feito uma estátua envergonhada. A professora, já a par do assunto, explicou-lhes que eu estava de castigo porque não tinha estudado. De fato, na chamada oral de ciências o professor tinha me perguntado sobre a digestão e confundi quimo com quilo, coisa imperdoável para um aluno de nove anos...
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
No livro ACONTECEU NA ESCOLA
ISBN 978-85-913453-4