sábado, 13 de julho de 2019

Primavera em Santa Branca



Convidado a exercer a função de Coordenador Pedagógico em Santa Branca, dispus-me a não ser chato. Este era, para os professores, o conceito em que tinham os coordenadores. Falava-se em coordenador e já se imaginavam grandes pacotes de formulários para preencher, justificar, planejar, avaliar... Deixei os papéis de lado e procurei usufruir do convívio com os docentes. Ora, na função anterior, de Orientador Educacional, eu convivi tanto com os alunos! Agora, queria partilhar o dia a dia dos professores, tornar-me pessoa de sua confiança, para construir relações produtivas e, assim, beneficiar os clientes da escola: os alunos e suas famílias.
Um ambiente amoroso, familiar, todos se conheciam naquela pequena cidade. Todo mundo na escola era meio parente. Professores, escriturários, serventes, alunos, professores, todos envolvidos nas gostosas e às vezes polêmicas redes de parentesco. Lá encontrei o Leopoldo, o melhor professor de Matemática que já conheci. O único que vi mantendo regularmente um jornal mural de Matemática no pátio, com charadas matemáticas, biografias de grandes matemáticos, piadas matemáticas... Vi o sobrenome dele e já matei: Você é irmão do Seu Toninho, que foi meu professor no quarto ano do grupo em Corupu-tuba! Que me entregou o diploma do primário!
Era sim, o Leopoldo era irmão do Seu Toninho. Tão bem humorado quanto o meu professor. Mantinha com os alunos do noturno uma relação tão cordial que eles jogavam futebol de salão juntos quase toda semana. Como eu tinha que ficar lá mesmo entre o final do período da tarde e o início do noturno, também ia para a quadra, e aquela brincadeira tornava natural e amigável a nossa convivência.
Foram somente sete meses em Santa Branca, na escola Francisca Rosa Gomes. Era para eu ser Coordenador, mas em alguns momentos acabei ficando, na prática, responsável pela escola toda, quando dos afastamentos da diretora e da assistente, em férias ou em licença.
Nos primeiros dias já descobri como que funciona de verdade uma escola comum do Estado. Ainda não tinha trabalhado em cargo administrativo numa escola comum, tinha trabalhado só nas exceções. Tinha sido professor num grupo escolar rural, numa escola regimental do exército, numa escola na praia, numa escola isolada na roça... Mas em cargo administrativo tinha trabalhado em duas enormes exceções: a Escola Técnica Prof. Everardo Passos, particular, em São José dos Campos, e a Escola Agrícola Cônego José Bento, estadual, em Jacareí. Agora, em Santa Branca, eu entrava em contato direto com as tarefas administrativas de uma escola estadual com classes de primário de dia e com classes de quinta a oitava e de segundo grau à noite. Descobria que, independente do nome do cargo, quem estiver na escola acaba sendo, muitas vezes ao mesmo tempo, coordenador, diretor, secretário, escriturário, servente, merendeiro... Quantas e quantas vezes, mais tarde, já diretor de escola, tive que fazer a merenda, atender no guichê da secretaria, limpar as salas da administração, passar café... Ué, mas na escola de roça do Rio Abaixo, também não era assim? Quem que fazia a merenda, limpava o banheiro? Só que eu pensava que nas escolas maiores as funções estariam melhor distribuídas. E estavam, mas, no dia a dia, pessoas faltavam, tiravam licença, afastavam-se – e alguém tinha que cobrir. Esta prontidão para fazer de tudo, na medida em que fosse necessário, comecei a adquirir em Santa Branca.
Foram dias maravilhosos, produtivos. A relação com os professores ficou ótima, viramos amigos carinhosos até, sem perder de vista o objetivo de minha função de Coordenador: instrumentar os professores para uma relação produtiva com os alunos. Isto fizemos, de fato. O Jornal de Matemática do Leopoldo, devidamente endeusado por mim, gerou outros jornais murais, sobre outras matérias, sob a direção de outros professores ou grupos de alunos. Uma vitória particular foi a abertura da biblioteca. Cheinha de livros interessantíssimos, coleções infantis e juvenis, livros para cultura pedagógica, livros de psicologia... Centenas de volumes, impecáveis em suas capas de papelão azul, ficavam retinhos nas estantes, todos perfeitamente alinhados.
Mas ninguém lia. O livro de registro de empréstimo marcava exatamente sete retiradas desde o começo do ano, e estávamos em julho. A diretora, Professora Julieta, uma das pessoas mais ponderadas e calmas que conheci, ensinou-me bastante sobre organização de secretaria, controle de fichas de alunos, controle da vida funcional dos professores e funcionários (tudo que ela aprendeu com o Prof. José Thomé Júnior, o mesmo Seu Thomé da minha infância em Coruputuba - Ora, o Vale é tão pequeno!). Com relação à biblioteca, explicou-me que ficava fechada porque não tinha quem tomasse conta. Percebi que imperava na escola uma grande preocupação com a conservação dos livros, eles constavam dos inventários, não se podia correr o risco de danos, desaparecimento etc. Os livros deviam ser conservados como tinham sido recebidos, sem nada amassado, sem páginas rabiscadas, coisas assim. Parecia que de repente ia surgir uma visita de inspeção querendo conferir os livros volume por volume! Por isto, quando alguém queria ler um livro, precisava que um funcionário pegasse a chave e fosse lá buscá-lo. Concluí: é por isto que até julho foram registradas somente sete retiradas.
Propus à Dona Julieta: Fica sendo meu lugar de trabalho a biblioteca. Tem uma mesa lá, tem o mimeógrafo, arranja uma máquina de escrever, arranja essas coisas que eu fico na biblioteca com a porta aberta, vamos ver o que acontece.
Havia na Biblioteca uma samambaia num xaxim, mirrada, pálida... Num sábado fui trabalhar de manhã e, pela primeira vez, o sol penetrou na Biblioteca, iluminando os livros, as crianças das aulas de reforço e suas professoras que, também pela primeira vez, estavam vendo a biblioteca aberta.
Assim, aquele “vamos ver o que acontece” resultou nisto: a biblioteca virou ponto de encontro do coordenador com professores, que vinham trocar ideias. Dali a pouco, virou uma salinha para alunos também virem conversar comigo, além de retirar livros. Estava sendo reeditado o meu gabinete de orientação educacional, incluindo o meu cavalete de pintura, as telas, os pincéis, o cheiro de terebentina...
Só que a lembrança da ETEP me trouxe a vontade de reviver o clima de plena autonomia dos alunos. Dividi com alguns professores o sonho de uma escola onde permanecessem na sala de aula somente os alunos que estivessem mesmo querendo assistir a aula, sendo que os demais poderiam sair da sala, mas seriam, em vez de repreendidos, acolhidos amigavelmente pelos educadores disponíveis no momento.

 Educador disponível no momento – Definição 1 - Aquele que não está enfiado na diretoria debaixo de uma pilha de diário oficial, ou tentando alterar o horário das aulas porque uma professora desistiu e a que pegou as aulas não pode dar aula na quarta e nem na sexta, ou está fechando o balancete da APM, mas não vai dar tempo porque já foi convocada nova reunião na delegacia de ensino e o supervisor já avisou que vem à escola para assinar os certificados de conclusão, que ainda não estão prontos etc.
Educador disponível no momento – Definição 2 – O Paulo, que acabou de chegar e já está propondo essas coisas de liberdade e autonomia.

Bom, o Educador Disponível realmente estava ansioso para colocar os alunos do noturno em conflito: permanecer na sala de aula participando da aula de História, Geografia etc. ou ir para o galpão onde o Educador Disponível está tocando violão ou falando sobre poesia na Biblioteca? Ou ainda, ficar na classe fazendo os problemas de Física ou ir estudar Física na prática, jogando pingue-pongue no pátio, na mesa que o Educador Disponível desenterrou de não sei onde, limpou e montou?
Nas conversas informais, fui percebendo que havia professores que se encantavam com a ideia (a ideia, de verdade, nem era minha, era de Alexander S. Neil) e havia outros que declaravam que não dava certo em Santa Branca. Havia uns terceiros que julgavam que a ideia tinha que ser bem discutida. Discutindo a ideia com a direção, vi que o caminho não estava fechado não, estava aberto e passava pela discussão no Conselho de Escola. Apresentei ao Conselho, por escrito, uma tese propondo que se mantivessem os portões fechados, os professores se mantivessem normalmente em sala de aula, fizessem a chamada com o rigor costumeiro, só registrando presença para quem estivesse realmente presente. Aluno que quisesse ficar no galpão, na biblioteca, na quadra, poderia fazer como entendesse, sabendo que estava sendo registrada sua falta. O objetivo era permitir que o aluno tomasse suas próprias decisões, ganhasse autonomia, pudesse dispensar que outras pessoas decidissem tudo em seu lugar – pudesse escolher seus caminhos, responsabilizando-se pelas consequências de seus atos. Finalmente, o Conselho se reuniu.
Foi a primeira vez que vi um Conselho de Escola debater assunto sério mesmo. O mais que eu tinha presenciado até ali, em outras escolas, era sobre punição de alunos ou prioridades para aplicação de verbas. Agora, ia-se discutir, de modo maduro e profissional, o que a escola poderia fazer em benefício do crescimento da autonomia dos alunos. Não há assunto mais sério em Educação. A tese foi aprovada, após muito debate. Houve votos contrários, foram dos alunos representantes no Conselho, que se mostraram mais conservadores do que os professores e os pais.
E, na noite seguinte, começou a primavera em Santa Branca. Parecia uma escola de nível superior, parecia uma escola de artes. Muitos alunos ficaram nas salas de aula, tendo aulas normais. Mas um bom número veio para a biblioteca, para o pingue-pongue, para o violão no galpão, para a quadra. Com o passar das semanas, milagre: alunos estudando no galpão, em grupo. Fomos percebendo que os alunos do noturno não tinham tempo para estudar e agora estavam aproveitando a liberdade conquistada para, durante a segunda aula, ficar estudando para a prova que ia acontecer nas duas últimas. Com a liberdade de ir e vir dentro da escola, a biblioteca virou sucesso de público. Em dezembro, o livro de registro já apontava mais de quatrocentos empréstimos. Talvez um ou outro volume tenha sido danificado, talvez. Mas a biblioteca, por fim, estava cumprindo sua missão. Os soldadinhos encapados de azul tinha sido convocados! A escola ficou barulhenta, movimentada. Alunos se deslocando pelo pátio, conversando, rindo, cantando – tudo isto incomoda muito a nós educadores, que gostamos de falar em construtivismo, escola ativa, aulas mais práticas – desde que não nos atormentem! Há exceções, mas o que de fato até hoje deixa um diretor nervoso é aluno zanzando. Diretor gosta mesmo é de alunos quietos em suas classes, professor dando aula na lousa. Por isto é que tinha sido importante envolver todo o pessoal da escola na discussão das novas medidas.
O ano de 1978 estava terminando. Fui aprovado na segunda fase do concurso, ia ser diretor, ia deixar Santa Branca. Veio a formatura, com muitas despedidas comoventes, laços tinham se formado com aqueles alunos e professores, a gente provavelmente não ia mais se ver. Veio o Natal, vieram as férias de janeiro, fiquei ajudando a montar as classes para o ano que começava elaborando os planos. Nos intervalos, perambulava pela escola deserta, como um pardal cheio de saudades, examinando as salas, os corredores...
Em fevereiro, véspera do primeiro dia de aula, fui embora. Ia dirigir a Escola de Igaratá. E a Escola Francisca Rosa Gomes, lá no alto do morro, bem perto da ponte do Paraíba, ia ficar para sempre na minha lembrança como o lugar onde fizemos brotar uma espécie de primavera, superando o medo que todos nós tínhamos – e ainda temos – da liberdade.
Alguns meses depois, fiquei sabendo que tudo tinha voltado ao normal na Francisca Rosa. Pessoas se aposentaram, Dona Julieta também saiu, foi ser diretora efetiva em São José dos Campos, os que ficaram sentiram-se intimidados em continuar mantendo as medidas implantadas por quem tinha já ido embora.
Então, realmente, foi só mesmo uma primavera.

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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
No livro ACONTECEU NA ESCOLA
ISBN 978-85-913453-4