Bem antes de entrar para o
ginásio eu já conhecia de nome o Professor Alexandre, que era tio do Seu José Salgado, farmacêutico em Coruputuba. Seu Salgado era marido de minha professora de primeiro ano, Dona Maria Amélia, e era chefe da minha irmã Ana Clara. Mas voltemos ao Professor Alexandre: os meus irmãos Pedro e
Zaga, algumas séries na frente, falavam sobre a seriedade do mestre de Latim. Fui
conhecê-lo pessoalmente no exame de admissão, na prova oral de Português.
Tendo sido aprovado nos exames
escritos, peguei o ônibus do Seu Ciro Valentini e fui para a cidade. Aguardava na fila a minha vez de ser chamado. E ali, na escada em
caracol do velho prédio do Instituto, hoje Museu, fiquei conhecendo a Catarina
e a Vera, filhas do doutor João de Deus. Companheiros de apreensão, fomos
chamados para a sala de exame. À mesa, aguardando a demonstração dos nossos
conhecimentos, a banca formada pelos mestres: Professora Terezinha e Professor
Alexandre.
Os pequenos candidatos
esperavam nas carteiras a vez de se apresentarem para ler um texto e responder
a três perguntas de cada examinador. Sentado
na primeira carteira, bem diante da mesa, não me contive quando vi que a Vera,
sendo questionada a respeito de preposições, estava hesitando... Para fazer
bonito, e pensando que os professores não estavam atentos, comecei a fazer
sinais para ela, querendo contar a resposta. Fui apanhado no pulo, o olhar penetrante do Professor Alexandre me paralisando.
Pediu minha ficha, olhou e me disse pau-sa-da-men-te:
Muito bem, Senhor Marcondes, o senhor está querendo mostrar que sabe, não é?
Pois na sua vez o senhor vai ter oportunidade de mostrar o seu conhecimento:
Vou lhe fazer algumas perguntinhas extras... Gelei, vi que o professor
tinha ficado vermelho, achei que ele estava com muita raiva. De repente, me deu
saudade de casa, do quintal tão sossegado... Mas já era a minha vez. Li o texto
para a Professora Terezinha, que me fez as três perguntas regulamentares,
respondi certo, meio automático. Mudei de cadeira, agora fiquei pertinho do
Professor Alexandre.
Ele me fez três perguntas.
Respondi, nervoso, mas respondi certo. Só que ele não parou: continuou me
fazendo perguntas, uma atrás da outra. Fui rebatendo, estava bem preparado.
Foram umas dez perguntas, até que ele me disse: O senhor está dispensado,
pode sair. Saí, pensando que tinha posto tudo a perder. Todo o meu esforço
em estudar, ler... justo num ano em que tinha ficado doente e não pude
acompanhar direito o preparatório da Dona Orlinda. Nossa Senhora, e a expectativa
de Mamãe... Será que vou repetir no exame de admissão, e tudo por causa da
minha bobeira, querendo fazer bonito para as meninas da cidade. Claro que o
Professor Alexandre vai me dar uma nota baixa, para me castigar.
Quando o resultado saiu, estava
lá a minha nota, datilografada em vermelho: dez. Foi isto: o Professor
Alexandre apanhou um aluninho fazendo uma arte feia, mas castigou-o somente com
a repreensão, com o olhar. E com as perguntas extras. Não abaixou a nota,
respeitou a demonstração do conhecimento: colocou-se acima de sua própria
irritação e me deu uma lição de justiça.
Foi meu professor de Latim por
dois anos. Não encontrei dificuldade: era coroinha e estava acostumado a
dialogar em latim com os padres, no ritual das missas. Na terceira série do
ginásio, foi meu professor de Português: redação toda semana. Adorei, poder
escrever, escrever... produzir textos que depois eram valorizados porque eram
lidos pelo professor em voz alta para a classe, acrescentando comentários,
sugestões... Só que eu faltava muito às aulas, estava preferindo ficar
recolhido na roça, tratando da cabra, do porco, olhando os pombos... Hoje sei
que aquilo era depressão, durou quase um ano. Faltei a mais de uma prova do
Professor Alexandre – e ele ficava irritado com isto. Então, após perder mais
uma prova, lá fui eu: Professor, faltei na prova, dá para o senhor dar
outra? E ele, decidido: Muito bem, pode se sentar, aqui na primeira
carteira. Tire uma folha do caderno e escreva uma carta. O tratamento é Vossa
Majestade. O tema é: o cabo do guarda-chuva.
Sentei-me. Tirei uma folha.
Perguntei: Professor, posso pegar o dicionário? E o Professor Alexandre
ficou mais calmo de repente e condescendeu: Sim, pode. E eu escrevi uma
carta ao rei, apresentando-me como humilde súdito que morava pertinho de um dos
quartéis do exército do reino. Claro que o rei desconhecia as irregularidades,
mas os soldados aprontavam muito – e fui discorrendo, respeitosamente. Terminei
por contar que um dos militares, um simples cabo, aproveitava-se do estado
geral de indisciplina e sempre saía à paisana, um janota, carregando – à guisa
de acessório elegante – um guarda-chuva. A vizinhança já lhe dera o apelido de O Cabo do guarda-chuva... Foi mais uma
nota dez que o Professor Alexandre me deu. Apesar de estar ainda zangado com as
minhas ausências.
Aos domingos, eu ia com o Zaga
à cidade para assistir à missa na Matriz, mas não era pela missa. Missa havia
em Coruputuba. É que, depois da missa, o Professor Alexandre tocava o órgão. Ficávamos
sentados na penumbra da igreja – enquanto as notas musicais de Bach voavam
ligeiras junto ao teto, como pombas cheias de desejo de liberdade, querendo
escapar pelos vitrais...
Os anos se passaram.
Perambulei. Voltei para Pindamonhangaba. Meu professor tinha se aposentado havia
tempos, mas continuava, imaginem, não lecionando,
mas estudando. Quase todo dia
consultava livros e dicionários na biblioteca pública. Várias vezes o incomodei
com consultas: Professor, como é mesmo aquele provérbio
Quando o Professor Alexandre
Machado Salgado faleceu, perdi uma referência. Senti sua falta do mesmo modo
como senti a falta de Papai. Mas a falta de Papai eu senti de uma vez só, num
baque. A falta do Professor Alexandre fui sentindo aos poucos, cada vez mais,
cada vez que pretendia fazer uma consulta sobre latim, cada vez que queria
conversar sobre literatura, sobre outros tempos, outras culturas, outras
línguas...
Olho para a cidade: não vejo
mais passar o meu professor, de cabelos brancos e andar tranquilo, e isto me
deixa triste. Nossa cidade vai perdendo suas referências, seus marcos, os seus
alicerces éticos.
Já se passaram tantos anos sem
o Professor Alexandre! Mas guardei as suas lições. Aquele professor tão sisudo,
severo, em mais de uma ocasião mostrou que o mestre deve sim repreender, punir
quando necessário. Mas não pode continuar punindo para o resto da vida. Há o
momento de superar suas irritações, zangas, por mais justas que sejam, e olhar
com isenção para o aluno que está ali, diante dele, e premiar o esforço que sucede
o erro.
Enquanto cumpria o seu modo
coerente de viver, discretamente, ele me ensinava como deve ser um verdadeiro
educador.
* * * * * * *
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes, no
livro Aconteceu na Escola, 2012.