sábado, 10 de junho de 2023

SEU MIGUELZINHO FUNILEIRO




 Ana Clara falou: Paulo, vamos na casa do Seu Miguelzinho da Dona Benedita?

Eu já sabia o que que era e fui buscar as latas vazias que a gente vinha guardando, já tinha um monte debaixo do tanque. Peguei a sacola de compra e nós dois enchemos a sacola.

Lata vazia de leite condensado, de ervilha, de salsicha, de toddy, de vic maltema, de nescau, lata de óleo, das quadradas e das redondas, de óleo Sol Levante, lata de manteiga Aviação, umas latas maiorezinhas, de leite em pó, de pêssego. Até umas latas de marmelada, de goiabada, figada, de doce marrom glacê. Um monte de lata vazia.

E fomos nós dois. Era tempo de frio, mas o sol ainda não tinha chegado nos galhos mais altos dos eucaliptos. Ia demorar para escurecer.

Indo em direção da linha, dobramos na casa do Seu João da Ponta, era a Rua Nossa Senhora Aparecida, que acompanhava a linha do trem. Passamos em frente à casa dos Paiva, dos Machado, dos pais da Verinha, a casa do Seu França, do Du, a casa do Seu Dionísio e, por útimo, a do Seu Fusco. Na guarita do portão da fábrica, Seu Dionísio jogava xadrez com um amigo.

A estradinha dobrava à esquerda no muro da fábrica e logo dobrava à direita, a gente foi indo pela Vila Bela. Tem gente de Coru que não chegou a conhecer a Vila Bela, a primeira que foi desmanchada quando instalaram a celulose. A rua passava meio apertada entre o muro e as casas. Passamos pela casa da Nair Macedo. O Tião, irmão, dela estava na varanda, falou oi.

E chegamos na Vila Campineira. Ali moravam muitos conhecidos. Passamos no barracão de tomate da família Yoshinaga, a casa dos meus colegas Magalhães, o Rubens e o Guido. Outro dia a gente ia voltar lá para comprar um porquinho, que eles criavam. Mais para a frente, a casa do Seu Pedro Moreira, que cortava cabelo da gente. Pai dos nossos amigos , o Mauro, o Zé, o Nelson e outros menores.

Mas a gente já tinha chegado na casa do Seu Miguelzinho Funileiro, Ana Clara falou Ó de Casa! E a Dona Benedita veio atender a gente, mandou entrar. A Clélia não estava lá, nem o João Bosco. O Miguelzinho estava saindo com um colega, cruzou com a gente.

Eu estou falando toda hora no seu Miguelzinho Funileiro. Tem gente da cidade que vai pensar errado, achando que em Coruputuba tinha quem mexesse com funilaria de carro. Nada disso. Naquele tempo quase ninguém tinha carro. O Seu Miguelzinho era funileiro porque ele fazia funil de lata.

Seu Miguelzinho recebeu a gente alegrinho. Falou para Dona Benedita, traz um café pra eles. Done Benedita chamou Ana Clara lá pra dentro e fechou de novo o portãozinho, que já tinha sido vermelho. Fechou para a galinhada não entrar, nem a pata, nem o leitão. Seu Miguelzinho foi se sentar no banquinho debaixo do pé de manga. Pegou as nossas latas e começou a trabalhar. Primeiro ele tirava a tampa com o abridor, punha a lata em cima do cepo e ia martelando as beiradas cortantes com um martelinho de cabeça redonda. Alisava bem as bordas da lata, não podia ficar nada que cortasse a mão da gente. Depois pegava umas latas velhas dele mesmo e com a tesoura cortava uma tira, dobrava as beiradas da tira, martelava, arredondava a tira e soldava nas latas: era a asa da nova caneca.

E assim ele ia trabalhando e eu de cócoras ali juntinho, olhando tudo. Maquininha de solda dele, era solda de estanho.

Ana Clara conversando com Dona Benedita, vieram pro quintal, as duas de pé, só eu e o Seu Miguelzinho, ele sentado, eu sentei também numa raiz. Tomei café, bem fraco, bem doce, bem quente, numa caneca feita pelo seu Miguelzinho mesmo.

As galinhas foram chegando, os frangos, com o galo de crista vermelha, ainda estava claro, mas elas sabiam que era hora de se recolher. E foram pulando para os poleiros, mas não tinha poleiro, não tinha galinheiro. Elas subiam para os galhos das laranjeiras e do pé de pitanga. Achei muito interessante. No nossa casa tinha um galinheiro, que o pai tinha feito, lá não. Sempre depois eu lembrava disso: os frangos empoleirados no meio dos galhos das laranjeiras. Achei legal, parecia bicho do mato.

Começava a escurecer, Ana Clara pagou o serviço, enchemos a sacola de compra com as novas canecas e canecões. Tudo novo, tinha saído das mãos do Seu Miguelzinho. E fomos para casa. Começava a acender a luz amarela dos postes. Os sapos faziam uma festa no capinzal perto da casa do Seu Juquinha.

A gente não via sapo nenhum, só escutava as conversinhas deles. Hoje não tem mais sapo, não tem mais água para eles criarem, nem poça d'água tem mais. De primeiro tinha, na luz dos postes ficavam caçando mariposa, besouro.