domingo, 26 de maio de 2024

Controlando os moradores do paraíso

 

A Cooperativa e a Pensão, no Largo



Era mesmo um paraíso, dizem os antigos moradores de Coruputuba. De fato, a Fazenda Coruputuba, construída em torno da fábrica de papel, dispunha de todas as comodidades para as famílias dos funcionários. As famílias tinham acesso a muitos benefícios totalmente gratuitos, como ambulatório médico, atendimento odontológico, enfermaria, atividades sociais e esportivas, cinema, distribuição diária de leite, moradia com água encanada e energia elétrica, iluminação pública, grupo escolar e ginásio, permissão para catar lenha nos eucaliptais, criar animais no quintal, cultivar hortaliças e frutas...

E havia também o comércio e fornecimento de serviços autorizados pela companhia: armazém, bar, padaria, barbearia, pensão, açougue, farmácia, leiteria e muitas pequenas lojas de variedades que alguns moradores abriam em suas casas, ou fornecimento de serviços de barbearia, cabeleireira, sapataria, consertos de bicicleta, solda elétrica e vários outros, que eram feitos nos quintais dos moradores, ou nos quartos de solteiro. Meu pai mesmo, e mais tarde os meus irmãos, deram aulas particulares na varanda de casa.

Todos esses benefícios fornecidos pela Companhia tinham seus objetivos práticos. Principalmente a segurança do patrimônio e o controle social.

O patrimônio da Companhia era muito valioso. A fábrica de papel, mais tarde de celulose também, com equipamentos caríssimos, estoques muito valiosos. Também as obras de engenharia civil, as represas com grande estoque de água para os processos produtivos, as linhas de transmissão de energia elétrica, tudo devia ser protegido. Quem podia garantia a segurança de todo esse patrimônio? Quem podia proteger a fábrica, as represas, os eucaliptos?

Eram os moradores. Sem  moradores, a fábrica, os eucaliptos, os cafezais, os arrozais, o gado leiteiro, a escola, o clube, o armazém, tudo estaria indefeso, entregue a invasões, furtos e destruições.

Os planejadores de Coruputuba colocaram as vilas nos lugares estratégicos, em volta da fábrica, nos acessos aos grandes eucaliptais e nas entradas pelas rodovias e pela ferrovia.

Nos limites de Coruputuba com Moreira César ficavam a Vila Figueira e a Vila Bela Vista. Nos limites com as terras próximas da Estrada de Ferro Central do Brasil ficavam as grandes Vila Maria e Vila Esperança. Vilas menores se espalhavam entre essas duas maiores.

Protegendo o acesso ao Primeiro e ao Segundo Tanque, era a Vila Jacarandá. Vigiando o Terceiro Tanque, era a Vila Tanque, depois chamada de Vila São José. Rodeando o centro de convivência, com a Igreja, Farmácia, Campo de Futebol, Quadra, o Largo, Pensão, Cooperativa, Escola, Açougue, ficava a Avenida Alberto Simi, com a Rua São Pedro e os Quartos de Solteiros.

Em volta da fábrica se estendiam a Rua Nossa Senhora Aparecida, a Avenida Cícero Prado, a Praça Industrial e, nos fundos do terreno da fábrica, a enorme Vila Campineira e a Vila Bela, desmanchada para construção da fábrica de celulose. Protegendo o acesso da Fazenda pela Estrada Rio-São Paulo, ficava a Avenida Coruputuba, que hoje é estrada municipal.

Essa disposição estratégica das vilas facilitava que os próprios moradores tomassem conta da imensa propriedade da Companhia, ficando atentos a qualquer movimentação de veículos desconhecidos ou de pessoas estranhas e mal intencionadas.

Os moradores tinham que se sentir bem. Por isto a Companhia lhes garantiu tantos benefícios. O principal benefício foi a moradia gratuita. Morar perto do emprego, isto é muito bom para o trabalhador e sua família. Além disto, não pagar aluguel, ter garantia de água encanada, energia elétrica, iluminação nas ruas, manutenção da casa. Poder morar num lugar seguro, com todos os recursos de uma pequena cidade. Isto é muito valioso para o trabalhador.

E isto era o primeiro item do controle social. Aquela grande comunidade era formada por milhares de pessoas que se comportavam dignamente, educadamente, com raríssimas ocorrências desagradáveis. Milhares de pessoas que trabalhavam bem e não davam trabalho para a administração.

Ao primeiro sinal de comportamento desregrado, o trabalhador era chamado para uma conversa e, se não fosse ameaçado de perder o emprego, podia ser ameaçado de perder a casa - e isso nenhum trabalhador queria, nenhuma família queria. Perder a casa significava ir morar na cidade e viajar todo dia para ir trabalhar na fábrica. Ter de pagar aluguel na cidade e perder todas as comodidades que tinha conquistado para sua família.

A grande comunidade coruputubense era pacífica e disciplinada. As famílias usufruíam dos benefícios disponíveis, respeitando as regras e as recomendações.

Uma vez parou em frente de casa um senhor de bicicleta, bateu palmas, quando atendemos ele falou: Olha, vocês esqueceram de apagar a luz da varanda!.

Vejam só. Não era um guarda. Era um morador de outra vila, pessoa que a gente nem conhecia. Estava cumprindo o dever dele, de nos avisar. Nós agradecemos e nunca mais deixamos a lâmpada acesa de dia.

Meu pai, contratado pela Companhia, dava aulas noturnas para os trabalhadores que não tinham completado o primário. E era importante que todos os trabalhadores fossem ensinados a ler e escrever. As máquinas modernas que estavam sendo instaladas na fábrica tinham instruções para montagem e operação, precisavam ser manuseadas por quem soubesse ler os manuais.

Houve um tempo em que as aulas do meu pai eram dadas numa sala do grupo escolar. Depois, passaram a ser na nossa casa, as mesas de tábua e os grandes bancos ocupavam a sala e um dos quartos. Papai fazia a chamada, distribuía os cadernos, passava as lições no quadro negro, explicava, tirava as dúvidas, dava as tarefas para casa.

No dia seguinte, cedinho, levava para o chapeiro o resumo da chamada. Os alunos que tivessem faltado à aula tinham o cartão de ponto retido. Se não tivessem motivo justificado para a falta, tinham desconto no dia de trabalho. Isto fazia parte do controle social da Companhia, que estava pagando a alfabetização deles.

Numa época em que todos os fogões ainda eram a lenha, todos podiam lenhar debaixo dos eucaliptos, mas era proibido catar pau de lenha da grossura de uma garrafa. Os eucaliptos eram importantes para servir de combustível para as caldeiras da fábrica. As árvores que fossem cortadas pelos trabalhadores eram picadas e os paus empilhados corretamente, para serem transportados. No meio do eucaliptal encontrávamos essas pilhas de paus bem organizadas, com uma lista de tinta branca cobrindo a pilha de fora a fora, para evitar que alguém retirasse algum dos paus para levar para casa para servir de lenha.

Era a Companhia exercendo o controle social da população.

Tudo que era da Companhia era preservado por todos os moradores. Mesmo os moleques que andavam com estilingues podiam até dar pedradas nos cachos de coquinho, mas nunca atiraram contra as lâmpadas dos postes. Isto seria muito grave, a família seria punida pela Companhia.

A casa e o quintal de cada família era como se pertencesse mesmo àquela família. Ninguém entrava sem ordem. Mas, em caso de necessidade, a Companhia mandava funcionários tomar providências. No fundo do nosso quintal havia um belo coqueiro, atrás da última bananeira, quase encostado no muro da fábrica. Um dia encontramos o coqueiro caído, cortado quase pela raiz. Entendemos o que aconteceu. Funcionários da fábrica pularam no nosso quintal, certamente com escada, e derrubaram o coqueiro, porque ele já estava encostando na fiação elétrica dos postes da marcenaria.

E estava certo. Tudo tinha que ser feito para preservar a fábrica, que era a fonte de sustento de todos os moradores.

Coruputuba era isso. Uma grande comunidade, onde todos se sentiam responsáveis por todos, cuidando da preservação dos progressos conquistados.