quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Debaixo das minhas asas

 


Escola da Vila Zezé, fincada no morro, no meio da subidona, o trecho mais íngreme da Francisca Júlia. As ruas do morro todas com nomes muito sonoros: Para chegar à escola, descendo do Conjunto São Benedito, onde eu morava, podia escolher a rota: passar pela Olavo Bilac ou pela Machado de Assis. Uma ou outra me obrigariam a continuar pela Martins Fontes.  O caminho mais costumeiro envolvia a Vicente de Carvalho. Mas ir pela Casimiro de Abreu só quisesse, por alguma razão, encompridar a distância. Eu estava rodeado pelos poetas.

De vez em quando amanhecia um cadáver numa das esquinas. Fora as notícias de arrombamentos, assaltos. No meio disso tudo, a escola até que era respeitada. Quer dizer, de noite já estava complicando um pouco. Mas complicou mesmo quando a cozinha foi arrombada num final de semana. Tristeza, indignação. Mas nos conformamos, trocamos a fechadura, não dava para saber quem foi.

Arrombaram de novo, noutro fim de semana. Agora foi a diretoria. Mas não levaram nada, só deixaram as coisas reviradas. Então pusemos uma grade entre o galpão e a diretoria. Eles vão voltar, eu disse. Porque não aconteceu nada para eles e eles estão ganhando coragem.

Voltaram mesmo, com tudo. O portão de grade amanheceu aberto, sem ter sido arrombado. O cadeado também foi levado. É que alguém entrou pelo vitrô, arrancando o vidro, e, alcançando a diretoria, assumiu a posse de todas as chaves e fez o que quis, ou o que foi possível. Muita coisa desapareceu: calculadora, gravador, máquinas, equipamentos da secretaria... Ficou um pouco de sangue no vidro partido da janela.

Senti pelo sumiço de minha ampulheta de areia amarela, lembrança da escola do Jardim Flórida. Depois encontrei os cacos no galpão, rodeados de areia colorida...

Agora não dá mais: é necessário saber quem está fazendo isso. Pelo bem de quem está fazendo isso, inclusive. O ponto de partida era o zunzunzum que vagamente nomeava uma meia dúzia de peraltas.

Comecei interrogando o mais frágil deles. Pelas afirmações, contradições e hesitações, logo tive a ficha completa: quem entrou primeiro, de quem foi a ideia, quem levou o quê. Eram todos alunos da escola, menos um. O José, quatorze anos, não era aluno da nossa escola. Morava na Vila Zezé, mas estudava na escola de um bairro vizinho.

Comecei uma peregrinação pelo morro. Batia palmas no portão. Quero falar com a sua mãe. – Por favor, o seu filho trouxe para casa um objeto assim, assado? – Ué, trouxe sim, ele falou que comprou de fulano, ou ganhou de beltrano... – Bom, a senhora, por favor, dá uma espiada no número do aparelho, vê se tem este número aqui. Se tiver, então é da escola, que entraram lá, pegaram um monte de coisa...

Quando a mãe aparecia de novo, vinha pálida, com o aparelho na mão, com uma cara que até daria dó, se fosse o caso. Mas não era o caso. Fiz um acordo com os responsáveis de cada criança: eu não tomaria providência nenhuma contra ninguém, não daria punição nenhuma, com uma só condição: que as crianças não faltassem mais às aulas. Uma falta que fosse, já era necessário que o responsável passasse pela escola para justificar.

E com o pai do José foi um pouco diferente. – Por que o senhor deixa ele estudar em outro bairro, ainda mais à noite? – Ah, é que ele prefere... – Mas por acaso o senhor sabe se ele está frequentando lá direitinho?  – Ah, tá sim, ele sai de casa toda noite, com o caderno debaixo do braço... – E ele chega lá, ele entra na escola? – Ah, decerto que sim... – Mas o senhor tem ido lá na escola dele, perguntado como ele vai indo?

O pai coçou a cabeça, não tinha muito tempo, não dava para ficar indo lá no outro bairro...

Combinei com ele a mesma coisa que tinha combinado com os outros: nenhuma providência tipo B.O. desde que o menino se transferisse para a minha escola imediatamente. O pai se espantou um pouco, depois ponderou que seria preciso o garoto concordar... E ficou assim, o senhor conversa com ele, se ele quiser se matricular na minha escola tudo bem, não faço o B.O. Eu espero até hoje à tarde.

À tarde o José apareceu, queria falar comigo. E o milagre já tinha sido consumado nessa apresentação, porque um garoto vir se apresentar na mesma escola que ele arrombou na semana passada, sabendo que o diretor sabe que foi ele, já é um milagre. Mas ele achava que milagre era o diretor querer a sua transferência para a escola arrombada.

Nós dois ficamos meio comovidos. Estávamos no jardinzinho da escola e o céu estava azul brilhante no meio das nuvens brancas. Naquele mesmo dia, de manhã, tinha havido um tiroteio no fundo do terreno da escola, e foi possível puxar com o garoto um assunto assim: Você está numa encruzilhada, você está vendo aonde vai dar um caminho, você sabe aonde vai dar o outro caminho, você pode escolher...

O José fez sua escolha. Matriculou-se mesmo. Frequentou direito. Quando faltava, vinha o pai imediatamente justificar. Todos os professores, funcionários, as merendeiras, colaboraram muito, compreenderam a delicadeza daquele momento. Repetiu a sexta série, porque tinha tido muitas faltas lá na outra escola. Mas estava encaminhado, graças a Deus! Aliás, os outros garotos protagonistas do arrombamento e do furto também se recuperaram.  Todos eles já com excesso de faltas, passaram a frequentar regularmente a escola.   Quer dizer, todos menos o Valtinho. Mas esta é outra história.

E o que me levou a agir assim, trazendo-os para cá em vez de despachá-los para lá? Acho que uma parte de mim se sentia como uma espécie de galinha choca, que pode implicar com seus pintinhos, mas não os expulsa.  Pelo contrário, ela abre as asas e os chama para o aconchego quando faz frio, quando o vento está forte demais...

Ou quando um gavião faminto sobrevoa o quintal. 

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Texto: PAULO TARCIZIO DA SILVA MARCONDES 

- Livro "Aconteceu na Escola". Gráfica Viena, 2012.

FOTO: https://www.universal.org/noticias/post/c