terça-feira, 22 de novembro de 2011

Por cima da cidade


Marreca d’água passou em bando sobre a cidade, meio flutuando parece, parece que meio voando de lado. Umas doze marrequinhas, irerê. Era de tarde, quase escurecendo, céu ainda claro. Piavam: I-re-rê! I-re-rê! E voltaram, em curva, como quem vai para o lado do Bosque, do Paraíba, da Serra...

Marreca d’água me contou: Seca está durando muito!

Duas semanas depois, começou a chover. Choveu manso, que que é isso, imagina, outubro sem chuva de plantar milho! Depois, de repente, choveu bastante mesmo, choveu pesado, com céu escuro.

Daí saiu içá e já era metade de novembro! Seca estava durando muito. Içá e sabitu já estavam prontos para voar e casar, mas cadê chuva? Sem chuva não tem jeito, o chão estava muito duro, como que a içá ia cavoucar seu ninho? Ela precisa entrar no chão uns sete ou oito centímetros para botar os primeiros ovinhos.

Bom, agora, com a chuva, içá voou. Um dia só, um domingo só.  Mas passarinho ficou contente, comida boa. Festa para bem-te-vi, suiriri... até tesoureiro apareceu, balançando no fio do poste.

Juriti veio para a cidade, começou a disputar comidinhas com os pombos da cidade. Mas gavião carijó vem atrás, fica sentado lá no alto das pinhas do Museu, olhando, olhando, de repente cai num voo flechado, pega a juriti. E os pombos se espalham, assustados igual em tarde de foguetório.

Quem parou de passar por cima da cidade foi maitaca. Também, setembro acabou, já formaram os casaizinhos, não precisa mais passar gritando, batendo as asas verdes.


Agora é esperar dezembro, janeiro, bigodinho cantando nas árvores, debaixo da chuva miúda.

* * * * *
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

Fotos emprestadas de:
olhares.uol.com.br
fotosdocotidiano.blogspot.com

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Metamorfose

Naquele tempo, tudo o que eu sabia
era uma folha verde, ampla como um campo,
e a minha verdade era aquilo, a minha folha
imensa: berço, alimento e casa.

 
Depois, o alimento repugnou-me (tanta gula!)
e recolhi-me contrito, envolto em mim:
a minha verdade foi o silêncio e a paz.


Mas (tudo muda?) o que teci para mim
foi ficando pequeno demais quando
a energia nova inflou minhas artérias:

então, grande e belo, abri de vez minhas asas novas
e não neguei meu corpo para o espaço.



Hoje o vento me ensina ritmos
entre as flores e o azul:
minha verdade agora é o Sol.

*  *  *

Poema de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Livro “Terra Vegetal” – Reg. Biblioteca Nacional: 133.608

As fotos tomei emprestadas destes blogs:
João Martins 08 - redecurumimsantana.blogspot.com
portalsaofrancisco.com.br
uketag795.blogspot.com
nandalf.blogspot.com

domingo, 13 de novembro de 2011

O fim do Galo Índio


O galão do Seu Luizinho era um legítimo galo Rhodes. Forte, peitudo, todo vermelho, parecia um rei grande, gordo, coberto com um lindo manto de penas brilhantes. As esporas eram longas e bonitas, mas não serviam como arma de guerra, pois eram muito curvas.
Diferente do nosso Galo Índio, que era magrão, comprido, esporas retas e afiadas. Mas a diferença principal: o nosso galo não tinha crista, nem barbela. Assim não ficava exposto a grandes ferimentos. Coitado do galão do Seu Luizinho: tinha uma crista enorme, tão grande que ficava até meio dobrada na ponta, como se fosse cair por cima dos olhos...
As brigas começaram logo que o Galo Índio ficou adulto. Eram brigas à toa, através da cerca de taquara. Nenhum dos dois se feria, apenas ficavam horas se provocando, tentando se bicar. Minha mãe mandava a gente separar, mas eu e o Pedro não queríamos separar não. A gente queria ficar vendo a briga.
E um dia um pensamento muito mau tomou conta das nossas cabeças. Nós pegamos o Galo Índio e o jogamos por cima da cerca, no quintal do Seu Luizinho. Nossa Senhora! O galão vermelho bateu as asas, deu uma ciscada no chão, fingiu que estava comendo algum grãozinho, veio vindo... E o nosso Galo Índio enfrentou. Foi uma briga feia.
Quando vimos que o galo do Seu Luizinho estava ficando machucado nós corremos para a rua, fomos até o portão do vizinho e, muito fingidos, chamamos: Seu Luiz, Seu Luiz, deixa a gente entrar pra pegar o nosso galo que pulou aí no seu quintal!
Só que voltamos a cometer o mesmo pecado mais umas duas ou três vezes. O Galo Índio foi ficando cada vez mais valente. E o galão do Seu Luiz cada vez mais machucado e assustado, até que ele afinou de uma vez e não chegava mais perto da cerca, nem cantava mais.
Então o Seu Luiz deu um fim nele e comprou um galo índio muito feroz.
Eu fiquei com muito medo e falei: Pedro, não vamos mais jogar o galo lá, que é capaz de ele se machucar.
Nós não jogamos mais o galo na casa do vizinho. Mas um dia eles começaram a brigar pela cerca. E nem eu nem o Pedro estávamos em casa para apartar. A gente tinha saído para ir comprar um porquinho na Vila Campineira.
Quando chegamos, a tragédia já estava feita. O Galo Índio, o nosso querido Galo Índio, estava dependurado na cerca, sem poder se defender. Ele tinha enfiado a espora no arame da tela, durante a briga. Agora, sem conseguir sair de lá, ficava entregue às bicadas do inimigo. Estava sangrando muito.
Recolhemos o nosso amigo ferido. A Vó ajudou a gente, demos um banho de água morna, passamos vinagre nos ferimentos. Mas ele estava perdido. As armas do inimigo tinham furado o seu papo. A Mãe falou que tinha que matar. O Pedro chorou, falou que podia matar, mas ele não ia comer nem um pedacinho. Eu também falei isso.
Realmente, naquele domingo, junto com a macarronada, teve galo ensopado. Todo mundo comeu. Mas eu e o Pedro almoçamos somente o macarrão.
A história acaba aqui...
*   *   *
Não, não acaba não. O Pedro sempre pensou que a história acabou assim. Mas não foi desse jeito. Eu tenho que confessar. Foi o seguinte:
Bem de tarde, depois do futebol, eu passei pela cozinha. A panela estava no canto do fogão de lenha. Eu levantei a tampa: que cheiro gostoso! Que fome! Que apetite!
Eu acabei comendo uma sobrecoxa do nosso querido amigo.
* * *
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Em “Minha vida de menino em Coruputuba”

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O Galo Índio


O nosso Galo Índio era filho da Mãe-do-Galo.
A Mãe-do-Galo era a galinha mais brava do quintal. Só ela que podia dormir no poleiro mais alto do galinheiro. Dali de cima ela bicava com força qualquer galinha ou frango que quisesse sair dos poleiros mais baixos. Ela é que mandava. Bicava até o Galo Índio, e ele não fazia nada.
O Galo Índio era muito bonito. Era vermelho e preto. O Pedro falava que ele era do Flamengo. As penas da cauda eram muito compridas, faziam uma curva bem redonda. Quando ele ficou adulto, as esporas ficaram grandes e perigosas.
Ele não tinha crista e eu achava isso muito bom. O Galo Velho, que tinha sido o rei do quintal antes dele, tinha cristas vermelhas enormes e por isso ficava muito machucado nas brigas. Mas o Galo Índio não. Sem crista ele podia brigar quase sem se machucar.
Eu entendia a fala do Galo Índio. Minhas irmãs falavam que isso era coisa de doido. Mas eu entendia sim. Pela voz dele, sem olhar, eu sabia o que ele estava querendo dizer.
Ele tinha uma fala para chamar a galinhada quando encontrava minhoca ou cupim. Tinha outra fala para avisar que a gente já tinha colocado água na vasilha. E tinha uma voz especial para avisar os pintinhos do perigo, quando passava algum gavião.
Mas saudade de verdade eu tenho de escutar o Galo Índio nas madrugadas frias de lua cheia. Primeiro ele batia as asas três, quatro vezes. Depois cantava comprido, comprido...
Encolhido de frio na minha cama, eu escutava depois o galo branco do Seu Luiz respondendo. Depois o galo amarelo do Seu Moacir... depois, lá longe, lá longe, o galão preto da Dona Antônia. Depois... depois eu dormia de novo.
E só acordava quando o sol nascia e a cabra começava a berrar.
*   *   *
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Veja também O FIM DO GALO ÍNDIO em: 

https://paulotarcizio.blogspot.com.br/2011/11/o-fim-do-galo-indio.html