quinta-feira, 8 de março de 2012

Pipa sem o vento


No fim, o Bosquinho até chorava de tanta raiva e eu ficava muito triste, sentindo-me culpado, mas sabendo que não tinha culpa nenhuma.
Eu tinha caprichado na confecção da pipa, que em Coruputuba a gente chamava de papagaio. Nós dois tínhamos ficado um bom tempo no quintal aparando e alisando as varetas de bambu, acertando com a faca até ficarem quase perfeitas, lisinhas. O papel de seda, comprado no Sebastião Leite, foi cuidadosamente recortado e colado com goma arábica nas varetas em cruz.
O arco da vareta transversal foi estudado com carinho, ficando levemente inclinado para trás, criando uma superfície convexa em baixo, onde o aparelho ia enfrentar o vento. Estendi uma linha ligando as quatro extremidades do losango. A margem do papel foi dobrada sobre essa linha e por fim colada, dando firmeza ao conjunto.
Depois, o cabresto preso em três pontos: as extremidades laterais e a traseira. No vértice desse triângulo de linha amarrei bem firme a ponta da linha que iria comandar a pipa, controlando o seu voo.
Por fim, a rabiola feita de finas argolas de papel de seda. Bem longa, para que a pipa pudesse rabear lá em cima, no meio do azul, aonde só chegam os pássaros mais valentes.
A pipa está pronta, mas eu quero deixar para amanhã a estreia. Não venta, olha Bosco: Olha as folhas mais altas dos eucaliptos, estão paradas, paradinhas. Mas meu irmãozinho não me escuta, quer fazer de mim um estraga-prazeres, insiste, insiste, e vamos para  frente da casa. Vamos para o voo inaugural!
Bosquinho leva para o meio da rua de terra o nosso grande carretel, que é simplesmente uma lata vazia de óleo onde foram enrolados todos os duzentos metros da linha. Desenrolados uns vinte metros, eu me estico ao máximo para ficar segurando bem alto a nossa pipa. “− Vai, Bosquinho!” – e ele sai correndo sem olhar para trás e eu fico olhando a pipa que vai quase arrastada no chão, não sobe, não adianta, não tem vento.
Não tem vento, a pipa chega ao ridículo de ir bicando o chão, o Bosco fica bravo, acha que eu que não levantei bastante a pipa. Tentamos de novo, eu quero parar, não vai dar certo, hoje não, amanhã a gente empina na hora do vento. Mas a pipa se acabou, rebentada, muitas bicadas no chão, a rabiola se esfacelou... Nós dois ficamos meio de mal, meu irmãozinho muito revoltado, que talvez eu que não soube fazer direito, a pipa estava pensa... A gente ficava se estranhando sem razão, eu queria que o Bosquinho nunca sofresse, nunca! Mas eu não comandava o vento.
Houve dias azuis em que o sol dourava os eucaliptos que balouçavam ao vento. Então, as pipas subiam sem que fosse preciso alguém ficar segurando, sem precisar correr pela rua: bastava puxar pela linha, a pipa já começava a bailar a um metro de altura, ia ganhando linha e ganhava altura subindo quase na vertical. Momentos gloriosos, a pipa voando acima dos maiores eucaliptos, até ficar quase imóvel no azul, somente a rabiola desenhando lentas curvas sinuosas...
Depois, bem depois, já adulto, muitas vezes tentei entusiasmar pessoas a assumir alguma participação nas campanhas, nas lutas de sindicatos, na política partidária, na realização de comícios, nos movimentos poéticos, na organização de festas de bairros, nas confraternizações, na adoção de novos modos pedagógicos nas escolas...
Muita vez o vento do entusiasmo pegou para valer, as pessoas vieram participar contentes, lutando juntas, comemorando vitórias, lamentando as frustrações, mas sempre juntas, solidárias.
Porém, quantas vezes eu me senti correndo loucamente pela rua para erguer alto a pipa da realização coletiva – mas, desconfiado, olhava para trás e via que a pipa, ridiculamente, vinha trôpega dando pulinhos na areia da rua. E tive que parar, concluindo triste, mas conformado: não tem vento, vamos − por enquanto − parar de correr.
* * *
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

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