domingo, 5 de março de 2017

Sedução e sabotagem diante do mar


Piscininhas cavadas na areia, bem junto ao mar. Cavadas com os pés, é mais confortável. Tudo para podermos ficar cada um em pé no centro de uma pocinha e, a um sinal, trocarmos de posição. É o que Yasmin quer, mas o vovô aproveita e vai testando canais e transposições, fazendo o conteúdo vazar para a escavação vizinha e desta para a próxima. Yasmin não concorda com essas engenharias, que servem só para desviar a atenção da brincadeira principal.
Súbito, a maré chega, arrasando nossas construções e ficamos ali, repreendendo brandamente a natureza: “Ah, marzinho, por que você está fazendo isto... Olha, ondinha, vem cá, eu dou comidinha para você...” E ela se põe a alimentar as ondas: enche a mão com um bolo de areia molhada e vai distribuindo pequenas porções para cada uma, decidindo o bocado de conformidade com o tamanho da onda. Ondinhas pequenininhas ganham um teco invisível de comidinha, espremidinha no não-espaço dos dedinhos apertados.
Mas agora mudou, vai ser a aposta de corrida paralela ao mar. Os pontos de partida e de chegada são locados (um palito de sorvete, uma tampinha de pet, coisinhas assim). Já se sabe que o vovozinho jamais chegará em primeiro. Começa que Yasmin sabota o sinal de partida. Conta, aos gritos: “Um... dois... três...! ” Mas disparou correndo no “dois”, sendo que todos os outros concorrentes (quer dizer, o vovô) ficaram aguardando o “e já”, que não aconteceu.
Isto se repete umas dez vezes. Na corrida, o vovô sempre se mantém uns dois passos atrás da pequena e também se mantém numa linha paralela: não vá o bichinho tropeçar e o vovô cair em cima!


A seguir, a premiação. Já que o vovô sempre perde, ele fica responsável pela cerimônia. Em altos brados, diante da praia, anuncia, apontando a netinha: “Medalha de ouro! ”. Seguem-se risadas e abraços comovidos.
Na próxima bateria, ela ganha de novo! Mas a qualidade das medalhas vai decaindo, os recursos são limitados, estamos sem patrocinador. O anúncio continua solene. Apontando a campeãzinha: “Primeiro lugar! Medalha de pau!
Seguem-se medalhas de outras substâncias e consistências: medalha de bolacha, medalha de areia, medalha de água, medalha de ventania etc. Ressalte-se que todas essas premiações são completadas por abraços muito efusivos e sorrisos muito abertos.
A prova mais radical acontece só uma vez: quando os dois estão descendo para o mar, deixando as barracas. Esse trajeto é em declive, através da “praia da farofa”, que é o trecho de areia grossa e solta. Yasmin sempre ganha ali também, lançando mão de várias formas de sabotagem e corrupção. “Olha ali, vovô! ” – e enquanto o vovô olha, e não tinha nada para olhar, ela já disparou dando gargalhadas.
De tudo que narramos, pode ficar a impressão de que o vovô é facilmente comandado pela netinha. Mas não é bem assim. Por exemplo, quando o vovô está tomando cerveja na barraca, não se deixa arrastar facilmente pelos chamados da pequena. Insensível, responde-lhe na cara dura: “Ah, agora não dá, meu Sirimim, deixa o vovô conversar um pouco com a mamãe e a vovó...
Mas Yasmin não se intimida diante de tanta brutalidade. Encosta-se lateralmente na mesa, vem deslizando para mais perto, olha bem nos olhos do vovô e murmura: “Pur favor, vovozinho...
Então o vovô se levanta, engole o resto da cerveja e grita: “Corrida na praia da farofa! O último é mulher do padre! ”.
Sabendo que vai perder de novo.
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Fotos de Anamaria Jório Rodrigues Marcondes

quarta-feira, 1 de março de 2017

A órbita do abacate e do chinelo





Numa noite dos começos de 1993, debaixo de um escandaloso céu estrelado, recebi em casa, no quintal,  minha irmã Maria Salete e sua filha Ana Carolina. O assunto rodeou o sistema solar.
Na falta de um quadro de giz – e ainda não tínhamos os computadores – comecei a fazer com elas e com Ana Emília uma viagem interplanetária, dispondo chinelos e abacates pelo chão, para poder demonstrar o que eu ia explicando.
A inteligência aguda de Ana Carolina, e o seu talento com a escrita, fizeram com que, semanas depois, ela expusesse suas conclusões astronômicas através de uma redação escolar. Ela tinha doze anos e estava na sexta série (hoje seria sétimo ano), no Externato.
Há pouco, encontrei o rascunho que ela tinha feito. Mandei para ela e ela me autorizou a publicar o interessante texto neste meu blog.
Interessante também que o texto já começa com um post scriptum, mas tudo bem...
Obrigado, Carol!!! 
Saudade daquelas noites estreladas!

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Ps: Esta história foi tirada de uma explicação que meu tio fez sobre o sistema solar. Ele usava chinelos e abacates para entendermos melhor. Os chinelos são os planetas Mercúrio e Vênus.
 

Nosso sistema solar é formado pelo “abacate central”, dois chinelos que ficam entre o abacate em que vivemos, seu satélite natural, outro abacate e outros chinelos, que vêm depois do nosso abacate.
É muito difícil existir vida no primeiro chinelo, porque fica muito perto do abacate central. O segundo chinelo só pode ser visto de manhã ou tardezinha, perto do astro rei, ou seja, o abacate central.
O nosso satélite, o terceiro abacate, garante-nos as estações do ano. Ele inclina o nosso abacate, onde em um determinado lugar e tempo, uma parte do abacate é mais quente que a outra. A distância entre um chinelo e outro é muito bem calculada, por incrível que pareça. E um detalhe: todos os chinelos têm nomes de deuses da mitologia grega.
Enfim, com a tecnologia, o homem, sem tirar os pés do nosso abacate, descobrirá muitos e muitos chinelos pelo nosso universo.

Ana Carolina Marcondes Dias – 6ª série A – 03/04/1993