terça-feira, 19 de maio de 2020

Corpo fechado



Houve um tempo em que trabalhei na direção da Escola Agrícola de Jacareí, estabelecimento que forma técnicos em agropecuária, onde já funcionou a Fapija.
A Escola Agrícola era muito grande, uma fazenda com benfeitorias, pastagens, um bom resto da Mata Atlântica... Só que para trabalhar sem verba seria melhor que a fazenda não fosse tão grande. Um dos problemas era a extensão das divisas: para cercar decentemente uma área tão extensa teríamos que gastar muito... Ainda mais que não havia como dividir as despesas com os confrontantes: uma avenida, uma escola estadual, uma estrada municipal, uma grande área da prefeitura e, no fundo, o leito do Rio Paraíba do Sul...
Mas finalmente saiu a verba! Vamos fechar a escola! Compramos os mourões, o arame farpado, grampos... Contratamos alguns homens e a cerca foi se estendendo reta, reta, uma beleza, o arame farpado esticadinho, brilhando no sol, atravessando o pasto, apontando para a mata e sumindo dentro dela...
Daí começou a chover, chover. De tarde, os dois homens encarregados da cerca, molhados e esbaforidos, vieram me procurar. Eu estava substituindo o diretor em férias. Estavam nervosos: Seu Paulo, o senhor precisa ver uma coisa que a gente achou dentro da mata. Uma coisa esquisita.
Fui, com chuva mesmo. Atravessamos os pastos atrás do campo de futebol, entramos pela silvicultura e chegamos no mato. Dentro da mata fechada, escura, de repente uma coisa muito bonita e solene: Um espaço varridinho, limpinho, chão batido de muitos passos. Nas beiradas desse círculo, flores, velas, fitas de várias cores... Nos nichos formados pelas grandes raízes, imagens de santos desconhecidos. Um oco numa árvore: dentro, outro santo. Um lugar de respeito: era um lugar de culto.
Os dois homens esperando uma decisão minha. Porque a cerca, se fosse prosseguir no seu caminho retilíneo, teria que cortar ao meio aquele terreiro ornamentado e limpo. O que é que a gente faz, Seu Paulo... E eu decidi: desvia a cerca para fora, invade alguns metros na área da prefeitura, é meio do mato mesmo, ninguém vai se incomodar. Começa o desvio um pouco antes do círculo, volta ao traçado um pouco depois. Assim este terreiro fica inteiro dentro da escola. Ah! E na cerca faz o ziguezague, aquela abertura por onde dá para passar gente, mas impede a passagem do gado. Por quê? Ora, se o pessoal está acostumado a vir fazer suas devoções aqui, vamos facilitar, para que obrigar as pessoas a passar por baixo do arame?
E assim foi.
No sábado de manhã (eu cumpria parte do horário no sábado) vem um senhor moreno, gordo, falar comigo. Apresentou-se, era o Pai de Santo responsável pelo terreiro no meio da mata.  Ele estava comovido. Agradeceu muito por termos respeitado aquele espaço sagrado, elogiou. Desculpou-se, disse que antes não sabia até onde ia a divisa da escola. Ficou feliz também por termos deixado a passagem na cerca. Eu agradeci os agradecimentos. E coloquei uma restrição: não pode edificar nada, nem uma cabaninha.
Ele se tornou um colaborador da escola, ajudando a tomar conta da mata, impedindo invasões, não deixando ninguém cortar árvores na beira do rio... E me convidou para ir tomar um café na casa dele, lá na Bica do Boi.
Fui. Um café gostoso com bolo de fubá. Depois, me perguntou se eu aceitava que ele e a esposa fizessem uma oração em minha intenção. Claro, até agradeço. A oração era, me pareceu, uma adaptação do Pai Nosso. Depois um cântico suave, bonito. Depois outras orações. Quando terminou aquela reza, eu saindo, conversando sobre plantas, flores, que eles tinham na varanda, ele me perguntou se eu sabia o que eles tinham feito. Não, não sei, estou achando que vocês fizeram uma reza em minha intenção, não é?
É. Mas não é só isso: agora o senhor está com o corpo fechado. Nada de ruim vai pegar no senhor, nunca. Não tem perigo.
Agradeci, o gesto deles foi bonito, comovente mesmo. Guardei a informação com carinho, sem intenção de descobrir até onde iria aquela força, sem duvidar nunca - e sem abusar nunca.
Às vezes, tenho conseguido caminhar com sossego no meio de vários tipos de tempestade. Então me sinto protegido por uma espécie de bondade. Talvez a bondade que pratiquei  lá no meio do mato da Escola Agrícola? Na hora, não senti que fosse bondade, senti que era justiça. Fiz o que era certo fazer.

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Texto: Paulo Tarcizio da Silva Marcondes, em Aconteceu na Escola.
Foto: TripAdvisor