Houve um tempo em que trabalhei na direção da Escola Agrícola de Jacareí, estabelecimento que forma técnicos em agropecuária, onde já funcionou a Fapija.
A Escola Agrícola era muito grande, uma fazenda com benfeitorias, pastagens, um bom resto da Mata
Atlântica... Só que para trabalhar sem
verba seria melhor que a fazenda não fosse tão grande. Um dos problemas era
a extensão das divisas: para cercar decentemente uma área tão extensa teríamos
que gastar muito... Ainda mais que não havia como dividir as despesas com os
confrontantes: uma avenida, uma escola estadual, uma estrada municipal, uma grande
área da prefeitura e, no fundo, o leito do Rio Paraíba do Sul...
Mas finalmente saiu a verba! Vamos fechar a escola!
Compramos os mourões, o arame farpado, grampos... Contratamos alguns homens e a
cerca foi se estendendo reta, reta, uma beleza, o arame farpado esticadinho,
brilhando no sol, atravessando o pasto, apontando para a mata e sumindo dentro
dela...
Daí começou a chover, chover. De tarde, os dois homens
encarregados da cerca, molhados e esbaforidos, vieram me procurar. Eu estava
substituindo o diretor em
férias. Estavam nervosos: Seu Paulo , o senhor precisa ver uma coisa que a gente achou dentro da mata. Uma coisa esquisita.
Fui, com chuva mesmo. Atravessamos os pastos atrás do campo de futebol, entramos pela silvicultura e chegamos no mato. Dentro da mata fechada, escura, de
repente uma coisa muito bonita e solene: Um espaço varridinho, limpinho, chão
batido de muitos passos. Nas beiradas desse círculo, flores, velas, fitas de
várias cores... Nos nichos formados pelas grandes raízes, imagens de santos desconhecidos.
Um oco numa árvore: dentro, outro santo. Um lugar de respeito: era um lugar de
culto.
Os dois homens esperando uma decisão minha. Porque a cerca, se fosse prosseguir no seu caminho retilíneo, teria que cortar ao meio aquele terreiro
ornamentado e limpo. O que é que a gente faz, Seu Paulo... E eu decidi: desvia
a cerca para fora, invade alguns metros na área da prefeitura, é meio do mato
mesmo, ninguém vai se incomodar. Começa o desvio um pouco antes do círculo,
volta ao traçado um pouco depois. Assim este terreiro fica inteiro dentro da
escola. Ah! E na cerca faz o ziguezague, aquela abertura por onde dá para passar
gente, mas impede a passagem do gado. Por quê? Ora, se o pessoal está
acostumado a vir fazer suas devoções aqui, vamos facilitar, para que obrigar as
pessoas a passar por baixo do arame?
E assim foi.
No sábado de manhã (eu cumpria parte do horário no sábado)
vem um senhor moreno, gordo, falar comigo. Apresentou-se, era o Pai de Santo
responsável pelo terreiro no meio da mata.
Ele estava comovido. Agradeceu muito por termos respeitado aquele espaço
sagrado, elogiou. Desculpou-se, disse que antes não sabia até onde ia a divisa
da escola. Ficou feliz também por termos deixado a passagem na cerca. Eu agradeci os agradecimentos. E coloquei
uma restrição: não pode edificar nada, nem uma cabaninha.
Ele se tornou um colaborador da escola, ajudando a tomar
conta da mata, impedindo invasões, não deixando ninguém cortar árvores na beira
do rio... E me convidou para ir tomar um café na casa dele, lá na Bica do Boi.
Fui. Um café gostoso com bolo de fubá. Depois, me perguntou
se eu aceitava que ele e a esposa fizessem uma oração em minha intenção. Claro,
até agradeço. A oração era, me pareceu, uma adaptação do Pai Nosso. Depois um
cântico suave, bonito. Depois outras orações. Quando terminou aquela reza, eu
saindo, conversando sobre plantas, flores, que eles tinham na varanda, ele me
perguntou se eu sabia o que eles tinham feito. Não, não sei, estou achando que
vocês fizeram uma reza em minha intenção, não é?
É. Mas não é só isso: agora o senhor está com o corpo
fechado. Nada de ruim vai pegar no senhor, nunca. Não tem perigo.
Agradeci, o gesto deles foi bonito, comovente mesmo. Guardei a
informação com carinho, sem intenção de descobrir até onde iria aquela força,
sem duvidar nunca - e sem abusar nunca.
Às vezes, tenho conseguido caminhar com sossego no meio de
vários tipos de tempestade. Então me sinto protegido por uma espécie de bondade.
Talvez a bondade que pratiquei lá no
meio do mato da Escola Agrícola? Na hora, não senti que fosse bondade, senti
que era justiça. Fiz o que era certo fazer.
......................................................................................................
Texto: Paulo Tarcizio da Silva Marcondes, em
Aconteceu na Escola.
Foto: TripAdvisor