Coruputuba em tarde de sábado
Fui ver meu irmão e a
cirurgia estava marcada para daí a dois dias, e não dava para saber que nosso
prazo estava se esgotando muito depressa. Mas ele não queria conversar nada de
metafísico. Queria conversar sobre Coruputuba, ir lembrando assim casa por
casa, as pessoas, tinha mais ninguém pra gente falar disso. Ué, mas então vamos
falar! Quer ver uma coisa? Lembra disso: “ALCINDO NÃO ESTÁ”? Claro que lembro,
aquela plaquinha que ele punha na varanda. E eu lembro disso todo dia, sabe que
hora? Quando tenho que sair do escritório, que não vou poder atender quem chegar,
eu penduro uma plaquinha assim: “Fui ao Fórum”. Só que ponho o número do meu
celular. Quando a gente ia cortar capim no cafezal atrás da casa dele, eu
gostava de ver o cavalo dele, na cocheirinha. ‒ Isso. Era um ranchinho, com a
charrete. Mas ele saía muito era com a bicicleta. Ah. Pra vir correndo atrás da
gente que estava dando estilingada no cacho de coquinho. Vinha apitando!
Mas Bosco, você lembra que
gostoso nas tardes de sábado? Quando o pessoal do Seu Alcindo varria as folhas
secas em volta do campo? Nossa, até hoje lembro, quando sinto cheirinho de
folha de eucalipto queimando. É, ficava uma fumacinha azulada, demorava... E as
casas da nossa rua, Paulo, vamos ver. A primeira casa.
Era a casa do Seu Totoizinho
e da Dona Marina. Lembra o nome de todo mundo? Não. Eu lembro do Aurélio, do
Ademir... O Lélo, certo? E o Mica. Tinha mais gente. O mais velho acho que você
não lembra, Bosco. Era o Toninho, que casou com a Nilce Duran. Não, não lembro.
Lembro da Dirce. Sim, a Dirce, a Cenira... os menorzinhos não lembro. Nossa, a
gente era bobo. Eles ficavam brincando no tanquinho dos patos e a gente falava
que eles tinham piscina... Dava inveja... Olha, foi na casa deles que a gente
viu coelho pela primeira vez na vida. Eles falavam que era lebre.
Bom, vamos andar mais, a
segunda casa, quem que era? Ué, do Seu Enéas, que a gente ia assistir
televisão. A mulher dele, lembra? Não. Lembro da Maria Amélia. Então, a mulher do Seu Enéas era a Dona Sinhá.
Tinham um filho grande, lembra? O nome não lembro. Lembro que ele andava de
bicicleta, de camiseta branca. Era o Valdemar. Que tinha a história do cachorro
dele. ‒ ? O cachorro que salvou a vida
dele. Ele sempre ia pescar no primeiro tanque e o cachorro latiu, tinha um
jacaré no meio do capim, atrás do Valdemar. O jacaré avançou, catou o cachorro
e entrou na água. Ah, a gente viu o jacaré, quando mataram. Foi. Puseram na
caminhonete, tiveram que dobrar o rabo para caber na caçamba. Um baita de um
jacaré. Bosco, esse jacaré está empalhado, fica no escritório do Patrick. Tinha
uma moça também, fora a Maria Amélia. Era a Dagmar. O Seu Enéas era irmão do Seu
Alcindo. Lembra a família do Seu Alcindo? Não.
A mulher do Seu Alcindo era
a Dona Eulália, professora. Tinha uma filha, uma moça bonita, professora também,
era a Rute. Quando lancei o meu livro consegui contato com ela, estava morando
em São Paulo, tinha uns oitenta anos. Comprou o meu livro. Passei o telefone
dela para o Zaga, que foi aluno dela no primário. Eles conseguiram conversar,
trocar carta, sei lá. Ela já morreu.
E a próxima casa? Seu
Sebastião Leite. Não, tinha uma antes. Aquele bloco tinha três casas. A do Seu
Enéas numa ponta e a do Seu Sebastião Leite na outra. No meio tinha uma casa
que não tinha acesso para o quintal. Não lembro. Era a casa da Dona Basta. O
marido dela era caçador, tinha uns cachorros bonitos, perdigueiros. O Seu
Sebastião Leite tinha uma filha. A Fia. E um menino. Não lembro. Lembro da
vendinha que eles tinham, eu ia lá com a Ana Clara, comprar linha, agulha, sianinha,
dedal...
Depois vinha a casa do Seu
Dimas. Que tinha os pombinhos. Lembra do filho deles? Não lembro o nome. Ué,
era o Vitor. Ele ia em casa para aprender latim. Não sei se com o Pedro ou o
Zaga. Depois vinha a casa do Seu Alberto Duran. Dona Antônia. Carlos Alberto,
Edson, Miguel, Neide, Toninho... Depois os nossos vizinhos, o Seu Luis
Crepaldi, Dona Teresinha, a Sueli, Teresinha, ... Nunca mais vi o Ângelo!
Depois da nossa casa, vinha
a casa do Seu Moacir Amarante. É, Dona Tereza Amarante, Doroti, Zezé, Miltinho,
Leninha... Reparou? Três Teresas vizinhas: Dona Teresinha Crepaldi, a nossa mãe
e a Dona Tereza Amarante. Sim, mas antes dos Amarantes, quem morava lá? Não
lembra... Seu Dolivo e Dona Maria Varela. Ah é. Washington e Robinson. Depois,
o Renato, a Márcia... a Miriam... sim, filhos da Dona Anézia. E na ponta? O Seu
João da Ponta.... da cesta de natal.
Tá bom, me ajuda a levantar,
quero te mostrar o quintal.
Tá vendo aqui, meu
computador. (Pensei, caramba, nesse computador ele já pesquisou tudo sobre a
doença...).
Ah, o quintalzinho gramado,
pé de laranja, hortinha, do outro lado do muro, o bambuzal balançando, a
paineira com bem-te-vi... Depois, fomos ver o jardinzinho: olha, aquela primavera
não é trepadeira, é de pendurar. As flores, bonitas no sol da tarde. O
canarinho, na varanda, cantava baixinho.
Quando voltei, depois da
cirurgia, a conversa não prosperou. Falei bastante, ele olhava para o teto.
Concordava um pouco comigo. Lembrei de novo da história do Alcindo não está,
acrescentei o capim d’angola que a gente procurava para os coelhos e para a
cabra. Sim, ele concordava. A próxima vez já foi na Santa Casa. Eu falava sem
desespero sobre os pombinhos, falava devagar, ele olhava nos meus olhos,
fixamente, eu acariciava suas sobrancelhas, a testa, os cabelos... O que eu
tinha para falar a respeito do céu era isto: a cabrita marrom, os filhotinhos
de coelho, a pombinha cinza, os pezinhos de milho, o cheiro do eucalipto, os
periquitos verdes, o pé de mamão... e o galo cantando de madrugada.
Dormiu, fechou os olhinhos, falei mais um pouco,
fiquei quieto, vim embora...
Dia seguinte, o enterro. E agora, o tempo vai passando. E agora, agora Alcindo não está, Bosquinho não está, Coruputuba não
está, a infância, coitada, não está mais, faz tempo.