Assistindo
aula do Professor Waltinho, na terceira série do ginásio, aconteceu que comecei
a verter sangue pela barriga. Era uma feridinha, que coçava, não sabia o que
era, mas começou a escorrer sangue, mansamente, molhando o uniforme. Quase ao
mesmo tempo, outra feridinha, na garganta, cismou de se manifestar também, fiquei
bem chateado, na sala de aula, com sangue, levantei, nem precisei me explicar
com o meu professor de geografia, ele já foi falando, vai na sala da Dona
Clélia.
A
nossa orientadora educacional ficou espantada, providenciou alguma gaze, limpou,
tapou com esparadrapo, não sabia o que era, pediu a caderneta e escreveu um
recado para minha mãe.
Dia
seguinte, Dona Tereza estava lá no ginásio comigo. Da conversa, surgiu uma
teoria esdrúxula, podia ser um sintoma de sífilis infantil, ou juvenil, eu
tinha uns quatorze anos. Mamãe falou, pode deixar, vou levar ele em Taubaté.
Cedinho,
saímos de casa e fomos, eu e minha mãe, até a estaçãozinha, pegar o expressinho
para Taubaté. Uma paradinha em Pinda, e toca para Taubaté. Daí, fomos para o
Hospital Santa Isabel. A famosa espera, mas com muita atenção do pessoal, em
certo momento vem um prato de comida, muito bom, para mamãe também. Até que nos
chamaram.
Era
um médico bem jovem. Preencheu umas fichas, fez perguntas, quis saber de mim: “Já
desceu?” E eu não sabia o que era que devia ter descido. Ele explicou,
falava dos testículos. Tive que baixar a roupa para ele ver, que sim, os
testículos estavam normais. Eu embasbacado, o que será que isto tem a ver.
Então ele examinou bem as feridinhas, perguntou sobre elas, resmungou um pouco,
começou a preencher uns formulários de receita.
Então
a porta se abriu de supetão e entrou no consultório uma enorme e risonha lenda: Dr.
Tarciso Leonce Pinheiro Cintra. Era diretor daquilo tudo. Cumprimentou todo
mundo, quis ver as anotações do jovem médico: “Hum, sífilis... nessa idade,
não? que coisa...” Sentou-se num
canto e me chamou, tira a camisa, e foi
a vez de ele examinar as minhas feridinhas. Olhou bem, pegou um algodão, deu
uma olhadinha para o médico moço que estava meio paralisado, perguntou assim, dando uma meia risadinha: “Você
estudou medicina tropical, não foi?”
E
deu um espremão no gordinho em volta da feridinha e um negócio espirrou
atravessando a sala e foi bater lá na parede e caiu no chão. Negócio meio
branco meio amarelo com uns pelinhos pretos. Falou para o médico moço: “Alá a
sua sífilis no chão...” Em seguida, coitado de mim, espremeu também a
ferida da garganta, doeu, e outra sífilis também espirrou, não tão
longe.
Dr.
Tarciso se levantou, foi na pia, lavando as mãos, ainda brincando, falou para o
colega novo: “Você precisa ir mais para a roça, isso aí é berne. O menino
não tem sífilis nada.”
Depois,
enquanto me limpava daquilo tudo e fazia um curativo bem legal em mim, foi conversando, sossegado: “Você corta capim, para a vaca? Ah, não? Para a cabra?
Tudo bem. Você leva o feixe de que jeito? Ah, então. Sabe que a mosca de berne
não bota o ovinho no animal, ela bota no capim, sabe que o gado vai passar por
lá, o ovinho vai grudar no pelo do animal, vai virar um berne, que vai entrar
na pele da vaca, da cabra, para se alimentar de sangue e se transformar em mosca. Foi o que aconteceu
com você. Dá um jeito de levar o feixe de capim de modo que não toque na sua
pele. E tudo bem.”
Saímos
de lá bem satisfeitos. Eu tinha conhecido um médico de verdade. Dr. Tarciso
Leonce Pinheiro Cintra. Nunca mais esqueci.
Eu
e o Bosco, daí em diante, começamos a embrulhar os feixes de capim num saco de estopa. A cabra também não teve mais berne.
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Texto:
Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto:
História do Hospital Santa Isabel