“Quero aprender a ler e a escrever”, disse uma analfabeta
do Recife, “para deixar de ser sombra dos outros.”
Paulo Freire
– Professor, por que que não tá tendo
leite?
Nem tinha acabado de trancar a
bicicleta, mas já percebi que a minha Quarta Série “A” estava agitada. O Lincoln e o Ricardo me questionavam: – O
que está acontecendo? Já faz uma semana que não tem leite com bolacha na
entrada!
Fui saber com as merendeiras. Era
verdade mesmo. E mais: a supervisora da merenda já tinha avisado que não tinha
mesmo, paciência, o Departamento ainda ia fazer a compra.
Mas não dá para recomendar paciência
para crianças que desejam uma coisa tão simples, tão básica: beber leite quando
estão com fome. A gente não faz isto com os próprios filhos, não dá para fazer
com os alunos. Lembrando que muitas crianças chegam com fome verdadeira na
escola. Muitos saem de casa sem tomar café. Não são todas as crianças do mundo que têm a graça divina de uma mesa
carinhosamente posta pela Mamãe, com leite, café, chocolate, bolo, danone,
fruta...
Os meus meninos e as minhas meninas
estavam olhando para mim com os olhos compridos. Providências tinham que ser
tomadas. Propus uma carta. A proposta pegou de pronto: É mesmo, professor,
vamos escrever, mas para quem que nós vamos escrever?
O debate durou só um pouco, logo a
classe decidiu que a carta deveria ser para o Prefeito. Gostei da decisão,
própria de gente amadurecida. Aliás, sempre fazíamos na sala de aula discussões
sobre administração do município, vereadores, sociedades amigos de bairro,
direitos do cidadão, deveres dos governantes, coisas assim: cidadania.
Carta para o Prefeito. Muito bem, vamos
fazer o rascunho em
duplas. Terminado o rascunho, tragam para eu ver se a carta
tem os elementos essenciais: local, data, destinatário, mensagem, saudação,
assinatura.
A classe adorava trabalhar em duplas,
mas nem todas as duplas apresentavam resultados rápidos. Algumas ainda se
perdiam em
brincadeiras. Lá veio a primeira dupla com um rascunho que
começava assim: “Olha aqui, Prefeito, se você não mandar leite para nós, a
gente vai chamar a SWAT para prender você...”
Esse rascunho eu nem quis acabar de ler.
Venham pegar de volta essa coisa, estamos tratando de assunto sério. E
entreguei o papel, segurando-o pela beiradinha, como quem segura com nojo a
ponta da cauda de um rato morto.
No final, as cartas saíram boas, cheias
de conteúdo, razões e emoções, tudo de maneira ordenada, letra bonita,
parágrafos bem distribuídos. Alguns alunos aproveitaram e incluíram outros
pedidos além do leite: livros infantis, alambrado no campinho, uma bola...
Prontas as cartas, e agora? Vamos
levá-las ao Prefeito.
Pelas ruas de nossa cidade, lá vamos
nós, eu com as minhas crianças. (Um dia o Clarel cruzou comigo numa dessas
saídas e depois falou que eu estava parecendo a Dona Pata com seus patinhos.
Ainda pego o Clarel de jeito.)
A nossa alegre comitiva parou na cidade
para tirar xerox das cartas, porque as crianças iam entregá-las para o
Prefeito, mas queriam guardar uma cópia na pasta. Entreguei ao Emerson as
moedas, encarreguei-o de fazer o pagamento – ele, que tinha tido tanta
dificuldade inicial com matemática – e foi interessante observar a sua
seriedade em contar centavo por centavo para acertar com a balconista.
Toca para a Prefeitura. Meu antigo professor
Moacir, agora guindado ao posto de Chefe de Gabinete, recebeu a minha turminha.
Óbvio que implicou com os bonés e os piercings,
mas recebeu de bom grado as cartinhas, ficou de entregá-las ao Prefeito,
conversou com as crianças, melhor dizendo: fez a sua preleção sobre escola, estudo,
educação, postura... E voltamos para a nossa Escola do Campo Alegre,
satisfeitos com a nossa atitude.
De tarde, fui para a reunião semanal no Departamento.
Cristo! Parecia um velório, todo mundo falando baixo, colegas me evitando,
olhando para o outro lado. Então a Coordenadora veio me contar, muito
constrangida: a Secretária estava uma
arara comigo. O Prefeito tinha encaminhado o pacotinho de cartas para ela
tomar providências. Uma coisa tão simples, cartinhas de crianças pedindo leite,
virou uma pedrada numa caixa de vespas. Prosseguiu a Coordenadora, visivelmente
chateada: a Secretária falou que aquilo era mais uma graça do Professor
Paulo...
Coitada da Coordenadora, tive que pedir
a ela para levar a resposta para a Secretária: Não, não era nenhuma gracinha do
Professor Paulo. Se fosse para fazer graça, teria recomendado às crianças que
endereçassem a correspondência para a TV Vanguarda, ou a Band Vale, ou a TV
Setorial, ou à Folha de São Paulo... Mas as cartas foram dirigidas exatamente
para quem de direito. Faltou merenda? Vamos escrever para quem? Para o Papa?
Não, para o Prefeito mesmo.
Ora! No meu plano de trabalho daquele
bimestre um dos temas era Carta. E no meu plano de vida de educador um tema
constante é Cidadania. Então, estava tudo certo, eu não estava ensinando nada
errado para minhas crianças.
No dia seguinte, cedinho, frio de
rachar. Mas no balcão da cozinha o caldeirão de chocolate quente soltava
fumacinha. Meus alunos, muito metidos,
chamavam as crianças que vinham entrando: Ó, tem leite! Pode vir que tem leite
com bolacha!
O Ricardo conseguia fazer assim: a mão
esquerda segurava a caneca de chocolate, a mão direita segurava umas três
bolachas e ainda sobrava um dedo, o indicador, para apontar para um
interlocutorzinho da terceira série. Com a boca cheia, ainda dava para falar
assim: – Olha, vocês estão aí bebendo leite, mas é porque nós que fomos
reclamar na Prefeitura!
A Secretária, junto com o leite e as
bolachas, mandou para a escola (claro
que era para o Professor Paulo) um
bilhete explicando que a entrega da merenda não tinha nada a ver com as
cartinhas da véspera, porque a merenda já estava comprada.
Junto com o bilhete veio uma apostila
ensinando a escrever cartas.
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes, escrito em 2002.
Do
livro ACONTECEU NA ESCOLA
Registro
344.938 - Fundação Biblioteca Nacional