quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Como escrever cartas


“Quero aprender a ler e a escrever”, disse uma analfabeta do Recife, “para deixar de ser sombra dos outros.”
Paulo Freire

– Professor, por que que não tá tendo leite?
Nem tinha acabado de trancar a bicicleta, mas já percebi que a minha Quarta Série “A” estava agitada.  O Lincoln e o Ricardo me questionavam: – O que está acontecendo? Já faz uma semana que não tem leite com bolacha na entrada!
Fui saber com as merendeiras. Era verdade mesmo. E mais: a supervisora da merenda já tinha avisado que não tinha mesmo, paciência, o Departamento ainda ia fazer a compra.
Mas não dá para recomendar paciência para crianças que desejam uma coisa tão simples, tão básica: beber leite quando estão com fome. A gente não faz isto com os próprios filhos, não dá para fazer com os alunos. Lembrando que muitas crianças chegam com fome verdadeira na escola. Muitos saem de casa sem tomar café. Não são todas as crianças do mundo que têm a graça divina de uma mesa carinhosamente posta pela Mamãe, com leite, café, chocolate, bolo, danone, fruta...
Os meus meninos e as minhas meninas estavam olhando para mim com os olhos compridos. Providências tinham que ser tomadas. Propus uma carta. A proposta pegou de pronto: É mesmo, professor, vamos escrever, mas para quem que nós vamos escrever?
O debate durou só um pouco, logo a classe decidiu que a carta deveria ser para o Prefeito. Gostei da decisão, própria de gente amadurecida. Aliás, sempre fazíamos na sala de aula discussões sobre administração do município, vereadores, sociedades amigos de bairro, direitos do cidadão, deveres dos governantes, coisas assim: cidadania.
Carta para o Prefeito. Muito bem, vamos fazer o rascunho em duplas. Terminado o rascunho, tragam para eu ver se a carta tem os elementos essenciais: local, data, destinatário, mensagem, saudação, assinatura.
A classe adorava trabalhar em duplas, mas nem todas as duplas apresentavam resultados rápidos. Algumas ainda se perdiam em brincadeiras. Lá veio a primeira dupla com um rascunho que começava assim: “Olha aqui, Prefeito, se você não mandar leite para nós, a gente vai chamar a SWAT para prender você...”
Esse rascunho eu nem quis acabar de ler. Venham pegar de volta essa coisa, estamos tratando de assunto sério. E entreguei o papel, segurando-o pela beiradinha, como quem segura com nojo a ponta da cauda de um rato morto.
No final, as cartas saíram boas, cheias de conteúdo, razões e emoções, tudo de maneira ordenada, letra bonita, parágrafos bem distribuídos. Alguns alunos aproveitaram e incluíram outros pedidos além do leite: livros infantis, alambrado no campinho, uma bola...
Prontas as cartas, e agora? Vamos levá-las ao Prefeito.
Pelas ruas de nossa cidade, lá vamos nós, eu com as minhas crianças. (Um dia o Clarel cruzou comigo numa dessas saídas e depois falou que eu estava parecendo a Dona Pata com seus patinhos. Ainda pego o Clarel de jeito.)
A nossa alegre comitiva parou na cidade para tirar xerox das cartas, porque as crianças iam entregá-las para o Prefeito, mas queriam guardar uma cópia na pasta. Entreguei ao Emerson as moedas, encarreguei-o de fazer o pagamento – ele, que tinha tido tanta dificuldade inicial com matemática – e foi interessante observar a sua seriedade em contar centavo por centavo para acertar com a balconista.
Toca para a Prefeitura. Meu antigo professor Moacir, agora guindado ao posto de Chefe de Gabinete, recebeu a minha turminha. Óbvio que implicou com os bonés e os piercings, mas recebeu de bom grado as cartinhas, ficou de entregá-las ao Prefeito, conversou com as crianças, melhor dizendo: fez a sua preleção sobre escola, estudo, educação, postura... E voltamos para a nossa Escola do Campo Alegre, satisfeitos com a nossa atitude.
De tarde, fui para a reunião semanal no Departamento. Cristo! Parecia um velório, todo mundo falando baixo, colegas me evitando, olhando para o outro lado. Então a Coordenadora veio me contar, muito constrangida: a Secretária estava uma arara comigo. O Prefeito tinha encaminhado o pacotinho de cartas para ela tomar providências. Uma coisa tão simples, cartinhas de crianças pedindo leite, virou uma pedrada numa caixa de vespas. Prosseguiu a Coordenadora, visivelmente chateada: a Secretária falou que aquilo era mais uma graça do Professor Paulo...
Coitada da Coordenadora, tive que pedir a ela para levar a resposta para a Secretária: Não, não era nenhuma gracinha do Professor Paulo. Se fosse para fazer graça, teria recomendado às crianças que endereçassem a correspondência para a TV Vanguarda, ou a Band Vale, ou a TV Setorial, ou à Folha de São Paulo... Mas as cartas foram dirigidas exatamente para quem de direito. Faltou merenda? Vamos escrever para quem? Para o Papa? Não, para o Prefeito mesmo.
Ora! No meu plano de trabalho daquele bimestre um dos temas era Carta. E no meu plano de vida de educador um tema constante é Cidadania. Então, estava tudo certo, eu não estava ensinando nada errado para minhas crianças.
No dia seguinte, cedinho, frio de rachar. Mas no balcão da cozinha o caldeirão de chocolate quente soltava fumacinha.  Meus alunos, muito metidos, chamavam as crianças que vinham entrando: Ó, tem leite! Pode vir que tem leite com bolacha!
O Ricardo conseguia fazer assim: a mão esquerda segurava a caneca de chocolate, a mão direita segurava umas três bolachas e ainda sobrava um dedo, o indicador, para apontar para um interlocutorzinho da terceira série. Com a boca cheia, ainda dava para falar assim: – Olha, vocês estão aí bebendo leite, mas é porque nós que fomos reclamar na Prefeitura!
A Secretária, junto com o leite e as bolachas, mandou para a escola (claro que era para o Professor Paulo) um bilhete explicando que a entrega da merenda não tinha nada a ver com as cartinhas da véspera, porque a merenda já estava comprada.
Junto com o bilhete veio uma apostila ensinando a escrever cartas.
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes, escrito em 2002.
Do livro ACONTECEU NA ESCOLA
Registro 344.938 - Fundação Biblioteca Nacional

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

DESIDERATA


Siga placidamente entre o ruído e a pressa, e lembre-se de quanta paz pode haver no silêncio.
Tanto quanto possível sem humilhar-se, mantenha-se em bons termos com todas as pessoas.
Fale a sua verdade, mansa e claramente. E ouça aos outros, mesmo aos tolos e ignorantes: eles também têm a sua história.
Evite as pessoas ruidosas e agressivas: elas são vexantes para o espírito.
Se você se comparar com outros você pode se tornar superficial e amargo, pois sempre haverá pessoas maiores e menores que você.
Encha-se de prazer tanto com as suas realizações quanto com seus planos.
Mantenha interesse na sua carreira: mesmo que humilde, é um patrimônio real na mutável sorte dos tempos.
Seja cauteloso nos seus negócios, pois o mundo está cheio de armadilhas. Mas não deixe que isto o impeça de perceber o quanto de virtude existe.
Muitas pessoas lutam por ideais elevados, e em toda parte, a vida está cheia de heroísmo.
Seja você mesmo. Sobretudo, não simule afeição e nem seja cínico sobre o amor, pois, no meio de tanta aridez e desencantamento, ele é perene como a relva.
Aceite, de bom coração, o conselho dos anos, graciosamente deixando as coisas da juventude.
Cultive a força do espírito para se proteger nas surpresas da sorte adversa.
Não se desespere com perigos imaginários: muitos temores têm sua origem no cansaço e na solidão.
Ao lado de uma sadia disciplina, seja gentil para consigo mesmo.
Você é filho do universo, não menos que as estrelas e as árvores: Você tem o direito de estar aqui.
E, mesmo que isto não seja claro para você, o universo vai cumprindo o seu destino.
Por isto, esteja em paz com Deus, como quer que você o conceba.
E, quaisquer que sejam os seu trabalhos e as suas aspirações, na barulhenta confusão da vida, mantenha-se em paz com a sua alma.
Com toda sua falsidade, tédio e sonhos partidos, o mundo ainda é bonito.
Seja cuidadoso.
Lute para ser feliz.

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DESIDERATA - Do Latim Desideratu: Aquilo que se deseja, aspiração.
Este texto foi encontrado na velha Igreja de Saint Paul, Baltimore, datado de 1692.
Foi citado no livro "Mensagens do Sanctum Celestial", do Fr. Raymond Bernard.
O texto é de Max Ehrmannn e foi registrado pela primeira vez em 1927.
Hoje em dia pertence à © Robert L. Bell.

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Tradução de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Publico este texto no meu blog como um presente para todos os leitores.
Recebi de presente este texto, em 1992, do meu amigo Juracy Trindade.