Amigo é coisa para se guardar
No lado esquerdo do peito
Mesmo que o tempo e a distância digam "não"
Fernando Brant e Milton Nascimento
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Fazenda Coruputuba, em Pindamonhangaba, 1958.
O quarto ano estava quase terminando e um acontecimento, feito um presságio, rondava o ar, entre as nuvens brancas que iam se encastelando no horizonte, por trás dos eucaliptos: quem vai ganhar a bolsa?
A Companhia Cícero Prado presenteava com uma bolsa de estudos o aluno que tirasse o diploma do primário em primeiro lugar. Naquele tempo, a conclusão do primário conferia um diploma, com cerimônia de entrega, com padrinhos, missa em ação de graças, festinha no galpão etc. O curso primário tinha terminalidade.
Meu irmão José Pedro tinha conseguido o prêmio quatro anos antes, e já estava completando o ginásio na cidade. Apesar de ser gratuito o curso, pois o ginásio era estadual, havia muitas despesas envolvidas: transporte, uniforme, livros, cadernos e tudo o mais, que todos os pais sabem disso. Tudo precisava ser comprado, ainda não existia a noção de acesso democrático à educação, a escola nada fornecia, mas exigia tudo: sem material não entra, sem uniforme não entra, sem sapato preto não entra – e assim por diante.
Por isto, a bolsa ofertada pela Companhia era desejada por muitos, e disputada por poucos. Meu irmão Luiz Gonzaga, dois anos antes, tinha obtido o segundo lugar na disputa, deixando de ganhar a bolsa, que ficou com o Anderson Balbo, mas o Zaga foi para o ginásio assim mesmo.
Agora, a esperança da família era que eu tirasse o primeiro lugar e pudesse continuar os estudos sem muito aperto para a família. Naquele ano, os professores comentavam que o primeiro lugar seria obtido ou por mim ou pelo Américo Yoshinaga, meu colega na classe do Professor Toninho Calixto.
Estudávamos de manhã, mas o Américo, à tarde, cursava o preparatório para a admissão ao ginásio. Nos exames finais disputamos as melhores notas prova por prova. E acabamos empatados em primeiro lugar. Nós dois empatados significava: metade da bolsa para cada um.
Esta era a minha expectativa, enquanto penteava o cabelo diante do espelho do bufê, exagerando na brilhantina. E era este o meu pensamento ainda, entrando no cinema lotado, de braço dado com a Shirley, minha madrinha, numa longa fila dupla de alunos e alunas, madrinhas e padrinhos, todos com a melhor roupa disponível. Minha irmã Ana Clara era a madrinha do meu amigo Adilson Rodrigues.
Bailados, cantos, danças, coreografias com borboletas de asas roxas, azuis, vermelhas... E eu esperando, sentado no cinema quentíssimo, esperando a metade da bolsa.
Chegado o momento supremo, o diretor da escola, Prof. Frederico, anunciou: dois alunos haviam lutado como leões para ganhar a bolsa – e terminaram empatados. Eu, um dos leões (e isto ia gerar mais um apelido irônico entre os irmãos), ficaria com a metade. A outra metade iria para o leão de olhinhos orientais, o Américo. Mas – prosseguiu o diretor – os pais do Américo, o Sr. Soichiro e a Dona Yae, haviam aberto mão de sua metade da bolsa, deixando-a toda para mim!
Mais tarde, os professores me contaram que o Sr. Yoshinaga, agricultor na Vila Campineira, lhes dissera que o Américo iria estudar mesmo, de qualquer jeito, com ou sem a bolsa, e os Yoshinaga sabiam das dificuldades da minha família.
No ano seguinte à nossa formatura, os Yoshinaga mudaram-se de Pindamonhangaba e nunca mais os encontrei. A vida toda, nestes cinquenta anos, aguardei a oportunidade de um dia poder agradecer ao Américo a nobreza do gesto de seus pais. Quando se comemorou o centenário da imigração japonesa no Brasil, ajudei a organizar as festividades, como diretor da Cultura na cidade. Mas não obtinha notícias concretas dos Yoshinaga.
Agora, pela internet, reencontrei o Nelson e o Américo e, com eles, episódios de minha infância.
O nome dos Yoshinaga era pronunciado com respeito em minha casa. Nelson tinha sido colega de classe do Luiz Gonzaga. José Pedro tinha estudado com o Acácio e com os primos Daikichi e Setsuo. Papai, que reconhecia e valorizava nas pessoas o talento e a seriedade, tinha grande apreço pelos pais e pelos irmãos do Américo. E um carinho especial pelo Renato, para quem dava aulas em nossa casa. Eram aulas enciclopédicas, de várias matérias.
Quando contei esta historinha na internet, recebi uma linda resposta do Nelson Yoshinaga:
Paulo:
Penso que nossa infância foi marcada pela felicidade de se morar num local tranquilo, numa época em que as pessoas tinham tempo de cultivar amizades e podiam dedicar-se umas às outras, conhecendo-as melhor. Sem ser saudosista, penso que foi uma época boa e talvez melhor que os dias atuais.
Hoje existe uma pressa quase neurótica que ceifa esse tipo de relacionamento e induz as pessoas a uma velocidade incompatível com relacionamentos como os de antes. Uma pressa que não leva a lugar nenhum nem eleva a produtividade, mas esteriliza as relações humanas conduzindo tudo a um solo semidesértico do isolamento.
Não só as casas se fecham atrás de pesadas grades, como as pessoas, em seus pequenos casulos - acreditando estar fazendo o melhor. Penso que não...
Fiquei muito contente de poder encontrar pela internet esta comunidade virtual onde estão algumas pessoas, relatos e fotos de um tempo passado, mas que são nossas raízes. Sem elas, não teria um passado nem origem. Conto a meus filhos sobre o passado em Pindamonhangaba e agora posso mostrar-lhes como foi essa época - ou ao menos dar-lhes uma ideia.
Essa sua gratidão, caro Paulo, é um sentimento dos mais nobres e dignos das grandes pessoas. É conveniente, contudo, esclarecer que o sucesso profissional - seu e de seus irmãos, se deve ao exemplo de dignidade que foi o professor Marcondes, o melhor exemplo de como a Educação forma e impulsiona as pessoas nas carreiras que escolheram.
Olhando o passado, vejo que fomos todos pobres, mas tivemos força de vontade, tenacidade e muita fibra - o suficiente para podermos galgar o caminho do bem e nos formarmos para ser úteis à mesma sociedade que paga e mantém as escolas. Podemos assim devolver o que recebemos, em prol dessa mesma sociedade - sem o que toda nossa formação não teria o menor sentido.
Estou muito contente de reencontrá-lo e aparecerei aí em Pinda para revê-lo. Abraços.
Nelson
Em outra correspondência, Nelson me contou que a Família Yoshinaga é que sempre se sentia agradecida ao meu pai, Professor Francisco. E explicou: o Renato, irmão mais velho, não podia frequentar escola regular devido a precoces problemas cardíacos. Assim, o Pai Yoshinaga foi conversar com o Pai Marcondes, ficando combinado que em minha casa o Renato teria aulas de todas as matérias, como se estivesse mesmo cursando o ginásio.
E assim aconteceu. Toda tarde meu pai lecionava para o Renato. Do quarto ou da varandinha do jardim, eu ouvia o respeitoso diálogo entre eles, as explicações de meu pai, as respostas ou a leitura do Renato, na sua voz rouca, cansada...
Meses depois, Renato faleceu. Mais alguns meses, meu pai também se foi. Restou a admiração entre as duas famílias.
Então, foi por isto que pude estudar. Procurei honrar o presente que recebi dos Yoshinaga. Sempre levei a sério os estudos, mas sempre me diverti muito estudando. A generosidade do Sr. Soichiro e da Dona Yae não foi em vão. Professor, advogado, poeta, artista plástico: sim, tenho do que humildemente me envaidecer. Mas meu orgulho maior é ser querido pelos meus professores e pelos meus alunos. Uma boa parte dessa construção eu devo aos Yoshinaga. Americo Tomio Yoshinaga: Minha mãe Maria Tereza, em 1958, me dizia que os Yoshinaga gostavam tanto do Brasil, tinham tanta esperança em sua nova vida aqui, que quiseram colocar num dos filhos o nome do nosso continente.
• • •
Este é um capítulo do Livro “ACONTECEU NA ESCOLA”, de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes – Registro na Biblioteca Nacional n. 344.938 – 22.03.2005 – Todos os direitos reservados.