O LAGO DE CORUPUTUBA

A foto acima obtive em 1967 com a minha antiga Bieka. É o lago da Fazenda Coruputuba, em Pindamonhangaba.

sexta-feira, 30 de março de 2012

Mexendo com a Cabeça das Crianças

Papai era um sábio, conhecedor das línguas e das ciências, professor enciclopédico que tanto preparava candidatos ao exame de admissão ao ginásio como dava aulas de reforço de todas as matérias do colégio. Também era muito religioso. Tinha estudado no seminário até quase se ordenar padre. E nos educou com lições de catecismo e leitura semanal da História Sagrada (os católicos não usavam a palavra Bíblia, porque isto lembrava os protestantes).
Todo domingo à tarde, Papai reunia os filhos para a instrução religiosa. As lições de catecismo eram dadas, claro, no Método Catequético, constituído por perguntas fixas e respostas decoradas. Assim: És cristão? / R- Sim, sou cristão pela graça de Deus. / O que é ser cristão? / R- Ser cristão é ser batizado, crer e professar a doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo. / Etc.
À medida que as lições avançavam, íamos entrando em contato com palavras novas, diferentes, atraentes, instigantes. Eu e o Zaga tentávamos descobrir sozinhos os significados, estudando hipóteses, experimentando... Assim foi que chegamos ao capítulo dos Pecados Capitais. O próprio nome do capítulo já era esquisito, mas os nomes dos pecados eram saborosos. Alguns tinham nomes autoexplicáveis: Gula, Inveja, Preguiça... Outros nomes logo decodificamos, por encontrá-los em textos de lições da escola, livros de leitura...
Mas sobrou o pecado “Luxúria”. Inicialmente, pensamos que fosse sinônimo de luxo, mas isto logo foi descartado, não tinha lógica. Depois de quebrar a cabeça, discutir bastante, desistimos e resolvemos: − “Vamos perguntar pro Pai!” − e fomos.
Os dois meninos, com oito e dez anos, perguntaram para um pai muito sábio, mas também muito religioso e pudico: − “Pai, o que é Luxúria?” – e receberam uma resposta direta e indecifrável: − “É o Pecado da Carne.”
Naquele tempo a gente até podia perguntar, mas não podia reperguntar, não podíamos ser especulas. Então, nos recolhemos com a resposta, para analisá-la. Ora, como assim: Pecado da Carne? – eu e o Zaga nos indagávamos (não imaginei carne cozida, assada ou frita, pensava na carne crua e vermelha, pendurada no gancho do açougue).
Pecado da Carne seria uma quebra da abstinência na Semana Santa? Seria negar um pedaço de carne para um pobre? Enfim, o pecado da carne acabava sendo um nome mais misterioso ainda do que Luxúria! Depois de algum tempo acabamos arquivando a nossa ignorância, como se a tivéssemos classificado entre os dogmas, aquelas coisas que não são para entender mesmo.
Meses depois entramos em contato com a palavra Ócio, e sugeri ao Zaga que devia ser o pecado do osso. E demos muita gargalhada, porque já sabíamos que a hipótese era absurda. E na gargalhada estava implícito que nós não tínhamos acreditado muito na resposta do Papai para a Luxúria.
Mas o pudor exagerado de Papai se manifestou mesmo – e isto só fomos compreender vários anos depois que ele faleceu – quando lhe perguntamos o que é Circuncisão.
A Circuncisão – de Lucca Signorelli


Ora, a gente já tinha escutado a palavra várias vezes, porque no dia Primeiro de Janeiro era a Festa da Circuncisão. Mas ficamos desconfiados de que isto se referia a algum ferimento porque, no sermão, o padre falou que aquela tinha sido a primeira ocasião em que Cristo derramou sangue pela humanidade.
− Pai, o que é Circuncisão?
− Era um costume dos judeus, dar um cortinho no calcanhar.
Ficamos com dó do Menino Jesus, coitado, porque tiveram que dar um corte no calcanharzinho cor-de-rosa dele? Só para sair sangue? Costume bobo dos judeus. E Nossa Senhora deixou? Puxa vida, acho que igual quando a Mãe segura a gente para tomar injeção.

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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto2: A Circuncisão – de Lucca Signorelli

terça-feira, 27 de março de 2012

O gosto amargo da infidelidade


Desde a infância, fui torcedor da Associação Esportiva Industrial de Coruputuba. Cresci montado na tábua da cerca do Estádio dos Eucaliptos, escolhendo o lado onde ia ficar o nosso goleiro. Assim, durante o primeiro tempo, presenciava de pertinho a defesa da Industrial. Ali permanecia no segundo tempo, agora para ver de perto os atacantes coruputubenses assediando o gol adversário.
Depois de crescer, desci da tábua da cerca e fui ocupar meu lugar na arquibancada, desfrutando da visão completa do jogo, mas perdendo o calor da proximidade que tinha na cerca atrás do gol.
A camisa grená, ou bordô, da Industrial, aos poucos, foi se tornando mais importante na cidade e na região. Acompanhei os jogos desde os anos cinquenta até os anos setenta. Vi atuações espetaculares de duas ou três gerações de jogadores. Alguns jogadores adeptos do chutão para frente e do carrinho, outros muito tranquilos, bola no chão, organizando as jogadas.
Vi no gol o Nelson Comida, o Zé Assoni, o Nicoletti, o Zé Rosa, o João Bosco e o Marinho Greco – este, o melhor de todos. Na defesa, clássico e inexpugnável, o Toninho Barreira (vejam, parece que estou montando um time de todos os tempos!). Houve grandes jogadores que não ficaram na memória de todos. Não conquistaram nome equiparado ao de Lucas Lopes – este, sem dúvida, o melhor jogador que vi atuar. Mas eu admirava a categoria do Vianor e a velocidade e empenho do Edgarzinho Hardt, o oportunismo do Piolho e a presença segura e criativa do Tó.
Aí surgiu o Zeno, o mais hábil de todos. Mas também o mais debochado, provido de espírito de molecagem: era a alegria da torcida. Para ele, parecia que o objetivo do jogo não era marcar gols. Era dar o maior número possível de vãos-de-pernas e de chapéus. Queria mesmo humilhar os adversários. Zeno trabalhava a bola e chutava sempre com a perna esquerda. No calor de uma jogada caótica na pequena área, parava a bola diante do gol aberto: Vai chutar? Vai marcar um gol? Que nada, calma, primeiro tem que dar mais um vão-de-perna no zagueiro que vem correndo desesperado, depois ainda precisa driblar o goleiro, para depois chutar, senão não tinha graça. A torcida vinha abaixo.
Tudo isto fazia parte das tardes de domingo do lugar maravilhoso em que eu vivia, mas, puxa vida, a fábrica de Coruputuba não tinha emprego para mim. Então, aconteceu que precisei ir trabalhar na AISA e comecei a ficar meio dividido. Morava em Coruputuba, dava aulas em Coruputuba de manhã, mas trabalhava na fábrica de alumínio à tarde e à noite.
Na AISA fui conviver diariamente com nomes já gloriosos no futebol pindense: Mauro Boca, Pitô, Luizinho, Armandão (que jogava na Ferroviária), Carlinhos Chipan... Fui ser colega de ótimos jogadores que estavam subindo. Trabalhava na mesma seção do Pinguim e do Dadá.
Na próxima partida entre a Industrial e a AISA, sentei-me no lado direito da arquibancada, ou seja, no setor reservado à torcida do time visitante. Fiquei no meio dos meus colegas de fábrica, mas meio envergonhado, evitava olhar para o outro lado, não queria que o Zé Mexas me visse ali, Deus me livre do Paulo Pintor me flagrar!
No jogo preliminar, entre os segundos quadros dos dois times, o Pinguim pegou a bola, deu um drible até que bem simples e, mesmo estando fora da área, ficou com visão do gol. Chutou por baixo, para fazer a bola subir. Engraçado que o Pinguim, sendo pequenino, parecia estar fazendo uma força danada para chutar. Mas a bola ergueu voo, fazendo uma curva suave e bonita. Subiu e foi cair dentro do gol, nas costas do Zé Rosa. Eu pulei junto com os colegas de fábrica: − “Gooool! Aí Pinguim!”
Então eu percebi que – claro – só o lado direito da arquibancada estava festejando. Os torcedores da Industrial estavam mudos. Tudo perdeu a graça para mim, fiquei envergonhado: agora, que eu tinha vinte e poucos anos, estava pela primeira vez fazendo festa para os inimigos da Industrial. Disfarcei, fui embora para casa. Não quis ficar para ver o jogo principal. Mas lá de casa não tinha jeito de ficar sem escutar os barulhos, os chutes, os gritos da torcida. A Industrial ganhou, fiquei sabendo depois.
No dia seguinte, na AISA, na hora da janta, só se falava dos dois jogos da véspera. E eu não consegui falar nada, só pude elogiar o Pinguim pelo seu lance de gol, mas perdi a graça completamente. Percebi então, precocemente, que o infiel é infiel para todos os lados. Traí Coruputuba torcendo pela AISA. Traí a AISA me sentindo um torcedor falso, cheio de remorsos.
Infidelidade nunca dá certo mesmo.
  *   *   *
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Fotos: Bons Tempos – Chico de Paula

Associação Esportiva Industrial em 1975:
Ticão, Marinho Greco, Tó, Homero, Ito, Miranda, Thiago e João Bosco.
Jorginho, Kida, Lucas, Tija, Jaiminho, Bodinho, Luizinho e Zezé.

Atlético Aisa em 1974:
Goiano, Carlinhos Chipan, Didi, Ângelo, Teófilo, Robertinho Nazaré, Gilberto e Celso Ribeiro.
Zezinho Preto, Zé Roberto, Rivelino, Adilson Cascão, Luizinho, Pinguim e Orlandinho.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Paulo Tarcizio: O fim do Galo Índio

Paulo Tarcizio: O fim do Galo Índio: O galão do Seu Luizinho era um legítimo galo Rhodes. Forte, peitudo, todo vermelho, parecia um rei grande, gordo, coberto com um lindo manto...

quinta-feira, 22 de março de 2012

A viuvez do Cisne


Na biblioteca do Bosque, o sarau estava começando.  Os jovens do Projeto Guri executaram músicas nos violões, os convidados iam se encorajando para suas declamações, Anamaria entremeava essas apreentações com frases sobre as várias modalidades de arte, a importância da literatura...
Algumas pessoas iam aparecendo na varanda, espiando, depois entravam, as cadeiras iam sendo ocupadas, o auditório estava quase cheio. Então chegou uma professora, amiga da Anamaria, entrou e foi se sentar junto ao balcão de livros. Foi bom ela ter vindo, era a primeira vez que aparecia num evento depois de ter ficado viúva. Ainda bem, está se recuperando!
Dr. Milton declamou um poema de Casimiro de Abreu, o Aparecido apresentou um poema de sua própria autoria, Walmir Renan também se apresentou, uma aluna de violão do Guri declamou um poema dela mesma.
Então, cheio de elevado espírito poético, comecei a declamar com sinceridade o soneto “Os cisnes”, de Júlio Salusse:
A vida, manso lago azul algumas
Vezes, algumas vezes mar fremente,
Tem sido para nós constantemente
Um lago azul sem ondas, sem espumas,

Sobre ele, quando, desfazendo as brumas
Matinais, rompe um sol vermelho e quente,
Nós dois vagamos indolentemente,
Como dois cisnes de alvacentas plumas.

Um dia um cisne morrerá, por certo:
Quando chegar esse momento incerto,
No lago, onde talvez a água se tisne,

Que o cisne vivo, cheio de saudade,
Nunca mais cante, nem sozinho nade,
Nem nade nunca ao lado de outro cisne!

Mas, no meio da declamação, fui me dando conta: Eu não devia estar declamando isto, que absurda a minha escolha! Um poema que fala de viuvez, de separação de duas pessoas que desejavam estar juntas para sempre,mas foram separadas pela morte... Que burrice a minha! A professora deve estar quase chorando, viúva recente, daqui a pouco desaba...

Fazer o quê? Concluí o poema (com a voz embargada) e vi que a amiga estava se despedindo da Anamaria, saiu logo, foi embora, não esperou nem o café.

Durante o intervalo, entre uma bolachinha e outra, comentei com Anamaria: − “Nossa, ela foi embora cedo, será que foi chato eu ter declamado Os Cisnes?”

Anamaria, bebericando o chá, me sossegou: − “Que isso! Imagina! Ela saiu porque tinha um encontro com o namorado.”

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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

terça-feira, 20 de março de 2012

Se Angra explodir...

Numa reunião de diretores de escola, o delegado de ensino nos explicou que ia ser constituída uma comissão de defesa civil visando a tomada de medidas no caso de um acidente nuclear em Angra dos Reis. A comissão seria formada por representantes dos diversos segmentos sociais (é assim mesmo que se escreve: segmento, com g mudo).
Faltava um representante da educação. Eu me ofereci. Só eu. Ninguém mais. Assim, fui relacionado para compor a comissão.
A partir daí, comecei a prestar atenção nos noticiários sobre problemas nucleares. Dediquei-me à leitura da descrição de reatores, propriedades do urânio e de outros metais pesados. Aprendi sobre resfriamento, varetas de controle, fissão nuclear...
Também me pus a estudar as vias de comunicação na região litorânea do Rio de Janeiro e de São Paulo. Não cheguei a perder o sono, mas fiquei preocupado com as maneiras de proceder à evacuação da população, em caso de acidente. Como fazer com as estradas litorâneas? Ficam congestionadas num simples feriadão! O que aconteceria se todos os moradores de Parati precisassem de repente fugir para o Vale?
 
Vocês conhecem a Parati-Cunha? Eu conheço. E afirmo: Não dá!
Quando comecei a usar o Google Earth, o meu estudo ficou mais fácil, vendo de cima a posição das cidades, dos bairros, das ilhas, dos rios... Verificando a altitude dos vários locais, pensando na altura de um tsunami, calculando as devastações.
Quando ficava sabendo de tragédias em outros lugares do mundo, mentalmente transportava o problema para a nossa região, tentava encontrar hipóteses de salvação.
Mas agora andei pensando melhor. Caramba. A reunião com os diretores de escola aconteceu em 1987. Até agora não saiu o meu nome no Diário Oficial como componente da comissão. Aposentei-me do cargo de diretor de escola há mais de treze anos. O delegado de ensino também. E a comissão nunca se reuniu, nestes anos todos. Aliás, a comissão jamais foi formada, ficou só naquela notícia vaga: ia ser formada uma comissão...
Quer saber de uma coisa, não vou mais ficar me preocupando não.
Deus nos livre e guarde! Que Angra continue funcionando direitinho, sem acidentes, sem necessidade de sair todo mundo fugindo. De qualquer forma, deixo bem claro para todo mundo: EU NÃO FAÇO PARTE DA COMISSÃO!
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto Angra: http://areaseg.com
Foto Parati-Cunha: http://www.mochileiros.com

quinta-feira, 8 de março de 2012

Pipa sem o vento


No fim, o Bosquinho até chorava de tanta raiva e eu ficava muito triste, sentindo-me culpado, mas sabendo que não tinha culpa nenhuma.
Eu tinha caprichado na confecção da pipa, que em Coruputuba a gente chamava de papagaio. Nós dois tínhamos ficado um bom tempo no quintal aparando e alisando as varetas de bambu, acertando com a faca até ficarem quase perfeitas, lisinhas. O papel de seda, comprado no Sebastião Leite, foi cuidadosamente recortado e colado com goma arábica nas varetas em cruz.
O arco da vareta transversal foi estudado com carinho, ficando levemente inclinado para trás, criando uma superfície convexa em baixo, onde o aparelho ia enfrentar o vento. Estendi uma linha ligando as quatro extremidades do losango. A margem do papel foi dobrada sobre essa linha e por fim colada, dando firmeza ao conjunto.
Depois, o cabresto preso em três pontos: as extremidades laterais e a traseira. No vértice desse triângulo de linha amarrei bem firme a ponta da linha que iria comandar a pipa, controlando o seu voo.
Por fim, a rabiola feita de finas argolas de papel de seda. Bem longa, para que a pipa pudesse rabear lá em cima, no meio do azul, aonde só chegam os pássaros mais valentes.
A pipa está pronta, mas eu quero deixar para amanhã a estreia. Não venta, olha Bosco: Olha as folhas mais altas dos eucaliptos, estão paradas, paradinhas. Mas meu irmãozinho não me escuta, quer fazer de mim um estraga-prazeres, insiste, insiste, e vamos para  frente da casa. Vamos para o voo inaugural!
Bosquinho leva para o meio da rua de terra o nosso grande carretel, que é simplesmente uma lata vazia de óleo onde foram enrolados todos os duzentos metros da linha. Desenrolados uns vinte metros, eu me estico ao máximo para ficar segurando bem alto a nossa pipa. “− Vai, Bosquinho!” – e ele sai correndo sem olhar para trás e eu fico olhando a pipa que vai quase arrastada no chão, não sobe, não adianta, não tem vento.
Não tem vento, a pipa chega ao ridículo de ir bicando o chão, o Bosco fica bravo, acha que eu que não levantei bastante a pipa. Tentamos de novo, eu quero parar, não vai dar certo, hoje não, amanhã a gente empina na hora do vento. Mas a pipa se acabou, rebentada, muitas bicadas no chão, a rabiola se esfacelou... Nós dois ficamos meio de mal, meu irmãozinho muito revoltado, que talvez eu que não soube fazer direito, a pipa estava pensa... A gente ficava se estranhando sem razão, eu queria que o Bosquinho nunca sofresse, nunca! Mas eu não comandava o vento.
Houve dias azuis em que o sol dourava os eucaliptos que balouçavam ao vento. Então, as pipas subiam sem que fosse preciso alguém ficar segurando, sem precisar correr pela rua: bastava puxar pela linha, a pipa já começava a bailar a um metro de altura, ia ganhando linha e ganhava altura subindo quase na vertical. Momentos gloriosos, a pipa voando acima dos maiores eucaliptos, até ficar quase imóvel no azul, somente a rabiola desenhando lentas curvas sinuosas...
Depois, bem depois, já adulto, muitas vezes tentei entusiasmar pessoas a assumir alguma participação nas campanhas, nas lutas de sindicatos, na política partidária, na realização de comícios, nos movimentos poéticos, na organização de festas de bairros, nas confraternizações, na adoção de novos modos pedagógicos nas escolas...
Muita vez o vento do entusiasmo pegou para valer, as pessoas vieram participar contentes, lutando juntas, comemorando vitórias, lamentando as frustrações, mas sempre juntas, solidárias.
Porém, quantas vezes eu me senti correndo loucamente pela rua para erguer alto a pipa da realização coletiva – mas, desconfiado, olhava para trás e via que a pipa, ridiculamente, vinha trôpega dando pulinhos na areia da rua. E tive que parar, concluindo triste, mas conformado: não tem vento, vamos − por enquanto − parar de correr.
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

segunda-feira, 5 de março de 2012

Medo de boi

Claro que eu tinha medo de boi, mas disfarçava bastante e, de tanto disfarçar, até que acabei diminuindo meu medo. Mais tarde, na vida adulta, cheguei a lidar com gado. Mas, na infância e na adolescência, o duro mesmo era me defrontar com boi solto. Ah, meu Deus, se houvesse uma cerca de arame farpado, eis a salvação! Quanta vez corri e vazei por baixo do arame! E depois fiquei bem contente vendo a boiada passar.
Mas sem arame, fazer o quê?
Pavor eu tinha era quando ia indo cedinho, madrugada, quase noite ainda, junto com o Zaga, para pegar o Pássaro Marrom das seis e cinco no Portão (era assim mesmo, o ônibus tinha esse horário exato!) para ir estudar na Escola Normal - e o Zaga, no Científico.

Às vezes, havia uma boiada no caminho.

Acordávamos com o apito das cinco horas. Era tempo de acender o fogo, passar o café, comer rapidinho, pegar os cadernos e nós dois íamos, no meio do frio, pegar o ônibus na estrada. Passávamos a linha e seguíamos. Daí a pouco, no meio da escuridão, a boiada! Por causa do escuro, ainda não dava para ver os bois, mas já se escutavam os barulhos e se sentiam os cheiros fortes. Quase todos estavam deitados e tínhamos que ir passando no meio deles, aqueles elefantões. E o Zaga tinha mais medo do que eu! Precisava que eu desse coragem para ele!

De vez em quando, um boi bufava, soprando. Outro ficava em pé e sacudia as orelhas, roncava baixo, como um rangido. O barulho me fazia mal, dava um negócio ruim por dentro, mas tinha que continuar fingindo de valente, desviando dos bois e dos montes de bosta... Não havia uma bendita cerca de arame! E não adiantava desviar da estrada e entrar pelos eucaliptos, a boiada estava espalhada no meio das árvores.

Meu Deus, quando conseguíamos finalmente atravessar para o outro lado, que alívio! Mas, assim mesmo, eu seguia olhando mais para trás do que para frente. Até que chegava o Portão e o dia estava começando a clarear. Mais um pouco, a gente escutava o tranco do ônibus passando no pontilhão da Vila São Benedito e via a luz dos faróis iluminando os fios dos postes.

Chegou o ônibus. Vamos para Pinda, estudar de manhã, trabalhar à tarde e só voltar para casa quando estiver escurecendo. Depois começa tudo de novo.

Mas nunca faltamos à aula por causa de boi não deixar a gente passar. Bem capaz!
 
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes