O LAGO DE CORUPUTUBA

A foto acima obtive em 1967 com a minha antiga Bieka. É o lago da Fazenda Coruputuba, em Pindamonhangaba.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Um compromisso que não cumpri



Era um compromisso de infância, que ainda não cumpri e ninguém vai aparecer para me cobrar, para questionar. Compromisso com os canudinhos verdes do milho, brotando no chão molhado da chuva da véspera. Compromisso com aquele sol bonito, amarelo, de manhãzinha cedo, quando tudo tem um cheiro gostoso, um cheiro manso de mato, de flor de capim.

Compromisso de levantar cedo e sair para a roça, depois de tomar café. E, antes de chegar na roça, gastar um tempão escutando os passarinhos na paineira, depois olhando, inocente, o jeito que a galinha choca faz pra chamar os pintinhos, e o jeito que os pintinhos correm, e a cara do cachorro, meio contente, que não sabe se é para ficar parado ou se é para ir correndo adiante...

A vida inteira fico sonhando que um dia estou vendo os meus bois no pasto. Enquanto não tenho os bois, nem terra para eles ficarem, fico vendo o quê? Fico vendo o capim crescendo nos lotes vazios e nos quintais largados. Reparo que o capim cresce depressa.

Mas não dá tempo de mudar a vida e arranjar os bois. Então, alguém vem e corta o capim, ou limpa de vez o lote e constrói um prédio naquele chão que tinha sido verde. E não deu tempo de eu arranjar os bois, nem a terra, nem tempo para sonhar isso direito.

Mas não faz mal. Num cantinho da cabeça, ou do coração, os meus boizinhos estão ficando muito gordos e lindos e eu estou encostado na cerca de um curral que não existe e estou feliz, reparando no jeito que eles vão pastando.

Faz muito tempo que eu saí da roça. Mas sempre penso que um dia vou limpar um pedaço de chão, afofar a terra e ficar esperando as chuvas de setembro para plantar milho – e lanço também umas sementes de feijão-fava, que vai crescer enroscado no pé de milho.

Faz muitos anos que todo ano o meu coração começa a bater diferente quando o frio vai acabando e começa a esquentar. Nesses anos todos, me dá uma espécie de ansiedade quando escuto as primeiras trovoadas. Mas as chuvas vêm e passam e não plantei o milho. Então, fico olhando pelo vitrô o cimento da calçada e as paredes sujas do outro lado da rua.

Meu Deus, quanto milho que já brotou, cresceu, secou – e eu não vi. E as árvores que a gente não plantou, se a gente tivesse plantado, elas haviam de estar altas, fortes... Ah! E a vida passa! Se um dia a gente plantar uma árvore, acho que não vai dar tempo de ver crescer. E as águas que choveram nesses anos todos, elas iam dar para encher o açude que eu não fiz.

As águas já escorreram, foi tudo embora.

* * *
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Primeiro dia de aula



Tudo novo, para as crianças do primeiro ano. Desde o cheirinho da caixa de lápis de cor até o alvoroço de alunos e mães... Parecia um comício, uma quermesse... A menina esperava. Coisas iam acontecer. Alguém fazia uma chamada em voz muito alta e havia muita ansiedade no galpão da escola. Parece que chamaram seu nome e ela foi puxada pela mão até a frente da fila dupla de crianças que, como ela, esperavam...
Aos poucos o caos foi sendo organizado. As mães ficaram separadas de um lado, junto à cozinha, e dali espiavam, olhos compridos. As crianças nas filas, as filas bem retinhas... A menina, por ser a menorzinha, na frente de todos.
As professoras foram aparecendo e ninguém precisava contar que elas eram as professoras. Aquelas senhoras majestosas vinham andando devagar pelo galpão, olhando, inspecionando, e cada uma finalmente se colocou diante da fila de sua classe: agora as crianças já tinham dono. A menina olhava com orgulho a sua professora.
Grande, alta, imponente. Segurava cadernos e listas. O olhar dela descia sobre a fila e todos ficavam quietinhos, muito quietinhos. A professora olhava para baixo, para as crianças. As crianças olhavam para cima, para a professora, esperando...
Então aconteceu uma coisa. A professora prestou atenção na menina. Olhou, depois olhou de novo e ficou parada olhando atenta. Segurou no seu queixinho, reparando bem: “Você não é irmã do José Carlos?”
Que orgulho! Ser reconhecida no primeiro dia de aula! Na frente de todas as crianças. Só ela! Aquela professora grande, uma senhora! Reconhecê-la, falar com ela, em casa ia contar para todos. E falou, sorrindo aberto: “Eu sou!”
A professora largou de repente o seu queixinho, afastou-se um passo, olhou em torno como quem se perdeu. Gritou para a outra professora: “Fulana, olha o que eu peguei: a irmã do Zé Carlos! Pelo amor de Deus, eu mereço! Esse diretor quer acabar comigo, só o que faltava: me dar a irmã do Zé Carlos...”
Na frente de todos, a menina queria chorar, queria a mãe, olhava para o chão, não queria mais olhar a professora, não queria mais escola, não queria mais...
– Vamos, vamos! Quietinhos! Aí, olha para frente! Ô meu Deus!
A fila acompanhou a professora e a menina foi a primeira a entrar na sala de aula, mas não lhe parecia que ela estivesse puxando uma fila. Parecia que a fila a estava empurrando e ela tinha que entrar num lugar onde não desejava entrar.
Ficou com vergonha de ser irmã do José Carlos... E ela que achava o irmão tão bonzinho...

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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Do livro “Aconteceu na Escola”

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Os registros de batizados

 Professor Francisco Fonseca Marcondes
Taubaté, 31/07/1913
Pindamonhangaba, 29/10/1956

Em 1960, quando eu tinha treze anos, cursei o primeiro ano do ginásio no antigo prédio do Instituto de Educação, que funcionava no Palacete Visconde da Palmeira. Cinquenta anos depois voltei a esse mesmo Palacete, para dirigir o Museu, que agora ocupava o mesmo prédio onde eu tinha estudado na adolescência.

Mas outras coincidências iam acontecer.

Era o ano de 2011, centenário da Fazenda Coruputuba e eu dirigia os preparativos no Museu, para uma grande exposição comemorativa, relembrando os tempos do Doutor Cícero Prado.

Fotos da fábrica, da Igreja, do campo de futebol, dos times, de grupos familiares e também reproduções de documentos: livros de marcação de consultas médicas e odontológicas, do tempo do Dr. Chiquinho e do Dr. Lessa, livros de atas das associações religiosas...

E achei os blocos de registros de batismo. Emoção! Eram as segundas vias, que ficavam presas ao bloco, contendo, em carbono, o nome da criança, os nomes dos pais, dos padrinhos, a data de nascimento e a de batismo e a assinatura do padre. Emoção maior: quase todos os registros feitos entre 1951 e 1956 estavam com a letra do meu pai.

De fato, o Professor Francisco Fonseca Marcondes, além de ajudar à missa, ler a epístola, abrir e fechar a capela, também fazia o serviço de secretaria, marcando as missas e preenchendo os blocos de batizado.

Os estagiários do Museu fizeram as fotos desses blocos e passaram para mim as cópias digitais.

Meditei sobre a surpreendente beleza dos caminhos do Senhor. Vejam só: fui colocado trabalhando no lugar aonde iam se cruzar a história do meu bairro, a minha história de estudante que, havia mais de  cinquenta anos, iniciou o ginásio nesse mesmo prédio do Museu – e a história religiosa do meu pai.

No computador, fui arrastando as imagens para o Word até formar blocos por ano para então salvar como PDF. À medida que fazia isto, ia vendo os nomes dos bebês, que hoje estão com sessenta ou setenta anos; os nomes dos pais, que eram amigos ou alunos do meu pai; e os nomes de crianças que, com dez ou onze anos, foram mais tarde meus primeiros alunos na escola de Coruputuba.

À medida que o serviço avançava, também avançavam os anos daqueles blocos de registros. Quando comecei a organizar no computador os batizados de 1956, foi me dando certo mal estar. Janeiro, fevereiro, março: sempre uns três ou quatro batizados por domingo. Abril, maio, junho, julho: eu não queria continuar, a sensação ruim aumentava. Agosto, setembro: Meu Deus, preciso de força para ir em frente! Entrou o mês de outubro de 1956 e então o desgosto foi muito grande.

Meu pai, com a letra firme de professor, reta, vertical, sempre legível, estava registrando os batizados, três ou quatro a cada domingo. Eu olhava aquilo e tinha vontade de avisá-lo: “Papai, seu tempo está acabando!” Mas ele prosseguia registrando e eu ia virando as folhas. No dia sete, três batizados. No dia quatorze, quatro batizados, com a letra dele.

E então acabou. No dia vinte e um a letra já era de outra pessoa: meu pai estava internado. No dia vinte e oito, último domingo do mês, a mesma coisa. Papai faleceu na segunda feira, dia vinte e nove. Continuei montando o PDF para publicação na internet e para imprimir os blocos para a exposição. Mas a tarefa tinha perdido o encanto.

Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Os registros de batizados referidos no texto estão disponíveis em http://www.pindamonhangaba.sp.gov.br/coruputuba.asp