O LAGO DE CORUPUTUBA

A foto acima obtive em 1967 com a minha antiga Bieka. É o lago da Fazenda Coruputuba, em Pindamonhangaba.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Professor Oswaldo Collus e o Teorema de Pitágoras



Nos anos do “ginásio”, como se dizia antigamente (hoje seriam as quatro últimas séries do Fundamental), sofri com a Matemática. Não entendia as lições, e ficava indignado com isto, porque no curso primário tinha ido muito bem nessa matéria. Acontece que estavam sendo apresentadas a mim a aos meus colegas uma série de equações, inequações, teoremas e regras: era a álgebra. No primário tinha sido somente a aritmética.
Durante três anos tive aulas com um professor que certamente sabia muito da matéria, mas nada conhecia sobre a arte de ensinar. Ditava exercícios, mandava resolver as questões do livro, corrigia, dava notas baixas. Mas dava notas altas quando o time dele ganhava – e, infelizmente, ele torcia para um time muito fraco. Também dava notas altas quando, por ocasião do aniversário dele, a gente fazia uma festinha com bolo, refrigerante, parabéns...
No início de nosso último ano do ginásio, apareceu um novo professor, que certamente também sabia a matéria, mas não nos ensinava direito. Um dia, diante de um exercício complicado, disse a ele: “ – Professor, não entendi o exercício!” Ao que ele, sorrindo, me respondeu: “ – Não é para entender mesmo...”
Depois das férias de julho, trocou de novo de professor. Agora, era o Professor Oswaldo Collus. Na primeira aula, ele nos perguntou sobre nossas dificuldades. Quase todos falaram sobre o Teorema de Pitágoras. Porque vivíamos repetindo uma frase que parecia uma reza, um mantra, que não entendíamos, mas sabíamos de cor: “O quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos”. Ou, na versão reduzida, “a²=b²+c²”. 
O Professor nos disse: “É simples”. Foi à lousa, com o giz desenhou um triângulo retângulo com catetos medindo 3 e 4, e com hipotenusa medindo 5. Traçou um quadrado a partir do cateto menor (3X3=9); um quadrado a partir do cateto maior (4X4=16) e, finalmente, um quadrado a partir da hipotenusa (5X5=25). E nos disse: “O quadrado da hipotenusa (no caso, 25) é igual à soma do quadrado dos catetos (no caso, 9+16).
A classe inteira, em uníssono, soltou um “Ah!!!...” Hoje, eu sei que aquela exclamação era um misto de surpresa e de revolta. Surpresa, com a simplicidade do bendito teorema. Revolta, com o fato de termos sido durante tanto tempo submetidos a uma Matemática feita de frases cabalísticas, que não tinham correspondência com o mundo real.
A partir daí, a classe inteira se deu bem com a Matemática, explicada de maneira tão singela. Aprendi a fazer cálculos sempre através de desenhos. Mais tarde, já lecionando, procurei facilitar a compreensão dos meus alunos através de demonstrações gráficas. E nunca me esqueço de como isto começou, nunca me esqueço de quem fez com que eu passasse a gostar de fato da Matemática.
Professor Oswaldo Collus: um mestre de profunda sabedoria – e de persistente gentileza para com seus discípulos.
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Desenho de Pitágoras de Samos

sábado, 22 de dezembro de 2012

O último Natal em Coruputuba


 
1966. Era nosso último Natal em Coruputuba, mas ainda não sabíamos disso. Já éramos moços – e a expectativa dos presentes de Natal não existia mais. Não nos interessavam mais as brincadeiras à noite, diante da Farmácia, debaixo da Paineira iluminada. Tudo isto tinha passado, pertencia à nossa infância, e a infância parecia uma fase muito distante daqueles dias de mocidade.
Os quatro irmãos homens mais velhos: o Carlos, o Pedro, o Zaga e eu, atendemos ao convite do Maestro João Antônio Romão: naquela Missa do Galo, o coro se resumiu a nós quatro. Ao lado do harmônio, nos momentos combinados da Missa, cantamos da melhor maneira que sabíamos, o “Adeste, Fidelis”, a “Noite Feliz”, o “Gloria in Excelsis Deo”... O Bosco, não me lembro por quê, não cantou conosco no Coro, talvez estivesse ajudando à Missa, lá embaixo. Também não sei o porquê de ter o Maestro decidido que naquela noite o coro só teria vozes masculinas. Puxa vida, faltava o maior dos tenores, o Zé Brechó, irmão da Tatá, para completar.
Não éramos mais crianças, apesar de ainda nos empenharmos em cultivar algum encantamento diante do Presépio. O Carlos, havia mais de dez anos, vinha trabalhando no Escritório da Companhia. O Pedro tinha concluído o Científico e estava cursando a Escola Normal. O Zaga, tendo terminado o Científico, estava cursando a Faculdade de Direito. Eu tinha acabado de terminar o Curso Normal e iria, no ano que estava quase começando, iniciar minha carreira de professor, lecionando na escola do bairro. Naquele Natal, eu estava me sentindo um adulto: tinha finalmente espichado e, com dezenove anos, estava da mesma altura dos meus irmãos.
Mas havia em nós um sentimento parecido com o de fim de festa. De fato, apesar de ainda estarmos morando na mesma terra de sempre, parecia que tudo tinha passado, tudo estava se acabando, tudo estava escapando de nossas mãos. O quintal ficou sombrio, porque as árvores cresceram sem controle, o campinho de futebol sob as mangueiras tinha ficado irreconhecível, o mato queria tomar conta da horta, as galinhas estavam meio por conta de si mesmas, já não mantínhamos o controle antigo sobre as criações. Sabíamos que estávamos quase indo embora? Não, não sabíamos. Não sabíamos que Vovó sofreria um derrame, que isto ia apressar nossa ida para a cidade, que íamos começar a morar de aluguel em Pinda, que, a partir daí, teríamos de pagar pela pequena bacia de chuchu na feira – nós, que produzíamos no quintal de Coru muito mais do que conseguíamos consumir...
Não sabíamos que estava acabado nosso tempo de infância, de céu, de paraíso, de coração largo, de respiração solta, de sonhar que tudo era possível. Mas, naquela noite de Natal, nós cantamos com a afinação mais perfeita que conseguimos, com o melhor volume de sopro de nossos pulmões juvenis, acompanhando no tempo exato os acordes que o Maestro tirava do harmônio. E, enquanto cantávamos no coro da Capela, nós nos entreolhávamos, jovens, fraternos – e sentíamos uma espécie de orgulho por sermos irmãos, por estarmos juntos.
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Texto e foto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto do Presépio da Igreja de Coruputuba. O Presépio faz parte do acervo do Museu Histórico e Pedagógico Dom Pedro I e Dona Leopoldina.


terça-feira, 11 de dezembro de 2012

O cachorro da Pensão



O Negrinho era um cachorro preto, baixo, corpulento e maldoso. Pertencia à dona da Pensão, Dona Eleuzina do Seu Eurico.
Pois bem, o Negrinho ficava deitado na calçada em frente à porta da Pensão (onde depois foi o Clube). Dali, de seu posto de observação, ele tomava conta de todo o Largo. Observava quem vinha buscar água na Caixa d’Água, quem vinha jogar bola na Quadra, quem ia ao Armazém, ao Açougue... Quando encasquetava, ele vinha latindo furioso para cima da pessoa.
Houve um tempo em que minha família pegava almoço de marmita na Pensão. Foi assim que eu conheci bife na chapa, com cebola. Eu sempre ia buscar a marmita com o meu irmão Bosquinho.
E o pior era que o Negrinho tinha cismado com o Bosco. Toda vez rosnava para ele, latia... E eu, como sempre, ficava protegendo o Bosco. Mas por dentro também morria de medo daquele cachorro malvado.
Tinha um pessoal que ficava jogando ping-pong na Pensão. Eram os filhos do Seu Isaías, mais o Ademir e o Aurélio do Seu Totóizinho, e mais uma turma.
Um dia, eu e o Bosco entramos para pegar o almoço e o Negrinho estava deitado perto do fogão, roendo um baita osso. Pois não é que um dos filhos do Seu Isaías, acho que o Airton, só de sacanagem, passou correndo perto do fogão, roubou o osso do Negrinho e jogou o osso perto do pé do Bosco! O Negrinho veio correndo, bufando.
O Bosco saiu correndo e o Negrinho mordeu os fundilhos das calças dele. Igual ao que acontece em desenho animado. Toda a molecada riu muito. Olhei e vi que os adultos também estavam achando aquilo engraçado.
Silenciosamente, jurei vingança.
Naquela mesma tarde, procurei no quintal e encontrei os restos de uma cadeirona de braços, que eu sabia que estava jogada perto das bananeiras. Serrei uma das pernas da cadeira. Era de seção quadrada, com quinas vivas. Usando os conhecimentos que eu estava adquirindo nas aulas de Trabalhos Manuais do Professor Del Mônaco, com a grosa desbastei os ângulos da parte mais fina da perna da cadeira. Com a lixa, dei um acabamento caprichado.
Ficou um belíssimo porrete, confortável para segurar, sendo que a ponta ficou bem mais pesada, porque a perna da cadeira era daquelas que vão afinando em direção ao chão. Agora, era só aguardar o combate.

No dia seguinte, na hora certa, eu e o Bosco pegamos as marmitas e fomos para a Pensão. Parece que o Negrinho tinha sido alertado. Pela primeira vez, sem qualquer aviso ou provocação, ele veio direto para cima de mim, saindo de seu canto perto do fogão. Tirei o porrete do cinto: estava pronto para a luta. O Bosco ficou mais de longe.
Negrinho deu uns três pulos para me pegar, eu recuando devagar e preparando o golpe. Quando vi a cabeçona dele no ar, perto de mim, vibrei o golpe com toda a minha força de moleque de quatorze anos. O porrete pegou bem na base da orelha esquerda, senti na mão a resistência do osso do crânio.
O cachorrão caiu de quatro. Em silêncio, virou-me as costas. Murcho, caminhou até o fogão e ali se deitou e ficou quieto. Todo mundo na Pensão também ficou quieto. Ninguém me censurou, ninguém elogiou, ninguém comentou nada.
Daquele dia em diante, toda a vez que a gente ia buscar água no Largo, ou ia na Cooperativa, se o Negrinho estivesse na calçada tomando conta, ele levantava e, de cabeça baixa, entrava na Pensão. E toda vez que a gente ia buscar o almoço, ele ficava quieto deitado aos pés da Dona Eleuzina.
Foi a última vez que eu precisei usar força bruta contra alguém.
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto1: segurancadotrabalho.blogspot.com
Foto2:Arquivo Histórico Waldomiro Benedito de Abreu – Cooperativa de Coruputuba

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Burro de carga



O pároco da Aldeia Distante precisava mandar temporariamente a Imagem Milagrosa para a igreja da Aldeia Próxima. O único meio de transporte disponível era o Burro que o Carvoeiro se dispôs a alugar. Trato feito, a Imagem presa com segurança ao lombo, lá foi o Burro pela estrada, tocado pelo Carvoeiro.  Nas vendas da beira do caminho, cessavam as piadas, parava a bebida e o bilhar, pessoas tiravam o chapéu à passagem da Milagrosa Imagem. E na chegada à Aldeia Próxima, os moradores se ajuntaram na rua diante da igreja, houve quem se ajoelhasse com devoção. E o Burro pensou que todo aquele respeito era para com ele. Orelhas erguidas e peito estufado, dizia para si mesmo: “Finalmente reconheceram o meu valor!”.
Então, a Imagem foi retirada e todo mundo foi atrás dela, entrando na igreja, largando na praça o Burro sozinho com o Carvoeiro. Este, para não perder a viagem de volta, amontoou no lombo do Burro muitos sacos de carvão para vender na Aldeia Distante e, imediatamente, os dois pegaram o caminho de volta. Agora, ninguém tirava o chapéu. Alguns moleques jogaram pedra, ainda atiçaram cachorro contra o Burro, que, meio espantado, orelhas murchas, ia meditando: “Estas pessoas de agora não são espertas como as daquela hora, não percebem o meu valor...”.
Assim conta a fábula. E temos que nos lembrar que fábulas são inventadas pelos humanos usando figuras de animais para explicar o comportamento de quem? Ora, dos humanos mesmo. De verdade, sabemos que os burros são inteligentes, não são burros não. Na mocidade, tendo que cavalgar pelas estradas de roça, eu percebia que o burro sabia para que lado a porteira abria, ajudava-me posicionando-se de modo a me facilitar o alcance da tranca, depois tirava depressa o lombo para que a porteira não batesse nele. Cavalos não entendiam disso, não ajudavam.
Reflito sobre esta fábula cada vez que assumo um Cargo, e cada vez que deixo um Cargo. Já assumi cargos através de disputadíssimos concursos e já assumi cargos por corresponder à confiança do Governante – este, por sua vez, assumindo um cargo pela confiança do povo. Primeiro, sei que Cargo e Carga são a mesma coisa e ainda resultam no verbo Carregar. Assumir um cargo exige disposição para carregar, para levar a carga com segurança e respeito até o final do caminho contratado.
Tenho procurado ser, com relação aos muitos cargos que já assumi, um honrado Burro de Carga. Que se orgulha, sim, de ter sido selecionado para fazer o transporte. Mas sabe perceber que uma coisa é o seu próprio valor – e outra coisa é o valor da carga, que deve ser levada sempre cuidadosamente, para que não seja danificada, para que não se estrague, para que não se perca. Para que as pessoas continuem confiando nos que assumem cargos.
Para que as pessoas continuem respeitando os Burros de Carga que honram suas cargas.
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes, escrito em 04/12/2012

sábado, 1 de dezembro de 2012

Os clubes e a "misturança"



Em julho de 1967 aconteceram os Primeiros Jogos Florais do Eixo Turístico Pindamonhangaba – Campos do Jordão. A expressão “jogos florais” significa concurso de trovas. Os temas eram “Rio” para os candidatos de outros lugares e “Serra” para os poetas locais. Participei e tive uma trova premiada com menção honrosa. Então, num belo dia, aconteceu a premiação no Clube Literário. E lá fui eu, junto com o Walter Leme, meu companheiro de contaminação poética. Foi a primeira vez que eu entrei naquele clube.
Vieram muitos trovadores, de muitos lugares, gente de vários estados. Transformado em auditório, o salão do clube lotou. Fui vencendo minha timidez – eu era um dos candidatos mais jovens – e conversando com trovadores consagrados de outros municípios paulistas, do Rio de Janeiro, de Minas Gerais...
A solenidade começou, sendo mestre de cerimônia o Percy Lacerda. Números musicais, discursos meio culturais e meio políticos, até que os vencedores começaram a ser chamados, um a um, para receber a medalha e o diploma. Cada pessoa chamada era premiada por uma das autoridades presentes. Até que, num certo momento, foi chamado o presidente do Literário para entregar a premiação para uma trovadora de outro estado.
De repente, virou uma aflição silenciosa no auditório. Porque a trovadora era negra e o presidente era contra o ingresso de negros no clube. Diante dos olhos de todo mundo, que todo mundo queria saber o que ia acontecer, aconteceu que o presidente desceu do palco e foi dando a volta no auditório para sair por um lado e ir embora para casa, enquanto a trovadora vinha vindo em direção ao palco pelo outro lado.
O Percy, numa das mais justas saias justas que já vi, teve que ir compondo ao microfone uma esfarrapadíssima desculpa, que o presidente infelizmente se sentiu mal e precisou se retirar, então em seu lugar chamamos o Dr. Fulano de Tal para entregar a medalha e o diploma para a digna poetisa etc.
Depois o Literário se modernizou em parte, o racismo foi enfraquecendo diante dos ventos renovadores, mas nunca chegou perto da democracia racial da Ferroviária. Aliás, com os olhos postos na realidade social, a Ferroviária cresceu, admitiu sócios em quantidade, construiu quadra e piscina e tornou-se de fato um grande clube, querido pela população. Enquanto o Literário entrava em decadência, afundando rapidamente até fechar. E mesmo assim, com o navio naufragando, muitos sócios do Literário torciam o nariz diante de algum elogio à Ferroviária:
– Credo, Deus me livre. Para mim não serve, lá é muita misturança.
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes