Convidado a exercer a função
de Coordenador Pedagógico em
Santa Branca, dispus-me a não ser chato. Este era, para os
professores, o conceito em que tinham os coordenadores. Falava-se em
coordenador e já se imaginavam grandes pacotes de formulários para preencher,
justificar, planejar, avaliar... Deixei os papéis de lado e procurei usufruir
do convívio com os docentes. Ora, na função anterior, de Orientador
Educacional, eu convivi tanto com os alunos! Agora, queria partilhar o dia a
dia dos professores, tornar-me pessoa de sua confiança, para construir relações
produtivas e, assim, beneficiar os clientes da escola: os alunos e suas
famílias.
Um ambiente amoroso, familiar,
todos se conheciam naquela pequena cidade. Todo mundo na escola era meio
parente. Professores, escriturários, serventes, alunos, professores, todos
envolvidos nas gostosas e às vezes polêmicas redes de parentesco. Lá encontrei
o Leopoldo, o melhor professor de Matemática que já conheci. O único que vi
mantendo regularmente um jornal mural de Matemática no pátio, com charadas
matemáticas, biografias de grandes matemáticos, piadas matemáticas... Vi o
sobrenome dele e já matei: Você é irmão do Seu Toninho, que foi meu professor
no quarto ano do grupo em Corupu-tuba! Que me entregou o diploma do primário!
Era sim, o Leopoldo era irmão
do Seu Toninho. Tão bem humorado quanto o meu professor. Mantinha com os alunos
do noturno uma relação tão cordial que eles jogavam futebol de salão juntos
quase toda semana. Como eu tinha que ficar lá mesmo entre o final do período da
tarde e o início do noturno, também ia para a quadra, e aquela brincadeira
tornava natural e amigável a nossa convivência.
Foram somente sete meses em Santa Branca, na
escola Francisca Rosa Gomes. Era para eu ser Coordenador, mas em alguns
momentos acabei ficando, na prática, responsável pela escola toda, quando dos
afastamentos da diretora e da assistente, em férias ou em licença.
Nos primeiros dias já descobri
como que funciona de verdade uma escola comum do Estado. Ainda não tinha
trabalhado em cargo administrativo numa escola comum, tinha trabalhado só nas
exceções. Tinha sido professor num grupo escolar rural, numa escola regimental
do exército, numa escola na praia, numa escola isolada na roça... Mas em cargo
administrativo tinha trabalhado em duas enormes exceções: a Escola Técnica
Prof. Everardo Passos, particular, em São José dos Campos, e a Escola Agrícola Cônego
José Bento, estadual, em
Jacareí. Agora, em Santa Branca, eu entrava em contato direto com as
tarefas administrativas de uma escola estadual com classes de primário de dia e
com classes de quinta a oitava e de segundo grau à noite. Descobria que,
independente do nome do cargo, quem estiver na escola acaba sendo, muitas vezes
ao mesmo tempo, coordenador, diretor, secretário, escriturário, servente,
merendeiro... Quantas e quantas vezes, mais tarde, já diretor de escola, tive
que fazer a merenda, atender no guichê da secretaria, limpar as salas da
administração, passar café... Ué, mas na escola de roça do Rio Abaixo, também
não era assim? Quem que fazia a merenda, limpava o banheiro? Só que eu pensava
que nas escolas maiores as funções estariam melhor distribuídas. E estavam,
mas, no dia a dia, pessoas faltavam, tiravam licença, afastavam-se – e alguém
tinha que cobrir. Esta prontidão para fazer de tudo, na medida em que fosse
necessário, comecei a adquirir em Santa Branca.
Foram dias maravilhosos,
produtivos. A relação com os professores ficou ótima, viramos amigos carinhosos
até, sem perder de vista o objetivo de minha função de Coordenador:
instrumentar os professores para uma relação produtiva com os alunos. Isto fizemos,
de fato. O Jornal de Matemática do Leopoldo, devidamente endeusado por mim,
gerou outros jornais murais, sobre outras matérias, sob a direção de outros
professores ou grupos de alunos. Uma vitória particular foi a abertura da biblioteca.
Cheinha de livros interessantíssimos, coleções infantis e juvenis, livros para
cultura pedagógica, livros de psicologia... Centenas de volumes, impecáveis em
suas capas de papelão azul, ficavam retinhos nas estantes, todos perfeitamente
alinhados.
Mas ninguém lia. O livro de
registro de empréstimo marcava exatamente sete retiradas desde o começo do ano,
e estávamos em julho. A
diretora, Professora Julieta, uma das pessoas mais ponderadas e calmas que
conheci, ensinou-me bastante sobre organização de secretaria, controle de
fichas de alunos, controle da vida funcional dos professores e funcionários
(tudo que ela aprendeu com o Prof. José Thomé Júnior, o mesmo Seu Thomé da
minha infância em Coruputuba - Ora, o Vale é tão pequeno!). Com relação à
biblioteca, explicou-me que ficava fechada porque não tinha quem tomasse conta.
Percebi que imperava na escola uma grande preocupação com a conservação dos
livros, eles constavam dos inventários, não se podia correr o risco de danos,
desaparecimento etc. Os livros deviam ser conservados como tinham sido
recebidos, sem nada amassado, sem páginas rabiscadas, coisas assim. Parecia que
de repente ia surgir uma visita de inspeção querendo conferir os livros volume
por volume! Por isto, quando alguém queria ler um livro, precisava que um
funcionário pegasse a chave e fosse lá buscá-lo. Concluí: é por isto que até
julho foram registradas somente sete retiradas.
Propus à Dona Julieta: Fica
sendo meu lugar de trabalho a biblioteca. Tem uma mesa lá, tem o mimeógrafo,
arranja uma máquina de escrever, arranja essas coisas que eu fico na biblioteca
com a porta aberta, vamos ver o que acontece.
Havia na Biblioteca uma
samambaia num xaxim, mirrada, pálida... Num sábado fui trabalhar de manhã e,
pela primeira vez, o sol penetrou na Biblioteca, iluminando os livros, as
crianças das aulas de reforço e suas professoras que, também pela primeira vez,
estavam vendo a biblioteca aberta.
Assim, aquele “vamos ver o que
acontece” resultou nisto: a biblioteca virou ponto de encontro do coordenador
com professores, que vinham trocar ideias. Dali a pouco, virou uma salinha para
alunos também virem conversar comigo, além de retirar livros. Estava sendo
reeditado o meu gabinete de orientação educacional, incluindo o meu cavalete de
pintura, as telas, os pincéis, o cheiro de terebentina...
Só que a lembrança da ETEP me
trouxe a vontade de reviver o clima de plena autonomia dos alunos. Dividi com
alguns professores o sonho de uma escola onde permanecessem na sala de aula
somente os alunos que estivessem mesmo querendo assistir a aula, sendo que os
demais poderiam sair da sala, mas seriam, em vez de repreendidos, acolhidos
amigavelmente pelos educadores disponíveis no momento.
Educador
disponível no momento – Definição 1 - Aquele que não está enfiado na diretoria
debaixo de uma pilha de diário oficial, ou tentando alterar o horário das aulas
porque uma professora desistiu e a que pegou as aulas não pode dar aula na
quarta e nem na sexta, ou está fechando o balancete da APM, mas não vai dar
tempo porque já foi convocada nova reunião na delegacia de ensino e o
supervisor já avisou que vem à escola para assinar os certificados de
conclusão, que ainda não estão prontos etc.
Educador
disponível no momento – Definição 2 – O Paulo, que acabou de chegar e já está
propondo essas coisas de liberdade e autonomia.
Bom, o Educador Disponível
realmente estava ansioso para colocar os alunos do noturno em conflito:
permanecer na sala de aula participando da aula de História, Geografia etc. ou
ir para o galpão onde o Educador Disponível está tocando violão ou falando
sobre poesia na Biblioteca? Ou ainda, ficar na classe fazendo os problemas de
Física ou ir estudar Física na prática, jogando pingue-pongue no pátio, na mesa
que o Educador Disponível desenterrou de não sei onde, limpou e montou?
Nas conversas informais, fui
percebendo que havia professores que se encantavam com a ideia (a ideia, de
verdade, nem era minha, era de Alexander S. Neil) e havia outros que declaravam
que não dava certo em Santa Branca. Havia
uns terceiros que julgavam que a ideia tinha que ser bem discutida. Discutindo
a ideia com a direção, vi que o caminho não estava fechado não, estava aberto e
passava pela discussão no Conselho de Escola. Apresentei ao Conselho, por
escrito, uma tese propondo que se mantivessem os portões fechados, os
professores se mantivessem normalmente em sala de aula, fizessem a chamada com
o rigor costumeiro, só registrando presença para quem estivesse realmente
presente. Aluno que quisesse ficar no galpão, na biblioteca, na quadra, poderia
fazer como entendesse, sabendo que estava sendo registrada sua falta. O
objetivo era permitir que o aluno tomasse suas próprias decisões, ganhasse
autonomia, pudesse dispensar que outras pessoas decidissem tudo em seu lugar –
pudesse escolher seus caminhos, responsabilizando-se pelas consequências de seus
atos. Finalmente, o Conselho se reuniu.
Foi a primeira vez que vi um
Conselho de Escola debater assunto sério mesmo. O mais que eu tinha presenciado
até ali, em outras escolas, era sobre punição de alunos ou prioridades para
aplicação de verbas. Agora, ia-se discutir, de modo maduro e profissional, o
que a escola poderia fazer em benefício do crescimento da autonomia dos alunos.
Não há assunto mais sério em
Educação. A tese foi aprovada, após muito debate. Houve votos
contrários, foram dos alunos representantes no Conselho, que se mostraram mais
conservadores do que os professores e os pais.
E, na noite seguinte, começou
a primavera em Santa Branca.
Parecia uma escola de nível superior, parecia uma escola de
artes. Muitos alunos ficaram nas salas de aula, tendo aulas normais. Mas um bom
número veio para a biblioteca, para o pingue-pongue, para o violão no galpão,
para a quadra. Com o passar das semanas, milagre: alunos estudando no galpão, em grupo. Fomos
percebendo que os alunos do noturno não tinham tempo para estudar e agora
estavam aproveitando a liberdade conquistada para, durante a segunda aula,
ficar estudando para a prova que ia acontecer nas duas últimas. Com a liberdade
de ir e vir dentro da escola, a biblioteca virou sucesso de público. Em
dezembro, o livro de registro já apontava mais de quatrocentos empréstimos.
Talvez um ou outro volume tenha sido danificado, talvez. Mas a biblioteca, por
fim, estava cumprindo sua missão. Os soldadinhos encapados de azul tinha sido
convocados! A escola ficou barulhenta, movimentada. Alunos se deslocando pelo
pátio, conversando, rindo, cantando – tudo isto incomoda muito a nós
educadores, que gostamos de falar em construtivismo, escola ativa, aulas mais
práticas – desde que não nos atormentem! Há exceções, mas o que de fato até
hoje deixa um diretor nervoso é aluno zanzando. Diretor gosta mesmo é de alunos
quietos em suas classes, professor dando aula na lousa. Por isto é que tinha
sido importante envolver todo o pessoal da escola na discussão das novas
medidas.
O ano de 1978 estava
terminando. Fui aprovado na segunda fase do concurso, ia ser diretor, ia deixar
Santa Branca. Veio a formatura, com muitas despedidas comoventes, laços tinham
se formado com aqueles alunos e professores, a gente provavelmente não ia mais
se ver. Veio o Natal, vieram as férias de janeiro, fiquei ajudando a montar as
classes para o ano que começava elaborando os planos. Nos intervalos,
perambulava pela escola deserta, como um pardal cheio de saudades, examinando
as salas, os corredores...
Em fevereiro, véspera do
primeiro dia de aula, fui embora. Ia dirigir a Escola de Igaratá. E a Escola
Francisca Rosa Gomes, lá no alto do morro, bem perto da ponte do Paraíba, ia
ficar para sempre na minha lembrança como o lugar onde fizemos brotar uma
espécie de primavera, superando o medo que todos nós tínhamos – e ainda temos –
da liberdade.
Alguns meses depois, fiquei
sabendo que tudo tinha voltado ao normal
na Francisca Rosa. Pessoas se aposentaram, Dona Julieta também saiu, foi ser
diretora efetiva em São José
dos Campos, os que ficaram sentiram-se intimidados em continuar mantendo as
medidas implantadas por quem tinha já ido embora.
Então, realmente, foi só mesmo
uma primavera.
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Texto
de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
No
livro ACONTECEU
NA ESCOLA
ISBN 978-85-913453-4