Da esquerda para a direita, no fundo: Minha avó materna Ana Emília, minha mãe Maria Tereza e meu pai, o professor Francisco Fonseca Marcondes.
Na frente, os meus irmãos José Pedro, Luiz Gonzaga, Francisco Carlos e Ana Clara.
E eu, cadê? Ora, no colinho da mamãe!
Ainda não tinham nascido: João Bosco, Maria Auxiliadora, Maria Salete e Ritinha.
Foto em Aparecida, em 1948.
Estava
escurecendo, mas não era hora de acender a fogueira de São João, e as lâmpadas
do quintal ainda estavam apagadas. O vulto de uma pessoa baixinha, troncuda, de
capuz, deslizava devagar no quintal, entre as árvores. Fui ver, era a vó, com
uma vara. Parava e dava uma surra em cada laranjeira. Distribuiu surras para
todas, desde as laranjeiras velhas de perto da chaminé, até os pés de laranja-bahia do fundo do quintal. Rezando
alguma coisa. Depois me explicou, era para dar laranjas doces.
Aquilo
era para acharmos esquisito? Era para darmos risada, comentando entre os
irmãos? Não sei, mas não demos risada não. Até fomos acompanhando, mostrando
algum outro pé de laranja, sugerindo também um limoeiro, tudo já na quase
escuridão, com dó da velhinha que guardava segredos da escravidão.
E
era branquinha, os cabelos brancos lisinhos, sempre em coque, só que as
histórias que sabia eram histórias de cativos judiados, vingados pelas doenças
e outras desgraças que atacavam os senhores brancos, que morriam de coisas
feias. Contava as vozes que ecoavam nas noites de São Bento do Sapucaí, no
escuro das araucárias, no vento: “No meio de três pinheiros, três barris de
dinheiro!”. E o fazendeiro mau, que mandou surrar e matar o escravo bom e enterrar,
e plantar muda de laranja por cima. A laranjeira cresceu, deu frutos bonitos. A
sinhazinha colheu a laranja, mandou descascar e cortar, era só sangue por
dentro, escorreu na roupa nova da mocinha.
Vó!
Eu perguntava mais coisa. Devia ter perguntado mais. Perguntei pouco. Nunca
perguntei por que foi que ela e o vovô Bento se separaram, por que o vovô ficou
morando em Taubaté para sempre e ela ficou para sempre morando com a gente, com
mamãe, papai e todas as crianças, trabalhando muito, igual uma escrava mesmo,
no fogão e no tanque.
Perguntei
coisa boba, curiosidade, viagens dela com vovô, na mocidade, acompanhando tropa
de burro de São Bento para Taubaté, pousando em rancho, topando com sucuri, essas
coisas. O que ela respondeu de bom para o resto da minha vida eu nem tinha
perguntado, ela já foi ensinando. Era o jeito de matar o frango, de escaldar, depenar,
limpar, abrir, tirar a gosma da pele com limão e fubá, até fritar, ou assar, ou
refogar, centenas de jeito, até servir na mesa para a família inteira. E cuidar
do porco e fazer com ele tudo isso também, só que com mais barulho, mais sangue
e aprendendo a ficar insensível diante dos olhos puros do animal que tinha
criado amizade com a gente, e agora ia virar nossa comida.
Ralhava
comigo e meus irmãos só quando invadíamos a área de privacidade dela. “Cadê
meu cepo?” ‒ Era porque tínhamos pegado o toco e levado para o fundo do quintal,
para brincar de filme, o índio tinha que fazer tocaia contra o mocinho. E o
cepo era necessário para ela. Baixinha, não alcançava a torneira do tanque,
para lavar nossa roupa.
“Mexeram
nas minhas mangas!” ‒ Alguém tinha revirado a cômoda, em busca das
mangas que ela guardava no meio das roupas, esperando amadurecer. Nisso ela
caprichava, levantava cedinho, ia fazer uma pequena colheita debaixo do pé de
manga-espada, recolhia as mangas de vez que tinham tombado de noite, levava
para o quarto.
Nas
tempestades feias, catava brasa no fogão, punha para queimar a palma benta da semana
santa mais recente, saía pela casa rezando a salve-rainha, cobrindo os
espelhos...
A
mãe brigava com a gente e queria bater. Ela nos acolhia na saia comprida,
protegia. Mas quando a mãe brigava com ela, todos nós corríamos para o lado da
mãe, que fingia desmaio, e a vó ficava sozinha, quieta, rezando.
Ah,
Dona Ana! Dona Ana Emília! Donana! Todo domingo, na missa da tarde, de mantilha
preta, terço na mão, balbuciando orações... ia devagarzinho pela rua de areia,
para a Capela entre os coqueiros. Na volta, assistia um pouco de televisão,
antes de tomar café para dormir. A TV nós compramos quando eu tinha uns dezoito
anos. Perguntei a ela: Vó, é assim mesmo que a senhora pensava que era a televisão?
Ela disse que não. Pensava que era fininha igual um quadro, que a gente
pendurasse na parede.
Hoje
eu penso, nossa, hoje em dia ela acertou.
Teve
um AVC, ficou doente para morrer. Fomos fazer a mudança, esvaziar o quartinho
dela, tirar o nicho de Santa Terezinha, que tinha tantos outros santos! tantos restos
de outros santos, irreconhecíveis, flores murchas, pedaços de palma benta...
Quando fui esvaziar as gavetas da cômoda, ah, cheio de manga estragada, ela
guardou para amadurecer, mas coitadinha, esquecia...
A
cabecinha branca é um lencinho de saudade, a cabecinha branca espiando por cima
do portãozinho, debaixo da latada de primavera, espiando para ver se o neto já
vinha voltando da cidade, se já vinha caminhando desde lá do Portão da fazenda,
tendo descido do ônibus, se já tinha terminado as aulas do ginásio ‒ do ginásio
que ela nunca chegou a conhecer, prédio onde ela nunca adentrou, que ainda está
aqui na esquina da ladeira que desce para o Bosque...
Quem
não está mais aqui é ela, faz mais de cinquenta anos que ela não está mais aqui,
a Vó, que talvez nunca tenha entendido direito este mundo, que os netos foram
desbravando e cujos pedaços foram contando para ela, aos poucos, para que ela
pudesse ir montando um quebra-cabeças: o mundo moderno, sem tropeiros, sem
cativos, sem senhores, sem sinhazinhas, sem laranjeiras...
Agora
já sou mais velho do que ela ‒ e os meus cabelos são mais brancos do que os
cabelinhos dela. Mas não adianta eu ficar no portão esperando, não vai ter ninguém
para chegar da escola.
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Texto:
Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto:
Lambe-lambe em Aparecida, 1948