segunda-feira, 15 de julho de 2024

Tiroteio na escola

 



Jacareí, 1984. A manhã foi tranquila na Escola da Vila Zezé, as aulas transcorreram na maior paz. Aí o pessoal do primeiro período saiu. A Nilde e a Dona Zaíra teriam, como sempre, meia hora para varrer as salas antes que entrassem os alunos da tarde. Eu tinha ficado direto, só iria para casa às três horas. 

Então aconteceu um tiroteio. É que a guarda municipal tinha cercado um homem na mata do terreno da Santa Marina, atrás da escola, e ele, desesperado, pulou para dentro do pátio e ficou entocado no canto do muro.

As crianças do período da tarde vinham entrando, conversando. Os guardas chegaram perto do homem. Um dos guardas sentou um tapão nele: Seu safado...

A criançada chegou no galpão, de onde dava para ver a cena.

O outro guarda deu um tiro no chão perto do homem. O homem pulou para escapar do tiro. O guarda começou a atirar para acertar os pés dele: Ué, foge agora, desgraçado! Não tava fugindo de nóis?

– Nossa Senhora! Vão matar ele!

– Já pra dentro! Entra na sala! Entra! Já! Entra!

Meu Deus do céu, eu sozinho para segurar as crianças. Não queria que elas vissem aquilo. As professoras ainda não tinham chegado, não tinha quem me ajudasse. Deus me livre, uma bala perdida... E aquela cena triste de ver. O homem pulava para não ter os pés atingidos. Xingos e palavrões, dos guardas. Pedidos de misericórdia do homem, que não parava de pular. Então ele parou de pular. Caiu mole, ficou gemendo.

Eu no galpão controlando as crianças para que não saíssem das salas. Mas tinha mais criança chegando. E os guardas foram embora, arrastando o homem ferido.

Aí não dava para controlar mais nada e as crianças irromperam das salas, vieram se encontrar com os colegas que entravam, numa explosão de novidades. A escola virou um ambiente festivo. Mas havia mágoas, medo, olhares disfarçados...

– Diz que é o tio daquela menina da quarta série, que veio da Cidade Salvador...

– Ah, coitada...

E as professoras vinham chegando, inocentes inocentes! A primeira foi minha amiga Ivone*, escandalizada:

– Nossa, Paulo, você ficou sabendo que teve um tiroteio aqui? Agora que estão me contando! Meu Deus, como que está a coisa, não? Que absurdo!

– É, teve mesmo. Mas já levaram preso o homem, foi embora machucado... Olha Ivone: Taí um bom tema pra redação dos seus alunos...

– Ah – ah...

– Que isso! Não! Estou falando sério. É um bom tema, deve dar umas boas redações sim.

– Mas não, Paulo. Espera um pouco, olha aqui no meu plano (abrindo a bolsa), está vendo, eu até já mostrei pra você: este mês estou trabalhando ampliação de orações. Eu dou uma oração simples e eles primeiro acrescentam um adjetivo no sujeito. Depois, noutra etapa, acrescentam um adjetivo no predicado, depois entram os advérbios...

O semanário era muito bem organizado, caprichado. Os títulos eram sublinhados com caneta vermelha.

– Olha, Ivone, você pode pular tudo e já pedir para os alunos escreverem hoje sobre o que aconteceu hoje. Mas, primeiro, eles devem falar sobre o assunto, você pode estimular a conversa...

Foi interessante descobrir que a Ivone, intimamente, bem que gostaria de já estar fazendo coisas práticas desse tipo, mas ainda tinha ficado se prendendo na ideia de que a direção não ia gostar, que a supervisão não ia achar certo, que a delegacia de ensino podia implicar...

Caramba, a Ivone e o Fernando marido dela eram, sabem de onde? de Coruputuba, da nossa Terrinha, ora! ele era um Delmonte! tínhamos levado um semestre para descobrir isto, apesar de trabalharmos juntos todos os dias! Aí, já que a nossa amizade permitia essa liberdade, brinquei com ela:

– Ê, Ivone, qualquer dia dá um baita de um terremoto aqui em Jacareí, a cidade inteira pega fogo, um banzé danado – e dentro da sala os aluninhos vão estar escrevendo sobre um passeio no sítio do vovô – sendo que de repente eles nem tem avô e, se tivessem,  nunca que o avô ia ter sítio nenhum...

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* Ivone Bustamante Delmonte

Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes - no livro “Aconteceu na Escola” - Gráfica Viena - 2012

Foto Google Earth

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