domingo, 29 de abril de 2012

Seu Taha


Eu tinha vinte e um anos quando fui trabalhar na AISA. Todos da Anodização estavam mais ou menos na mesma faixa de idade: o pessoal do Polimento, do Banho, das Gancheiras, do Controle, da Embalagem, da Expedição... Todos com menos de trinta anos. É verdade que depois chegou o seu Maia. Mas antes dele tinha vindo o Seu Taha, o primeiro com mais de quarenta.
Jordaniano de nascimento, contava-me as histórias de seu país e isto alimentava a minha vontade de aprender. Eu queria saber, queria conhecer, através das palavras dele, os rios, os desertos, as palmeiras, os alimentos, os costumes árabes, as tradições. Seu Taha me ensinou, no meio dos barulhos das politrizes, a dizer em árabe frases de saudação, de despedida, de brincadeiras. Ensinou-me a gostar de halewa, o doce árabe feito de gergelim.
Educadíssimo, respeitador, só mostrava o seu temperamento brincalhão com quem soubesse brincar mantendo o respeito. Aprendi que podia lhe contar piadas sobre árabes, desde que não os confundisse com os turcos. E desde que não envolvesse pessoas com nomes de santos – os profetas que, na tradição cristã, aparecem como os patriarcas do Velho Testamento.
Com essas ressalvas, eu podia fazer o Seu Taha dar boas risadas com minhas brincadeiras. Quando ele se afastava da mesa, eu trocava a chave dele. Na volta, ele ficava tentando inutilmente abrir a gaveta para pegar o lanche, até desconfiar que era mais uma travessura minha. Então olhava para mim: “Ah, Seu Baulo, Seu Baulo...”
Sua tarefa era preparar as peças que eu deveria inspecionar. A gente disputava para ver quem vencia o outro na velocidade. “Eh, Seu Taha! Muita areia pro seu caminhãozinho?” Mas quando ele disparava a passar óleo com a estopa e eu me atrasava examinando alguma peça com defeito, ele aproveitava, vinha trazendo as bandejas de peças já preparadas, colocando uma sobre a outra e fazendo a gozação de passagem: “Seu Baulo, caminhãozinho tá com broblema?”
Então eu saí da AISA, ingressei no magistério do estado, mudei para Caraguá, depois Jacareí. Uma vez, passeando em Pinda, visitei o Seu Taha, que morava em frente à fábrica de guarda-chuvas. Fiquei encantado com sua atenção. Ele convocou para a sala todos os filhos: “Venham escutar o Seu Baulo, ele é brofessor, ele sabe!”. Seu Taha me pediu que falasse sobre os cursos de ensino médio (na época, segundo grau), queria orientação para os estudos dos filhos. Então fiquei ainda mais encantado foi com a educação dos adolescentes, muito atentos à nossa conversa: isto já era muito raro!
Passaram-se muitos anos. Voltei de vez para minha terra. Quando fui saber, Seu Taha tinha falecido. Perdi meu amigo. Fiquei triste, tinha ficado muitos anos sem conversar com ele.
 Seu Taha Youssef Mohammed Elkatib, meu amigo: saudade daquele tempo!
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto: rondoniadigital.com

sábado, 21 de abril de 2012

A cabrita marrom


Ela apareceu em casa e ninguém sabia de onde ela tinha vindo.
Quando eu cheguei da escola meus irmãos estavam excitados, falando todos ao mesmo tempo, no jardim, em volta da cabritinha marrom.
Tão bonita! O pelo era marrom nas costas, mas no peito era mais claro, na barriga era quase branco. As suas tetinhas eram cor-de-rosa. Não parava de balançar o rabinho.
Reparei que os chifres ainda eram bem pequenos, porque ela era bem nova.
A cabrita comia tudo que a gente dava. Comia, comia, depois parava, deitava na sombra. E de repente começava a mastigar sem comer! O Pedro me explicou que ela estava ruminando, quer dizer, o capim que ela tinha engolido voltava para a boca para ser mastigado de novo.
Mamãe não deixou a gente levar a cabritinha para o quintal. Falou: "Deixa ela no jardim, para todo mundo ver. Assim o dono vai ficar sabendo que ela está aqui."
De tarde apareceu o Seu Zé Campeiro, que só andava de bota, chapéu de couro e facão na cinta. A cabritinha era dele, tinha escapado da casa dele lá na Vila Figueira. Ele tinha vindo buscar.
Eu corri para o quarto e fiquei quieto.
Um tempo depois o Zaga e o Pedro entraram correndo:
"Bobo, bobo! Não precisa chorar, a mãe comprou a cabra! O Seu Zé Campeiro vendeu!"
Eu falei que não estava chorando nada. Falei que tinha entrado um cisco no meu olho.
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
(Isto aconteceu em Coruputuba no dia 21 de abril de 1960).
Foto: viamao.olx.com.br

domingo, 1 de abril de 2012

A tragédia de Caraguatatuba em 1967

Quando concluímos o Curso Normal, éramos cinco rapazes e oitenta e cinco moças. Apesar de nossas notas acima da média, nós, os rapazes, não conseguimos assumir classes nem escolas de roça, pois na época a legislação facilitava a atribuição de aulas para as mulheres. Homens só poderiam pegar escolas isoladas masculinas, enquanto que as mulheres podiam pegar as escolas mistas e também as escolas masculinas. Para completar a ironia, as chamadas classes masculinas atendiam meninos e meninas...
Perdidas as esperanças de assumir classes no município, fomos procurar oportunidades na delegacia de ensino de São José dos Campos, que respondia também por uma parte do litoral norte. Eu, o Welton, o Freitas e o Carneiro fomos conversar com o delegado de ensino e ficamos sabendo da existência de escolas isoladas que continuavam fechadas em fevereiro, por falta de docentes. Essas escolinhas ficavam na chamada “costa”, ou seja, o litoral entre São Sebastião e Bertioga – hoje, região valorizadíssima, mas, naquele tempo, um fim de mundo.
Minha mãe brigou comigo, chorou, desmaiou, tudo de tanta pensão que ela tinha de que eu ficasse doente lá longe, fosse picado por uma cobra, ou me afogasse. Afinal, ninguém de casa nunca tinha chegado perto do mar. A pressão foi muito grande. Meu irmão veio me dizer que se a mãe ficasse doente a culpa ia ser minha.
Cedi. Desisti de acompanhar o Welton e o Carneiro que, gloriosamente, viajaram para São Sebastião e, de barco, foram até a Barra do Una para assumir suas escolinhas na vila de pescadores.
O Candinho não estava nem aí para isto de dar aulas. Já estava iniciando o curso de direito e mais tarde ia ser advogado em São José do Rio Pardo. Sobramos eu e o José de Freitas. Eu, lecionando como substituto em Coruputuba. O Freitas no Pujol. E então, um mês depois, recebi recado do Freitas: tinha recebido telefonema da delegacia de São José dos Campos. Era para nós dois irmos para São Sebastião. Ele pegaria uma escola no continente e eu, na Ilha dos Búzios, que fica em alto mar, além da Ilha de São Sebastião.
Dessa vez, não sei por qual milagre, minha mãe não brigou muito. Até fez várias recomendações de cuidado etc. Fui à farmácia de Coruputuba, a Shirley e a Ana Clara providenciaram uma caixa de primeiros socorros e de remédios, incluindo soros antiofídicos. Quer dizer, eu estava pronto para ir conhecer o mar e assumir a escola isolada da Ilha dos Búzios. Fui ao Pujol para combinar a viagem com o Freitas, que veio me atender na portaria da escola. Ele estava de terno, por exigência da direção.
Depois de conversarmos bastante, decidimos: vamos deixar passar a Semana Santa, se formos agora não encontraremos ninguém que possa nos atender direito em São Sebastião. Era uma sexta-feira. Ficou combinado: iremos depois da Semana Santa, a gente dorme em Caraguatatuba, na casa do meu tio João, e no dia seguinte vamos conversar com o responsável pelas escolas de São Sebastião.
Fui para casa e, apesar de ainda faltar uma semana, continuei arrumando minha maletinha, conferindo os remédios, os esparadrapos, as injeções. No sábado, joguei bola com meus irmãos, era uma espécie de despedida. De noite, a família toda sentada na sala, diante da televisão, fomos surpreendidos pelo noticiário:
"Caraguatatuba não existe mais, uma tromba d’água desmanchou as montanhas, que escorreram para cima da cidade. Centenas de mortos, casas destruídas, a ponte do Rio Santo Antônio rodou, a cidade está sem comunicação: rodou a estrada para Ubatuba, rodou a estrada para São Sebastião, rodou a estrada para São José dos Campos".
Na telinha da TV, cenas da cidade inundada pela água e pela lama. Todos os irmãos se voltaram para o meu lado. Eu, mudo. Mamãe falou: − “Tá vendo?”
Então continuei trabalhando na escola de Coruputuba; meses depois, na escola regimental do Quartel e, por fim, na fábrica AISA.
Mas, quatro anos depois, fui mesmo para o litoral. Tinha passado no concurso para professor e escolhi uma classe na Escola do Porto Novo. Fiquei morando no Porto Novo, pertinho do Rio Juqueriquerê. Quando ia de ônibus fazer compra em Caraguá, olhava as montanhas todas rapadas, sem vegetação nenhuma. Imaginava que tinha escapado por pouco. Era para eu estar passando a noite na casa do meu tio no bairro do Rio do Ouro, aquela noite de horror em que tudo veio abaixo e as árvores, flutuando na lama, entraram pelas casas, rompendo as paredes.

Durante décadas, colossais troncos secos, mumificados, meio enterrados na areia, ficaram servindo de bancos nas praias de Caraguá.
Os meus aluninhos da Ilha dos Búzios nunca fiquei conhecendo.
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Fotos: Google Earth, Folha de São Paulo e Guilherme A. Pinto