domingo, 1 de abril de 2012

A tragédia de Caraguatatuba em 1967

Quando concluímos o Curso Normal, éramos cinco rapazes e oitenta e cinco moças. Apesar de nossas notas acima da média, nós, os rapazes, não conseguimos assumir classes nem escolas de roça, pois na época a legislação facilitava a atribuição de aulas para as mulheres. Homens só poderiam pegar escolas isoladas masculinas, enquanto que as mulheres podiam pegar as escolas mistas e também as escolas masculinas. Para completar a ironia, as chamadas classes masculinas atendiam meninos e meninas...
Perdidas as esperanças de assumir classes no município, fomos procurar oportunidades na delegacia de ensino de São José dos Campos, que respondia também por uma parte do litoral norte. Eu, o Welton, o Freitas e o Carneiro fomos conversar com o delegado de ensino e ficamos sabendo da existência de escolas isoladas que continuavam fechadas em fevereiro, por falta de docentes. Essas escolinhas ficavam na chamada “costa”, ou seja, o litoral entre São Sebastião e Bertioga – hoje, região valorizadíssima, mas, naquele tempo, um fim de mundo.
Minha mãe brigou comigo, chorou, desmaiou, tudo de tanta pensão que ela tinha de que eu ficasse doente lá longe, fosse picado por uma cobra, ou me afogasse. Afinal, ninguém de casa nunca tinha chegado perto do mar. A pressão foi muito grande. Meu irmão veio me dizer que se a mãe ficasse doente a culpa ia ser minha.
Cedi. Desisti de acompanhar o Welton e o Carneiro que, gloriosamente, viajaram para São Sebastião e, de barco, foram até a Barra do Una para assumir suas escolinhas na vila de pescadores.
O Candinho não estava nem aí para isto de dar aulas. Já estava iniciando o curso de direito e mais tarde ia ser advogado em São José do Rio Pardo. Sobramos eu e o José de Freitas. Eu, lecionando como substituto em Coruputuba. O Freitas no Pujol. E então, um mês depois, recebi recado do Freitas: tinha recebido telefonema da delegacia de São José dos Campos. Era para nós dois irmos para São Sebastião. Ele pegaria uma escola no continente e eu, na Ilha dos Búzios, que fica em alto mar, além da Ilha de São Sebastião.
Dessa vez, não sei por qual milagre, minha mãe não brigou muito. Até fez várias recomendações de cuidado etc. Fui à farmácia de Coruputuba, a Shirley e a Ana Clara providenciaram uma caixa de primeiros socorros e de remédios, incluindo soros antiofídicos. Quer dizer, eu estava pronto para ir conhecer o mar e assumir a escola isolada da Ilha dos Búzios. Fui ao Pujol para combinar a viagem com o Freitas, que veio me atender na portaria da escola. Ele estava de terno, por exigência da direção.
Depois de conversarmos bastante, decidimos: vamos deixar passar a Semana Santa, se formos agora não encontraremos ninguém que possa nos atender direito em São Sebastião. Era uma sexta-feira. Ficou combinado: iremos depois da Semana Santa, a gente dorme em Caraguatatuba, na casa do meu tio João, e no dia seguinte vamos conversar com o responsável pelas escolas de São Sebastião.
Fui para casa e, apesar de ainda faltar uma semana, continuei arrumando minha maletinha, conferindo os remédios, os esparadrapos, as injeções. No sábado, joguei bola com meus irmãos, era uma espécie de despedida. De noite, a família toda sentada na sala, diante da televisão, fomos surpreendidos pelo noticiário:
"Caraguatatuba não existe mais, uma tromba d’água desmanchou as montanhas, que escorreram para cima da cidade. Centenas de mortos, casas destruídas, a ponte do Rio Santo Antônio rodou, a cidade está sem comunicação: rodou a estrada para Ubatuba, rodou a estrada para São Sebastião, rodou a estrada para São José dos Campos".
Na telinha da TV, cenas da cidade inundada pela água e pela lama. Todos os irmãos se voltaram para o meu lado. Eu, mudo. Mamãe falou: − “Tá vendo?”
Então continuei trabalhando na escola de Coruputuba; meses depois, na escola regimental do Quartel e, por fim, na fábrica AISA.
Mas, quatro anos depois, fui mesmo para o litoral. Tinha passado no concurso para professor e escolhi uma classe na Escola do Porto Novo. Fiquei morando no Porto Novo, pertinho do Rio Juqueriquerê. Quando ia de ônibus fazer compra em Caraguá, olhava as montanhas todas rapadas, sem vegetação nenhuma. Imaginava que tinha escapado por pouco. Era para eu estar passando a noite na casa do meu tio no bairro do Rio do Ouro, aquela noite de horror em que tudo veio abaixo e as árvores, flutuando na lama, entraram pelas casas, rompendo as paredes.

Durante décadas, colossais troncos secos, mumificados, meio enterrados na areia, ficaram servindo de bancos nas praias de Caraguá.
Os meus aluninhos da Ilha dos Búzios nunca fiquei conhecendo.
* * * * *

Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Fotos: Google Earth, Folha de São Paulo e Guilherme A. Pinto

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