O Negrinho era um cachorro preto,
baixo, corpulento e maldoso. Pertencia à dona da Pensão, Dona Eleuzina do Seu
Eurico.
Pois bem, o Negrinho ficava deitado na
calçada em frente à porta da Pensão (onde depois foi o Clube). Dali, de seu
posto de observação, ele tomava conta de todo o Largo. Observava quem vinha
buscar água na Caixa d’Água, quem vinha jogar bola na Quadra, quem ia ao
Armazém, ao Açougue... Quando encasquetava, ele vinha latindo furioso para cima
da pessoa.
Houve um tempo em que minha família
pegava almoço de marmita na Pensão. Foi assim que eu conheci bife na chapa, com
cebola. Eu sempre ia buscar a marmita com o meu irmão Bosquinho.
E o pior era que o Negrinho tinha
cismado com o Bosco. Toda vez rosnava para ele, latia... E eu, como sempre,
ficava protegendo o Bosco. Mas por dentro também morria de medo daquele
cachorro malvado.
Tinha um pessoal que ficava jogando
ping-pong na Pensão. Eram os filhos do Seu Isaías, mais o Ademir e o Aurélio do
Seu Totóizinho, e mais uma turma.
Um dia, eu e o Bosco entramos para
pegar o almoço e o Negrinho estava deitado perto do fogão, roendo um baita
osso. Pois não é que um dos filhos do Seu Isaías, acho que o Airton, só de
sacanagem, passou correndo perto do fogão, roubou o osso do Negrinho e jogou o
osso perto do pé do Bosco! O Negrinho veio correndo, bufando.
O Bosco saiu correndo e o Negrinho
mordeu os fundilhos das calças dele. Igual ao que acontece em desenho animado.
Toda a molecada riu muito. Olhei e vi que os adultos também estavam achando aquilo
engraçado.
Silenciosamente, jurei vingança.
Naquela mesma tarde, procurei no
quintal e encontrei os restos de uma cadeirona de braços, que eu sabia que
estava jogada perto das bananeiras. Serrei uma das pernas da cadeira. Era de
seção quadrada, com quinas vivas. Usando os conhecimentos que eu estava
adquirindo nas aulas de Trabalhos Manuais do Professor Del Mônaco, com a grosa
desbastei os ângulos da parte mais fina da perna da cadeira. Com a lixa, dei um
acabamento caprichado.
Ficou um belíssimo porrete,
confortável para segurar, sendo que a ponta ficou bem mais pesada, porque a
perna da cadeira era daquelas que vão afinando em direção ao chão. Agora, era só
aguardar o combate.
No dia seguinte, na hora certa, eu e o
Bosco pegamos as marmitas e fomos para a Pensão. Parece que o Negrinho tinha
sido alertado. Pela primeira vez, sem qualquer aviso ou provocação, ele veio
direto para cima de mim, saindo de seu canto perto do fogão. Tirei o porrete do
cinto: estava pronto para a luta. O Bosco ficou mais de longe.
Negrinho deu uns três pulos para me
pegar, eu recuando devagar e preparando o golpe. Quando vi a cabeçona dele no
ar, perto de mim, vibrei o golpe com toda a minha força de moleque de quatorze
anos. O porrete pegou bem na base da orelha esquerda, senti na mão a
resistência do osso do crânio.
O cachorrão caiu de quatro. Em
silêncio, virou-me as costas. Murcho, caminhou até o fogão e ali se deitou e
ficou quieto. Todo mundo na Pensão também ficou quieto. Ninguém me censurou,
ninguém elogiou, ninguém comentou nada.
Daquele dia em diante, toda a vez que
a gente ia buscar água no Largo, ou ia na Cooperativa, se o Negrinho estivesse
na calçada tomando conta, ele levantava e, de cabeça baixa, entrava na Pensão. E
toda vez que a gente ia buscar o almoço, ele ficava quieto deitado aos pés da
Dona Eleuzina.
Foi a última vez que eu precisei usar força
bruta contra alguém.
* *
*
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto1: segurancadotrabalho.blogspot.com
Foto2:Arquivo Histórico Waldomiro Benedito de Abreu –
Cooperativa de Coruputuba
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