O
Vale do Paraíba tem o avião e o carro de boi. No meio dos dois, uma imensa
população que, geração a geração, vai se aproximando cada vez mais do avião e
do shopping, deixando esmaecidos na lembrança o carro de boi e o fogão de
lenha. Tinha que ser assim. Nossa cultura é condicionada pelo espaço e pelo
tempo.
Limitados
pelas serras e orientados pelo rio, desenvolvemos nossos costumes influenciados
pelas viagens entre a capital da província e a capital do império. De uma e de
outra chegaram até nós as notícias políticas e os costumes refinados. Pelas
estradas que uniam as minas com o litoral desceram até aqui a cozinha e a
desconfiança mineiras e subiram o artesanato indígena e as técnicas
construtivas do caiçara.
O
tempo era de religião, que configurou nossas festas, nossas irmandades, nossos
escritos, nossa música, nossa arquitetura. Mas o tempo transcorre. Aos poucos,
a religiosidade foi se tornando apenas um pano de fundo para ocasiões de
encontro entre as populações urbanas e do campo. Hoje, a população do Vale do
Paraíba se indaga sobre sua própria cultura e vai percebendo que precisa produzi-la
de novo, que não podemos viver do que já produzimos nesses séculos, pois o
antigo e tradicional vai sendo terraplanado pelos poderosos meios de
comunicação e já temos vergonha de forçar os “rr” como bons caipiras que fomos.
Entre
o carro de boi e o avião, já não queremos pintar telas representando um casebre
bucólico, porque sabemos que ele é lindo para quem contempla o quadro, mas é
horrível de ser habitado. Não queremos de modelo as lavadeiras da beira do rio,
pois, enquanto nosso olhar se deleita com os coloridos reflexos da roupa branca
sobre o capim verde, nosso coração sabe que não é justo pessoas trabalharem
daquele jeito. Mas também não queremos pintar nossas ruas atuais, com sua
confusão de fios elétricos e telefônicos se emaranhando nos postes.
Entre
as duas maiores cidades do país, queremos a sofisticação da arte e da cultura,
mas atravessados pelas influências mineiras e litorâneas, também queremos a
simplicidade. Na organização do carnaval, ora tentamos, com resultados
chinfrins, imitar os desfiles das grandes escolas de samba, ora nos voltamos
para a singeleza dos bonecões.
Estamos
ainda procurando o objeto do nosso gosto cultural.
Às
vezes queremos o passado com seus costumes, deixando de considerar que tudo em
volta se modificou e a festa antiga fica flutuando no meio da modernidade, sem
alicerces. Alguns de nós vamos percebendo que talvez seja mais significativo
preservar a lembrança do evento do que forçarmos a sua realização de novo.
Telefonou-me
a representante de uma empresa de produção artística, oferecendo para o
departamento de Cultura seus serviços de decoração de ruas para a procissão de
Corpus Christi. Espantei-me. Mas, de fato, não havia com que me espantar. O que
eu queria? Que renascesse a procissão de outras eras? Que o povo continuasse
atapetando as ruas do centro com flores, folhas, desenhos coloridos de pó de
café e casca de arroz? Que as janelas ainda fossem adornadas com toalhas,
almofadas, tapeçarias? Quem iria fazer isto? Se já não mora ninguém no centro,
é cada vez menor o número de fiéis que acompanham a procissão e é cada vez maior
a proporção de não católicos na cidade... E as folhas de manga iriam ser
colhidas onde? As residências não têm mais quintais. Então, precisa mesmo que a
prefeitura ajude, pelo menos mandando caiar no piso da avenida alguns desenhos
referentes à data. E contratando a banda de música para acompanhar o préstito.
Tudo com muito cuidado contábil, por causa do artigo dezenove da Constituição.
E os músicos já não aceitam tocar seus instrumentos movidos apenas pela fé, principalmente
agora que mais da metade da banda é constituída de evangélicos.
Para
que mesmo iríamos enfeitar as ruas? Para atrair turistas, fingindo que a cidade
mantém suas tradições religiosas? Sendo que nossos moradores, aproveitando os
feriados, foram praticar turismo em outros municípios... Deveríamos então contar
– como antigamente – com o afluxo de roceiros que viriam espiar o movimento?
Sem esperança! Mais fácil os moradores da cidade, nesses dias, irem passear na
roça, visitando os pesqueiros e lanchonetes de lá.
Na
Semana Santa, nas festas de santos, nas cavalgadas de São Benedito, nas Folias
de Reis... De todos os eventos culturais que já foram majestosos restam hoje
festas divertidas sim, mas quase que estritamente comerciais. Ou esportivas,
caso das cavalgadas. Poucos se lembram do santo, interessam as barracas em
volta da santidade esquecida.
No
entanto, ainda vivem, nas estreitas ruas da periferia, alguns velhinhos que
sabem as rezas, que entoam as músicas que nunca foram escritas, velhinhos que
ainda têm o poder de encantar os netos com o seu conhecimento e seu gingado.
Velhinhas que sabem as receitas, que têm os modelos e moldes. Esses guardiões
deverão ter suas memórias registradas.
Reunido
com alguns interessados nos movimentos culturais, ouvi um relato triste e uma
proposta assustadora. Os artesãos não estavam comparecendo às feirinhas de
artesanato, porque vendiam muito pouco, as pessoas preferiam comprar, ali por
perto mesmo, produtos chineses, bem baratinhos. Ora, para que eles voltassem à
praça, embelezando-a com suas barraquinhas cheias de bordados, bonecos,
almofadinhas e panos de prato, seria bom que a prefeitura começasse a
pagar-lhes um cachê todo final de semana. Argumentei que isto não era possível
e também machucava a lógica de mercado e os princípios da administração
pública. Mas aquilo ficou me preocupando. Se não há mais compradores para
artesanato, vale forçar a permanência de uma feira? Para manter uma tradição?
Mas não há caminho para refazer o passado. Compravam-se tais produtos
antigamente não por beleza e adorno, mas por necessidade e uso no dia a dia.
Muita da matéria prima do artesanato daqueles tempos era extraída das matas, do
leito dos rios, das praias. Isto hoje poderia tipificar um crime.
Assim,
alguns eventos culturais vão se transformando em réplicas de si mesmos, em pobres
imitações de grandiosos acontecimentos do passado. Mas que podem valer como
registro, como auxiliar da memória coletiva, para que as atuais gerações sejam
informadas de que este Vale já foi habitado, nos duríssimos tempos do
desconforto e da simplicidade, por um povo unido, ético, piedoso e criativo.
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Imagem: pt.m.wikipedia.org
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