quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Uma aluna em dificuldades



Senhor, fazei-me instrumento de Vossa paz!
Oração de São Francisco


Estava uma manhã muito bonita, era primavera. Depois do recreio, os alunos muito quietinhos faziam as lições. O gado do Seu Irineu, lá longe, de vez em quando mugia. Parede e meia com a escola, a casa da Dona Rosinha era quase silêncio completo: uma ou outra panela que batia, chinelos pelo corredor de tijolo, o rádio ligado num programa evangélico... Aí a Eva chegou até a minha mesa e falou baixinho: “Professor, a Joana fez cocô na saia, posso levar ela lá em casa pra ela se lavar? Eu peço pra vó emprestar uma roupa minha pra ela.”
A avó da Eva era justamente a vizinha, a Dona Rosinha. E para lá foram as duas. Eu peguei o pano de chão, molhei, pinguei um pinho-sol e limpei a carteira e o chão. Os aluninhos nas suas lições. A Maria Lúcia que falou: “Coitada da Joana, né Professor?”
Demora um pouco, voltam as meninas. A Eva com um sorrisão tranquilo, tinha feito um ato bom. A Joana meio envergonhada, mas feliz na roupa limpa emprestada pela Dona Rosinha, e cheirosa do banho tomado. Depois, fim de aula, até amanhã, não esqueçam a tarefa etc., as crianças vão embora conversando em grupinhos, mas quase todas juntas, a estrada era uma só para todos, até a encruzilhada do Cepinho. Ali se dividiam, porque o pessoal da Fazenda Santana tinha que seguir reto mais uns quilômetros.
E eu reparei: “Veja só, que sossego, todos conversando bem amigos, ninguém debochando de ninguém, a Joana recebeu só manifestações de atenção, de coitadinha... Se fosse na cidade? Se fosse noutro lugar? Como que a gente faz para levar este clima para outros lugares?
A estrada era a Estrada do Pagador Andrade, que levava a outras fazendas, à represa, e a mais sossego. Hoje essa estrada leva para uma imensa fábrica de cerveja e a loteamentos novos. O lugar é o mesmo, o tempo passou, muito. O sossego deve ter acabado. Eu, depois desse dia, já trabalhei em muitos lugares, já confirmei que aquilo só podia ter acontecido ali, naquele tempo, com aquelas crianças, naquelas manhãs de primavera.
Mas dentro do meu coração eu continuei acreditando que é preciso caminhar naquela direção, que não posso perder de vista aquele momento, que a minha missão é reconstruir a utopia que eu vivenciei numa pobre sala de aula do Bairro do Rio Abaixo, em Jacareí.
E hoje eu sei que fraternidade é o nome daquela utopia. 

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Autor: Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

Extraído do livro “Aconteceu na Escola”

Um comentário:

  1. Maravilhoso, também não deixo de acreditar nessa inocência, ou talvez pureza. que tempos bons, não podem ser apagados nunca de nossa memória, professor tem sempre uma boa história para contar e que nos deliciam ao ler, Parabéns.

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