segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Quem serve para ser professor?




O Jofre foi meu aluno no quarto ano do magistério. Um desses alunos que passam ao professor uma tranquila segurança com relação ao futuro da profissão. Era o único homem na classe. Um homem grandão, um negro forte, de fala sossegada. Através das histórias que me contou, provavelmente eu aprendi mais com ele do que ele comigo.
Jofre era seminarista. Pretendia mais do que ser sacerdote, queria ser sacerdote e professor. Acumulara uma série de experiências raras na estrada da educação. Tinha coordenado trabalhos comunitários em favelas, aproveitando muito bem as oportunidades de conhecer de perto o povo de Deus. Agora, quando se preparava para ser dirigente espiritual, ao mesmo tempo queria ser educador desse povo.
O que podíamos nós, professores do magistério, fazer por ele?
Primeiro, devíamos nos sentir honrados em tê-lo como aluno. Depois, devíamos desenvolver-lhe as habilidades pedagógicas, habilitando-o a nos suceder na missão de ensinar.
Ele tinha dificuldades, sim. Ao colocar suas ideias no papel não conseguia fazê-lo com a mesma desenvoltura com que as colocava numa conversa. Durante o ano todo foi essa a nossa prioridade no trabalho com ele: auxiliá-lo, indicando-lhe meios de burilar a sua expressão escrita.
Pois chegou o final do ano letivo e, surpresa: o Jofre estava retido em Psicologia. As colegas dele não se conformavam, eu não me conformei... Mas calma, vai haver o conselho de classe, claro que essa decisão vai ser revogada...
Reunião do conselho, um tanto de boa vontade, outro tanto de guerrinha de vaidades...  Os casos vão sendo analisados, nota vermelha, excesso de faltas, essa dá para passar, essa é boa, essa uma avacalhou... E assim foi indo. Chegou a vez do Jofre. Os professores concordavam que ele tinha muito potencial, mas tinha suas dificuldades de expressão. Ué, mas o professor de Português, o que diz? Disse: o João superou suas dificuldades, passou comigo. E então? A professora de Psicologia, inflexível: Comigo, não dá para passar.
Defendi o Jofre. Será um excelente professor. É de pessoas como ele que o magistério precisa, pessoas com toda a vivência social que ele tem... Mas afinal, professora, qual a deficiência dele na sua matéria?
E as provas foram exibidas: olha aqui, essa prova do último bimestre, eu perguntei aqui e ele não soube responder o que é mancinismo.
Terrível alguém não saber o que é isso? Eu disse: Eu também não sei. E isto não me prejudicou até hoje... Então tenho que ser mandado embora desta escola, não posso mais dar aula... Pois se o Jofre vai ser impedido de receber o diploma por causa disso.
E foi impedido mesmo. O conselho não quis prosseguir a polêmica, a maioria foi pelo parecer da professora da matéria: se ela acha que não dá para receber o diploma, então não dá. E não deu... Foi mais uma vitória para a já famosa inflexibilidade da professora.
Aconteceu a cerimônia de diplomação. O quarto magistério... As moças muito bem arrumadinhas, uma festa, e o Jofre não estava... Dias depois, encontrei-o na igreja. Que pena, professor, fiquei triste sim, mas não faz mal. Desisti do magistério, agora estou indo para Lorena, já passei no vestibular, vou fazer Teologia, me ordenar padre.
Então foi assim: O Jofre servia para ser padre, mas no entender da professora de Psicologia, e de vários colegas do conselho, não servia para ser professor primário. Pois desconhecia o que é mancinismo. Hoje talvez ele tenha aprendido o significado da palavra, mas se não souber, também não lhe deve fazer falta nenhuma.
Continuo acreditando que o magistério só teria a ganhar com a participação dele como professor.

*
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Extraído do livro “Aconteceu na Escola”, do autor.

Um comentário:

  1. Como é atual sua história, Paulo ......hoje, o aluno é retido por ter "comportamento inadequado", ou "perturbar o ano inteiro"....não interessa o que aprendeu ou não, as dificuldades que superou.....que triste!!!

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