quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A técnica da redescoberta


Na década de 1980, sendo eu diretor da Escola Ismênia, a Milu lecionava ciências e matemática para as terceiras e as quartas séries. Um dia veio falar comigo na diretoria e já entrou declarando, com um ar meio desesperado: “Vou voltar para o livro! Não está dando certo, já é outubro e os alunos estão muito atrasados, muito mesmo!”
Meses antes, ela tinha participado de uma série de reuniões na Oficina Pedagógica e voltou encantada com as ideias de ensinar tudo através da experimentação e dos trabalhos em grupo. Queria, em lugar de passar o conhecimento pronto e embalado em pontos na lousa ou em lições de livros, queria que os alunos fizessem experiências para redescobrir o que já tinha sido descoberto pelos cientistas.
Ora, é tão emocionante a gente ver um profissional da educação entusiasmado com uma ideia pedagógica! Autorizei imediatamente – como coisa que um professor necessitasse de autorização do diretor para adotar uma linha pedagógica! Bom, mas autorizei e garanti apoio. Ela ia mesmo precisar de apoio. As aulas ficaram de repente bem mais movimentadas. Mais barulhentas.
Alunos saíam e entravam, carregando madeiras, pregos, ferramentas. Iam se reunir em grupos nos locais mais diversos da escola, uma turminha no galpão, outra na biblioteca... Faziam suas experiências seguindo um roteiro discutido com a Milu e depois elaboravam relatórios para dizer o que tinham aprendido.  Era indiscutível que os alunos estavam finalmente formando conceitos sobre o que estudavam. Mas isto tudo, apesar de ser profundo, era muito lento! E muito barulhento! Daí o desespero da professora.
Numa aula tradicional seria bem rápido ensinar as unidades de medidas. Era só desenhar na lousa uma tabela com a sequência crescente e a decrescente das medidas a partir da medida padrão, e dizer que bastava ir mudando a vírgula para transformar, por exemplo, metros em milímetros ou quilômetros, litros em decilitros etc. Num instantinho o professor podia anotar no seu diário de classe que já tinham sido dadas as medidas de volume, comprimento, massa e outras. Sim, tinham sido dadas – mas, se tinham sido compreendidas, disto ninguém tinha certeza nem parava muito para pensar.
Agora, com o novo jeito de ensinar que a professora estava adotando, a intenção era fazer a classe compreender através da experimentação. Antes de estudar as medidas-padrão, vamos fazer as crianças começarem lá atrás, no tempo dos babilônios e fenícios. Em vez de falar em grama, quilo, tonelada, vamos construir uma balança de braços iguais. Cada equipe faz a sua balança, trazendo de casa umas ripas e pregos – e também dois pratos de colocar samambaia, com as correntes. Pendura um prato em cada braço da balança, e vamos fazer que eles fiquem equilibrados, colocando um livro num dos pratos e vamos encher o outro prato com borrachas até podermos concluir que a massa de um livro é igual à massa de trinta e sete borrachas. Assim, aos poucos, os alunos vão descobrindo que era preciso inventar uma medida-padrão, porque cada livro tem um peso diferente, e cada borracha também, e há borrachas meio usadas, algumas foram mordidas e tudo ficava muito incerto... Por isto, foi inventado o grama, com seus múltiplos e submúltiplos.
E ainda faltava estudar medidas de comprimento, de volume, de área, de tempo... Por isto foi que, em outubro, vendo que a matéria praticamente não tinha sido dada, a professora Milu resolveu dar adeus às ideias da Escola Ativa, voltou para os livros e começou de novo a pôr o ponto na lousa e ninguém mais martelou o dedo ao construir uma balança.
Uma parte de mim – a parte sonhadora – ficou meio triste: saudade dos meus primeiros tempos de professor... Mas a parte prática teve de concordar. Tinha que cumprir o programa. O episódio rendeu várias discussões, inclusive na Oficina Pedagógica. Introduzi na discussão o fato de que as escolas privadas não se encantam muito com as técnicas de redescoberta. Dão ao aluno o conhecimento já pronto, para ser aprendido como está, como nos foi legado pelas gerações de sábios desde a antiguidade. Para dar o exemplo extremo, num cursinho para vestibular alguém vai tentar ensinar através da redescoberta? Com trabalhos em grupo? Ah, não vai não. Os seus alunos precisam aprender rápido uma grande quantidade de conhecimentos. Na escola pública os professores são incentivados a não se incomodar muito com essa quantidade, importa é que as aulas sejam movimentadas, alegres, criativas, com muita atividade grupal, socializante.
Mas creio que não precisamos abandonar de todo essa técnica. Se não é possível dar toda a matéria fazendo o aluno redescobrir tudo que já foi descoberto, é possível introduzir uma ou outra aula extremamente instigadora, propositadamente ocultando dos alunos a informação final, para que eles, individualmente ou em equipes, busquem a solução.
Anos depois desse episódio, quando eu já tinha voltado a lecionar para alunos de quarta série, comecei a contar para a classe a história das grandes descobertas. Isto foi na Gilda Piorini. Descrevi as caravanas, mostrei fotos de camelos, comparei com as tropas de burro que já foram comuns em nossa região, enumerei os produtos que a Europa comercializava com o Oriente, mostrei no mapa os pontos de partida das caravanas e os destinos mais buscados, como Calicute, na Índia.
Até aí, estava dando uma aula nos melhores moldes do ensino tradicional. Mas então afastamos as carteiras, assumimos a dramatização de uma partida de caravana. Livremente, os alunos incorporaram uma das personagens típicas, cameleiros gritando uns com os outros, os guias discutindo as rotas, mulheres chorando ou fazendo recomendações aos maridos que partiam, cachorros latindo... Afinal, bem lentamente, lentamente, a caravana se pôs em movimento, até que, ao meu sinal, tudo se foi congelando, a cena teatral acabou e as crianças aplaudiram e gritaram, e se abraçavam, emocionadas, e vinham me abraçar também.
Na próxima aula, a classe se dividiu em equipes, cada aluno tinha seu atlas e o grupo tinha que ir descrevendo o itinerário seguido pela caravana, desde Lisboa ou Madri, até Calicute. Depois de muito estudo dos mapas, todos acabaram traçando roteiros lógicos, que incluíam a travessia do Bósforo, entre a Europa e a Ásia. Um dos grupos resolveu – vejam só – não prosseguir viagem, achou que era mais lucrativo abrir um grande armazém na Itália, e ficar ali mesmo, bem na rota das caravanas, para ganhar muito dinheiro abastecendo os viajantes, quem sabe cobrando deles parte da mercadoria que estivessem trazendo!
Mas todos os demais acabaram chegando às Índias e prossegui com a narração, eu mesmo encantado com a participação daquelas crianças de nove e dez anos. De repente, penalizado, contei-lhes, que os turcos haviam tomado Constantinopla e não dava mais para as caravanas europeias passarem por ali!  
Diante do mapa mundi pendurado na lousa, a classe, novamente dividida em equipes – ou caravanas – começou a buscar a solução, rotas alternativas. Houve sugestões de trafegar mais para o norte, mas eu contava sobre as estepes geladas da Rússia, mostrava o Himalaia, os camelos não iam passar. Alguém queria que atravessássemos o Mediterrâneo na altura de Gibraltar e prosseguíssemos para leste pelo norte da África. Sim, isto tinha de fato acontecido, mas o Saara, eu dizia, era impiedoso – e descrevia as dunas, o areal imenso (citava Castro Alves), mostrava fotos do deserto. E acrescentava os árabes dominando a Palestina, por ali não ia dar passagem não. As crianças ficavam desesperadas.
Então a Mayza disse: “Já sei”.
Levantou-se, foi à frente da sala e traçou sobre o mapa o caminho que ela tinha descoberto. Com o dedinho saindo da Península Ibérica, desenhou pelo Atlântico uma linda curva descendente, passou rente à África, contornou o Cabo das Tormentas, subiu pelo Índico entre Madagascar e o continente, subiu mais, derivou levemente para a direita, e chegou na Índia! Corremos para a lousa: o dedinho dela tinha parado em Calicute!
Era a rota que portugueses e espanhóis levaram séculos para descobrir.

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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
No livro ACONTECEU NA ESCOLA
Registro 344.938 - Fundação Biblioteca Nacional

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