Na década de
1980, sendo eu diretor da Escola Ismênia, a Milu lecionava ciências e
matemática para as terceiras e as quartas séries. Um dia veio falar comigo na
diretoria e já entrou declarando, com um ar meio desesperado: “Vou voltar para o livro! Não está dando
certo, já é outubro e os alunos estão muito atrasados, muito mesmo!”
Meses antes,
ela tinha participado de uma série de reuniões na Oficina Pedagógica e voltou
encantada com as ideias de ensinar tudo através da experimentação e dos
trabalhos em grupo.
Queria , em lugar de passar o conhecimento pronto e embalado
em pontos na lousa ou em lições de livros, queria que os alunos fizessem
experiências para redescobrir o que já tinha sido descoberto pelos cientistas.
Ora, é tão
emocionante a gente ver um profissional da educação entusiasmado com uma ideia
pedagógica! Autorizei imediatamente – como coisa que um professor necessitasse
de autorização do diretor para adotar uma linha pedagógica! Bom, mas autorizei
e garanti apoio. Ela ia mesmo precisar de apoio. As aulas ficaram de repente
bem mais movimentadas. Mais barulhentas.
Alunos saíam
e entravam, carregando madeiras, pregos, ferramentas. Iam se reunir em grupos
nos locais mais diversos da escola, uma turminha no galpão, outra na biblioteca...
Faziam suas experiências seguindo um roteiro discutido com a Milu e depois
elaboravam relatórios para dizer o que tinham aprendido. Era indiscutível que os alunos estavam
finalmente formando conceitos sobre o que estudavam. Mas isto tudo, apesar de ser
profundo, era muito lento! E muito barulhento! Daí o desespero da professora.
Numa aula
tradicional seria bem rápido ensinar as unidades de medidas. Era só desenhar na
lousa uma tabela com a sequência crescente e a decrescente das medidas a partir
da medida padrão, e dizer que bastava ir mudando a vírgula para transformar,
por exemplo, metros em milímetros ou quilômetros, litros em decilitros etc. Num
instantinho o professor podia anotar no seu diário de classe que já tinham sido
dadas as medidas de volume, comprimento, massa e outras. Sim, tinham sido dadas – mas, se tinham sido
compreendidas, disto ninguém tinha certeza nem parava muito para pensar.
Agora, com o
novo jeito de ensinar que a professora estava adotando, a intenção era fazer a
classe compreender através da experimentação. Antes de estudar as
medidas-padrão, vamos fazer as crianças começarem lá atrás, no tempo dos
babilônios e fenícios. Em vez de falar em grama, quilo, tonelada, vamos
construir uma balança de braços iguais. Cada equipe faz a sua balança, trazendo
de casa umas ripas e pregos – e também dois pratos de colocar samambaia, com as
correntes. Pendura um prato em cada braço da balança, e vamos fazer que eles
fiquem equilibrados, colocando um livro num dos pratos e vamos encher o outro
prato com borrachas até podermos concluir que a massa de um livro é igual à
massa de trinta e sete borrachas. Assim, aos
poucos, os alunos vão descobrindo que era preciso inventar uma
medida-padrão, porque cada livro tem um peso diferente, e cada borracha também,
e há borrachas meio usadas, algumas foram mordidas e tudo ficava muito
incerto... Por isto, foi inventado o grama,
com seus múltiplos e submúltiplos.
E ainda
faltava estudar medidas de comprimento, de volume, de área, de tempo... Por
isto foi que, em outubro, vendo que a matéria praticamente não tinha sido dada, a professora Milu resolveu dar
adeus às ideias da Escola Ativa, voltou para os livros e começou de novo a pôr
o ponto na lousa e ninguém mais martelou o dedo ao construir uma balança.
Uma parte de
mim – a parte sonhadora – ficou meio triste: saudade dos meus primeiros tempos
de professor... Mas a parte prática teve de concordar. Tinha que cumprir o programa. O episódio rendeu
várias discussões, inclusive na Oficina Pedagógica. Introduzi na discussão o
fato de que as escolas privadas não se encantam muito com as técnicas de
redescoberta. Dão ao aluno o conhecimento já pronto, para ser aprendido como
está, como nos foi legado pelas gerações de sábios desde a antiguidade. Para
dar o exemplo extremo, num cursinho para vestibular alguém vai tentar ensinar
através da redescoberta? Com trabalhos em grupo? Ah, não vai não. Os seus
alunos precisam aprender rápido uma grande quantidade de conhecimentos. Na
escola pública os professores são incentivados a não se incomodar muito com
essa quantidade, importa é que as aulas sejam movimentadas, alegres, criativas,
com muita atividade grupal, socializante.
Mas creio
que não precisamos abandonar de todo essa técnica. Se não é possível dar toda a
matéria fazendo o aluno redescobrir tudo que já foi descoberto, é possível
introduzir uma ou outra aula extremamente instigadora, propositadamente
ocultando dos alunos a informação final, para que eles, individualmente ou em
equipes, busquem a solução.
Anos depois
desse episódio, quando eu já tinha voltado a lecionar para alunos de quarta
série, comecei a contar para a classe a história das grandes descobertas. Isto
foi na Gilda Piorini. Descrevi as caravanas, mostrei fotos de camelos, comparei
com as tropas de burro que já foram comuns em nossa região, enumerei os
produtos que a Europa comercializava com o Oriente, mostrei no mapa os pontos
de partida das caravanas e os destinos mais buscados, como Calicute, na Índia.
Até aí,
estava dando uma aula nos melhores moldes do ensino tradicional. Mas então
afastamos as carteiras, assumimos a dramatização de uma partida de caravana.
Livremente, os alunos incorporaram uma das personagens típicas, cameleiros
gritando uns com os outros, os guias discutindo as rotas, mulheres chorando ou
fazendo recomendações aos maridos que partiam, cachorros latindo... Afinal, bem
lentamente, lentamente, a caravana se pôs em movimento, até que, ao meu sinal, tudo
se foi congelando, a cena teatral acabou e as crianças aplaudiram e gritaram, e
se abraçavam, emocionadas, e vinham me abraçar também.
Na próxima
aula, a classe se dividiu em equipes, cada aluno tinha seu atlas e o grupo
tinha que ir descrevendo o itinerário seguido pela caravana, desde Lisboa ou
Madri, até Calicute. Depois de muito estudo dos mapas, todos acabaram traçando
roteiros lógicos, que incluíam a travessia do Bósforo, entre a Europa e a Ásia.
Um dos grupos resolveu – vejam só – não prosseguir viagem, achou que era mais
lucrativo abrir um grande armazém na Itália, e ficar ali mesmo, bem na rota das
caravanas, para ganhar muito dinheiro abastecendo os viajantes, quem sabe cobrando
deles parte da mercadoria que estivessem trazendo!
Mas todos os
demais acabaram chegando às Índias e prossegui com a narração, eu mesmo
encantado com a participação daquelas crianças de nove e dez anos. De repente,
penalizado, contei-lhes, que os turcos haviam tomado Constantinopla e não dava
mais para as caravanas europeias passarem por ali!
Diante do mapa mundi pendurado na lousa, a classe,
novamente dividida em equipes – ou caravanas – começou a buscar a solução,
rotas alternativas. Houve sugestões de trafegar mais para o norte, mas eu
contava sobre as estepes geladas da Rússia, mostrava o Himalaia, os camelos não
iam passar. Alguém queria que atravessássemos o Mediterrâneo na altura de
Gibraltar e prosseguíssemos para leste pelo norte da África. Sim, isto tinha de
fato acontecido, mas o Saara, eu dizia, era impiedoso – e descrevia as dunas, o
areal imenso (citava Castro Alves), mostrava fotos do deserto. E acrescentava
os árabes dominando a Palestina, por ali não ia dar passagem não. As crianças
ficavam desesperadas.
Então a
Mayza disse: “Já sei”.
Levantou-se,
foi à frente da sala e traçou sobre o mapa o caminho que ela tinha descoberto. Com
o dedinho saindo da Península Ibérica, desenhou pelo Atlântico uma linda curva
descendente, passou rente à África, contornou o Cabo das Tormentas, subiu pelo
Índico entre Madagascar e o continente, subiu mais, derivou levemente para a
direita, e chegou na Índia! Corremos para a lousa: o dedinho dela tinha parado
em Calicute!
Era a rota
que portugueses e espanhóis levaram séculos para descobrir.
*****
Texto
de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
No
livro ACONTECEU NA ESCOLA
Registro
344.938 - Fundação Biblioteca Nacional
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