Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na
vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Álvaro
de Campos (Fernando Pessoa)
Quando assumi a
Escola do Bairro do Rio Abaixo, em Jacareí, descobri que meus alunos eram
crianças de primeira série, com seis ou sete anos de idade... Uma classe de
alfabetização para quem vinha de uma empolgante experiência com adolescentes.
Alfabetizar crianças da roça: ensinar a pegar no lápis, examinar as cabecinhas,
examinar as unhas... Um desânimo. Aquelas crianças não eram os alunos que eu
deixara no Porto Novo. Por causa de
informações truncadas, tinha pensado que no Rio Abaixo ia novamente lecionar
para crianças de terceira ou quarta série.
Por isso, fiquei com
antipatia delas. Com má vontade. Coitadas das crianças, perceberam a má vontade
do professor (elas me chamavam de Doutor Paulo...). Na hora do recreio eu não
saía para vê-las brincar. Ficava na sala, lendo. De vez em quando duas delas
espiavam pela janela, curiosas. E eu não me comovia: “Vão brincar, vão!”
A classe era dividida
em duas seções: a dos “adiantados”, que eram todos repetentes, e a dos
“atrasados”, que eram todos novos. Para a classe toda, a mesma cartilha, com a
distância de umas doze lições. Só havia uma lousa, portanto era preciso passar
tarefas pessoalmente nos cadernos de uma turma enquanto a outra copiava direto
do quadro: uma ginástica. Mais alguns dias e descobri que era mais fácil deixar
correr. Os pequeninos “atrasados” foram ficando na mão de Deus: parei de lhes
passar lições nos cadernos. Ficavam desenhando, ou copiando lições que eu
passava no quadro para os “adiantados”. Quer dizer: copiavam o que não entendiam,
só para fazer alguma coisa.
Heleninha ainda não
tinha sete anos. Estava, portanto, no
meio dos “atrasados”. Há muito tempo eu não olhava a sério o seu caderno e já
não a chamava para ler diante da mesa do professor. E um dia, quando acabei de colocar
na lousa a lição (dos “adiantados”) ela falou: “Professor, eu sei ler tudo isso
daí!”
Nem liguei. Imagina.
Sabe ler, bem capaz!
Com sua vozinha
aguda, irritante, insistiu: “Ô professor, eu sei ler tudo isso daí, tem gente
que é repetente e não sabe!”
Que chateação essa
menina que não para de falar. Vamos tirar a graça dela: “Então leia!”
E ela leu. Meio
declamado, solene, leu as três orações e todas as palavrinhas das três colunas.
Tudo decorado, pensei. Ela deve ter irmão que ensinou e ela está falando tudo
de cor. Vou ter que provar que ela não sabe. “Venha aqui.”
Abri a cartilha e fui
indicando as palavras que ela devia ler. Leu. Agora, salteado. Leu. Virei a
folha: então leia aqui. Leu. Virei uma porção de folhas, fui nas lições do fim
da cartilha: leu tudo. Gaguejando, mas leu.
Começou a me bater um
mal-estar. Mas eu ainda precisava completar a maldade. Precisava ir até o
fundo. Então tirei da gaveta o jornal, o mesmo jornal que eu ficava lendo
durante o recreio. Indiquei uma coluna, ela olhou e ... Começou a ler. Tropeçando, claro, mas foi
lendo, balançando a cabecinha afirmativamente a cada palavra, com o corpinho
duro, empertigado...
–
Heleninha, como que você aprendeu? Foi algum irmão?
E ela me disse (tão
contentinha...) que aprendeu a ler olhando quando eu estava ensinando para os
repetentes.
***
Não é que Heleninha
estivesse aprendendo sem professor. Ela estava aprendendo apesar do professor.
No fim de semana fui
atrás das professoras alfabetizadoras, experientes. Emprestei planos, cadernos,
semanários, diários. Pus na cabeça que ia recuperar o tempo perdido. Meu Deus:
desde maio que estou nessa escola. Já estamos em setembro e não fiz nada pelos
“novos”. E pelos repetentes eu fiz? Fiz nada. Só toquei para frente e eles vão
indo porque é a segunda vez que usam a cartilha....
Mudei. Graças a Deus.
Comecei a me interessar pelas crianças. Comecei a brincar com elas no recreio.
Mudei a posição das carteiras, enchi as paredes com gravuras, cartazes. Trouxe
minhas flores e as crianças perceberam a mudança. Comecei a ensinar: era para isto que eu estava lá.
Não foi possível
promover os “novos” no final do ano. A minha mudança tinha sido tardia. Mas
terminaram o ano bem adiantados e iriam compor um primeiro ano “forte”. No ano
seguinte, a professora que lecionava de manhã me ofereceu a chance de fazer uma
troca: ela ficaria com o primeiro ano, deixando para mim o segundo e o
terceiro. Agradeci o gesto de boa vontade, tão raro! Mas recusei, fiz questão
de pegar novamente a classe de alfabetização, queria participar do milagre,
presenciar o instante epifânico em que uma criancinha começa a ler, testemunhar
as suas primeiras redações.
Em abril, minhas
crianças de sete anos estavam lendo. Em maio escreviam pequenas redações. E a
Heleninha no meio! Ficou na minha classe até a conclusão da quarta série, ali
mesmo, no Rio Abaixo. Poder testemunhar o seu progresso, ano a ano, para mim
foi uma bênção divina, parece que era para permitir que diariamente eu pudesse
me redimir, me penitenciar da negligência inicial.
Nunca mais fui o
mesmo. Antes, eu tinha sido o que eu pensava que fosse um professor. Então comecei a me construir como
educador. Graças a Deus! Graças a
Heleninha!
***
Em 2012 lancei o
livro “Aconteceu na Escola”, que inclui esta narração. Em outubro fui fazer o
lançamento no Museu de Jacareí. Compareceram alguns dos meus aluninhos daquele
tempo: Juliana, Selma, Rogério, Valdir... Perguntei sobre a Heleninha, Juliana
contou que ela tinha falecido havia cerca de dez anos.
*****
Texto
de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
No
livro ACONTECEU NA ESCOLA
Registro
344.938 - Fundação Biblioteca Nacional
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