sábado, 8 de março de 2014

A menina e o golpe militar



Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira
Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio
Nem a armadura das palavras.
Thiago de Mello


Nunca acreditei que tenha sido em 31 de março. Para mim, foi uma revolução de primeiro de abril. Na verdade, um golpe militar. Mas nós professores, durante décadas intermináveis, éramos obrigados a comemorar a “Revolução de 31 de Março”. E não comemorássemos para ver as consequências...
Na noite em que a coisa aconteceu, minha mãe chorou ao lado do rádio. Eu e meus irmãos em volta... E desde o primeiro momento já tínhamos a claríssima noção de que era ilegalidade aquilo que estava sendo perpetrado.
Moços da roça, muito pobres, todos os dias indo para a cidade estudar... Tínhamos uma esperança tão sincera, tão singela, com relação ao governo do Jango... A esperança foi arquivada naquela noite, em 64, com minha mãe chorando perto do rádio.
Terminei a Escola Normal, comecei a lecionar e me tornei efetivo.
Em 71, lecionando no Porto Novo, em Caraguatatuba, eis que vinha chegando mais um trinta e um de março e eu era obrigado a explicar para a minha quarta série alguma coisa sobre a data. Difícil, porque não queria embarcar na propaganda oficial, nem podia dar abertamente a minha opinião sobre a tramoia.
Mas alguma coisa eu precisava falar porque os militares de São José dos Campos cobravam de nós, do litoral, um concurso de redações sobre a “revolução redentora” ...
Linda manhã de sol, era tão bonita a paisagem que se avistava pelas janelas da minha sala de aula, a escola com fundos para a vegetação da Praia das Palmeiras... E eu falando para meus alunos: Os militares tiraram o Jango... O Jango queria implantar o comunismo etc.
Maria levantou o dedo: Professor, o que é comunismo?
Que dificuldade! Para falar de comunismo eu queria falar de Cristo e dos índios brasileiros. Mas as metralhadoras e os paus de arara preferiam que eu falasse de Marx, União Soviética, Cuba, China, Diabos e Demônios. Fui pronunciando as frases, palavra por palavra, tateando no solo minado.
Está bem, então agora escrevam pelo menos uma página sobre a revolução de trinta e um de março. A Diretora já estava batendo na porta cobrando as redações: “Rápido, vão levar hoje para a Delegacia de Ensino e de lá para São José. Põe neste envelope, escreve o nome do professor, a classe, a escola, vamos, vamos, que é o último dia do prazo”.
Meu Deus! Não dá tempo de corrigir direito. Mas enfiei de novo a mão no envelope e puxei algumas redações (vamos por amostragem, tomara que não tenha muito erro de Português, não podemos envergonhar a escola...). A da Maria começava assim:

Os militares tiraram o João Goulart do poder porque ele queria pôr o comunismo no Brasil. Que bom se começasse o comunismo! Meu pai tem muita vontade de ter uma terra para ele plantar, eu também queria que ele tivesse uma roça que eu gosto de trabalhar com a terra. Mas o meu pai nunca vai poder comprar um sítio, que nós somos pobres. Se entrasse o comunismo no Brasil o meu pai ia poder ter uma terra para a nossa família viver, não precisava mais a gente pagar aluguel (...)

A letra era bonita, redondinha. Quase nenhum erro de ortografia, a concordância toda certinha. Mas aquela redação não poderia subir a Serra do Mar, não poderia dar entrada num quartel lá de cima, no Vale do Paraíba. Aquelas linhas inocentes, assim que fossem lidas pelos militares do CTA, iam pôr em movimento um eficaz sistema de repressão. Em vez de ganhar um pequeno prêmio, a redação da minha aluna ia disparar desgraças para todos: para ela, para sua família, para mim e meus colegas, até para a diretora chata, que nos perseguia... O próprio sossego do bairro seria de alguma forma afetado. E a manhã do Porto Novo estava tão linda, os coqueiros balançavam de leve no vento, os meus alunos tão bonitos com seus uniformes limpinhos...
O envelope foi para a diretoria, mas ficou na minha gaveta a redação da Maria. A diretora não teria mesmo tempo de conferir se estava faltando alguma. Na hora do recreio piquei bem miudinho aquela página tão sincera e tão bem escrita. Piquei, piquei, olhando para as minhas mãos de educador e tendo uma espécie de nojo daquilo que elas estavam fazendo.
Alguns anos depois eu me tornei diretor de escola e, desde o meu primeiro trinta e um de março como diretor, já decretei: Acabou, nós não vamos nunca fazer festa nessa data maldita.
Mas aí já nem era heroísmo nenhum, estávamos em 79 e o regime apodrecia. Difícil mesmo seria ter agido com tanta independência no ano de 71, lá no Porto Novo.
Durante algum tempo ainda, de vez em quando a Maria perguntava: E daí, Professor, aquele concurso de redação, o que que deu lá, não sabe quem que ganhou...?

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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Na obra: ACONTECEU NA ESCOLA
Edição do autor – Pindamonhangaba
224 páginas; 21 cm
ISBN 978-85-913453-0-4
1. Educação. 2. Docentes. 3. Formação de Docentes
Contato com o autor: paulotarcizio@gmail.com

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