Fica decretado que os homens estão livres do jugo da
mentira
Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio
Nem a armadura das palavras.
Thiago
de Mello
Nunca acreditei que tenha sido em 31 de março. Para mim,
foi uma revolução de primeiro de abril. Na verdade, um golpe militar. Mas nós professores, durante décadas
intermináveis, éramos obrigados a comemorar a “Revolução de 31 de Março”. E não
comemorássemos para ver as consequências...
Na noite em
que a coisa aconteceu, minha mãe chorou ao lado do rádio. Eu e meus irmãos em volta... E desde o
primeiro momento já tínhamos a claríssima noção de que era ilegalidade aquilo
que estava sendo perpetrado.
Moços da
roça, muito pobres, todos os dias indo para a cidade estudar... Tínhamos uma
esperança tão sincera, tão singela, com relação ao governo do Jango... A
esperança foi arquivada naquela noite, em 64, com minha mãe chorando perto do
rádio.
Terminei a Escola
Normal, comecei a lecionar e me tornei efetivo.
Em 71,
lecionando no Porto Novo, em Caraguatatuba, eis que vinha chegando mais um trinta e um de março e eu era obrigado a
explicar para a minha quarta série alguma coisa sobre a data. Difícil, porque
não queria embarcar na propaganda oficial, nem podia dar abertamente a minha
opinião sobre a tramoia.
Mas alguma
coisa eu precisava falar porque os militares de São José dos Campos cobravam de
nós, do litoral, um concurso de redações sobre a “revolução redentora” ...
Linda manhã
de sol, era tão bonita a paisagem que se avistava pelas janelas da minha sala
de aula, a escola com fundos para a vegetação da Praia das Palmeiras... E eu
falando para meus alunos: Os militares tiraram o Jango... O Jango queria
implantar o comunismo etc.
Maria
levantou o dedo: Professor, o que é comunismo?
Que
dificuldade! Para falar de comunismo eu queria falar de Cristo e dos índios
brasileiros. Mas as metralhadoras e os paus de arara preferiam que eu falasse
de Marx, União Soviética, Cuba, China, Diabos e Demônios. Fui pronunciando as
frases, palavra por palavra, tateando no solo minado.
Está bem,
então agora escrevam pelo menos uma página sobre a revolução de trinta e um de
março. A Diretora já estava batendo na porta cobrando as redações: “Rápido, vão
levar hoje para a Delegacia de Ensino e de lá para São José. Põe neste
envelope, escreve o nome do professor, a classe, a escola, vamos, vamos, que é
o último dia do prazo”.
Meu Deus! Não
dá tempo de corrigir direito. Mas enfiei de novo a mão no envelope e puxei
algumas redações (vamos por amostragem, tomara que não tenha muito erro de
Português, não podemos envergonhar a escola...). A da Maria começava assim:
Os militares tiraram o João Goulart do poder
porque ele queria pôr o comunismo no Brasil. Que bom se começasse o comunismo! Meu
pai tem muita vontade de ter uma terra para ele plantar, eu também queria que
ele tivesse uma roça que eu gosto de trabalhar com a terra. Mas o meu pai nunca
vai poder comprar um sítio, que nós somos pobres. Se entrasse o comunismo no
Brasil o meu pai ia poder ter uma terra para a nossa família viver, não
precisava mais a gente pagar aluguel (...)
A letra era bonita, redondinha. Quase nenhum erro de
ortografia, a concordância toda certinha. Mas aquela redação não poderia subir
a Serra do Mar, não poderia dar entrada num quartel lá de cima, no Vale do
Paraíba. Aquelas linhas inocentes, assim que fossem lidas pelos militares do
CTA, iam pôr em movimento um eficaz sistema de repressão. Em vez de ganhar um
pequeno prêmio, a redação da minha aluna ia disparar desgraças para todos: para
ela, para sua família, para mim e meus colegas, até para a diretora chata, que
nos perseguia... O próprio sossego do bairro seria de alguma forma afetado. E a
manhã do Porto Novo estava tão linda, os coqueiros balançavam de leve no vento,
os meus alunos tão bonitos com seus uniformes limpinhos...
O envelope
foi para a diretoria, mas ficou na minha gaveta a redação da Maria. A diretora
não teria mesmo tempo de conferir se estava faltando alguma. Na hora do recreio
piquei bem miudinho aquela página tão sincera e tão bem escrita. Piquei,
piquei, olhando para as minhas mãos de educador e tendo uma espécie de nojo
daquilo que elas estavam fazendo.
Alguns anos
depois eu me tornei diretor de escola e, desde o meu primeiro trinta e um de
março como diretor, já decretei: Acabou, nós não vamos nunca fazer festa nessa
data maldita.
Mas aí já
nem era heroísmo nenhum, estávamos em 79 e o regime apodrecia. Difícil mesmo
seria ter agido com tanta independência no ano de 71, lá no Porto Novo.
Durante
algum tempo ainda, de vez em quando a Maria perguntava: E daí, Professor, aquele concurso de redação, o que que deu lá, não
sabe quem que ganhou...?
• • •
Texto
de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Na obra: ACONTECEU NA ESCOLA
Edição
do autor – Pindamonhangaba
224
páginas; 21 cm
ISBN
978-85-913453-0-4
1.
Educação. 2. Docentes. 3. Formação de Docentes
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