Nós não nos considerávamos caipiras. Sim, falávamos barde, memo
(em lugar de mesmo), falá, comê, trabessero, têia (do teiado, ué!), ocê, bonde
no lugar de ônibus, ridico, cuié, muié, tá, nóis tava. Mas não éramos
caipiras que nem o pessoar da varge. Aquele pessoar sim, era caipira memo, uns
jacu do mato. Os caipiras de verdade, no nosso entender, eram os que falavam
num carece, em lugar de não precisa, entonce em vez de então e – o pior de tudo
– falavam ponhá em vez de pôr. O ponhá, para nós, era o estigma derradeiro.
Quando queriam provar que não eram caipiras ficava pior: faziam força para
acertar e falavam galfo, malmita... Nós, os filhos do professor, querendo falar
“Eles foram varrer o quintal porque estava muito sujo e nós fomos também”,
falaríamos “Eles fôro varrê o quintar porque tava muito sujo e nóis fomo
tamém”. Já os caipiras do fundo da varge diriam “Êzi fôro barrê o quintar
a mode que tava munto xujo e nóis fumo tamém”. Eram diferenças fundamentais,
acreditávamos.
A escrita nos salvou de continuar falando daquele jeito. Escrever,
a gente escrevia certo. Ainda mais no Ginásio, quando comecei a prestar mais
atenção na minha fala e aos poucos fui perdendo a caipirice do jeito de falar.
Se bem que em casa e no bairro mantive, como uma espécie de resistência e
saudosismo, na medida do possível, o meu linguajar costumeiro, como um
bilíngue. Quando comecei a trabalhar em dois lugares ao mesmo tempo, na escola
e na fábrica, falava de um jeito com as professoras e alunos e de outro jeito
com a peãozada.
Tentei transformar meus aluninhos do Rio Abaixo em cidadãos
bilíngues. A intenção era torná-los capazes de usar a forma culta sem desprezar
o seu riquíssimo linguajar coloquial. E sem misturar. Porque misturando dá
confusão. Com todo o respeito, não podemos desejar que numa casa caipira as
crianças de escola usem o linguajar culto no seu dia a dia. Presenciei um
garoto, que decerto queria estrear as novidades aprendidas na escola, falando
para sua avó: Vou pegá as telha.
E a avó: Pegá o quê, minino?
O neto, sério: As telha.
E a velha, no máximo do deboche: Que isso, “telha”? Que “telha”?
Fala direito, sua besta: é têia, viu, é têia... minino bobo... inventano
moda...
Trabalhando com os alunos da primeira série, certa vez forneci uma
folha mimeografada com quatro grupos de figuras. Em cada grupo uma figura
estava completa e as outras sofriam a falta de algum elemento do desenho. O
Rubens embatucou num dos desenhos. Olhava, olhava e não atinava com o que
estaria faltando. Fui ajudar: Este coelhinho está completo? Não falta nada
nele?
E o Rubens examinando, examinando... – Escuta Rubens: este coelho
tem orelha? E ele: – Tem...
E assim fui, perguntando, dando voltas, para não mostrar direto o
que estava faltando, que era justamente o olho: no desenho do coelhinho, de
perfil, faltava o olho. Mas o Rubens não se resolvia. – Rubens, este coelho tem
olho? E o Rubens, incrível, fez que sim, e falou: – Tem. Então entendi. E
perguntei: Rubens, este coelho tem zóio?
Heureca! Imediatamente o Rubens desenhou o olho do coelho.
*****
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Na obra: ACONTECEU NA ESCOLA
Edição do autor – Pindamonhangaba
224 páginas; 21 cm
ISBN 978-85-913453-0-4
1. Educação. 2. Docentes. 3. Formação de Docentes
Contato com o autor: paulotarcizio@gmail.com
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