domingo, 25 de fevereiro de 2018

Xícaras de porcelana dourada


Esse negócio de tomar café elegantemente, um bocado de pão, um gole de café... isso demorou. A gente bebia o café de gúti-gúti na caneca de folha, que o Seu Miguelzinho tinha colocado asa, e saía para o quintal comendo o pão. A caneca de folha deixava marca na testa, tanto tempo que a gente ficava bebendo e respirando dentro da caneca, o narizinho ficava cheio de gotinhas de vapor.
Mas no bufê, de vidro e espelhos manchados, tinha umas xícaras de porcelana, branquinhas por dentro e pintadas de amarelo por fora, com paisagem de coqueiro, casinha e mar. E também, do mesmo jogo, o bule, a leiteirinha, a manteigueira e o açucareiro. Mas era só de enfeite tudo isto, eu pensava. Até que veio o batizado da Auxiliadora, quando eu tinha quatro anos.
Na igreja, depois da missa cheia de incenso e do harmônio do Maestro Romão, minha irmãzinha bebê, de longa camisolinha branca, não estava no colo da mamãe, nem do papai. Estava no colo dos padrinhos, o Seu Vando e a Dona Bela Esteves. Orações, a fala do padre, a vela acesa, o algodão com óleo na testa e no peitinho da criança... Depois, fomos todos para casa – e os padrinhos também! Foram tomar café com a gente.
Quer dizer, tomar café com o papai e mamãe. Nós, crianças, fomos para a cozinha, sob os cuidados da Vovó, que estava com o Bosquinho no colo. Vovó falou que era para dar sossego para as visitas, tinha que ir para o quintal. Mas bem capaz! A gente queria ficar no corredor, espiando pelo vão da cortina de chita. Eu espiava, disputando espaço com os maiores, num empurra-empurra, mas não podia dar muita risada, nem cochichar muito.
Eu espiei, e vi. Ó maravilha! A mesa tinha ido para perto da janela da varanda, estava com toalha. Em cima da mesa, as xicrinhas amarelas! E o bulinho! E a leiteirinha, com o açucareiro de tampa, e a manteigueira! E tinha manteiga, que compraram na Dona Naná. E tinha pão doce, de casca marrom brilhando!
As cadeiras de pau tinham recebido capas de morim branco, que mamãe tinha costurado e bordado, com tirinhas para prender no encosto. Sentados, solenes, os adultos conversavam contentes, comentavam coisas, passavam manteiga no pão doce, punham café e leite, e tudo fumegava, e as colherinhas dançavam dentro das xícaras, tilintando. Mas me deram um bruto de um empurrão por trás e eu fui de cambalhota para o meio da sala e já fui me levantando aos trambolhões para me safar dali, mas deu tempo de ver a cara da minha mãe e o gesto que queria dizer “Ocê me paga!”.
Tinha mais ninguém no corredor não. Fugi para o quintal e estava todo mundo lá, rachando o bico de tanto dar risada.
Acho que não apanhei não, acho que ninguém apanhou, não lembro. Lembro que logo depois a gente tomou café com leite com pão doce com manteiga. Mas o café foi nas canecas de folha mesmo, as xicrinhas amarelas já tinham voltado para o bufê e ali ficaram mais uns vinte anos, até que foram sumindo, quebrando, desaparecendo.
O bufê acabou, as cadeiras de pau também, e as suas capas de encosto. Acabou essa coisa de ter na sala mesa com cadeiras. Acabou isso de a gente levar tombo e dar risada, a gente vai ficando mais fraco e triste e os tombos agora fazem a gente chorar.
Xicrinhas douradas de café com leite! Doces, lindas, frágeis, como a infância!  Frágeis como a vida.
* * * * *

Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Fotos: Mercado Livre

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Protegidos pela bondade



Foi no decorrer do segundo ano de escola que fiquei órfão de pai. Este era um papel melancólico, que atraía a atenção de todos, porque envolvia alguns rituais. Tínhamos que usar, durante um ano, uma tarja preta na gola do paletozinho. Mamãe tinha que usar roupa inteiramente preta. Adaptado à condição de órfão, fui percebendo algumas mudanças no modo de nos tratarem.
Toda vez que a gente ia comprar pão, ganhava um doce da Dona Naná. Nessa época estava germinando em mim o espírito de preocupação com os outros, a tendência de cuidar: O doce que eu ganhava, tendo ido sozinho à padaria, bem que poderia comer sozinho, com três mordidas e pronto. Mas não: levava para casa, ia com ele pelo meio dos eucaliptos que rodeavam o campo de futebol, ia com a sacola de pão e o doce e entregava tudo para mamãe, ou vovó. Então elas repartiam, cortavam com a faca – uma cirurgia ritual para multiplicar o doce por oito, já que éramos oito irmãos. Lembrando que precisava guardar uma fração para quem não estava, para quem ainda não tinha voltado do serviço, ou da escola.
Quando a gente ia comprar alguma coisa no bar, ganhava do Seu Rozalah, ou do Seu Zé Souraty, um picolé. Aleluia! Mas isto durou pouco, pouco mesmo. Um dia, fui à leiteria com o Bosco e a Auxiliadora. O Bosco se comportou, ganhou seu sorvete e ficou chupando bem calmo, chupando por igual, para não deixar que o picolé afinasse muito no centro e acabasse desabando do palito. Mas a Auxiliadora, coitadinha, não. Ela chupou um pouco o picolé de coco, enjoou, jogou fora. Entrou de novo no bar: Agora eu quero de abacaxi. Minha irmãzinha, tinha cinco anos, lourinha, tão alegre...
 Ganhou o picolé de abacaxi, saiu, foi se sentar debaixo do pé de suinã. Duas ou três chupadas, jogou fora e veio de novo: Agora eu vou querer... de groselha! Naquele dia acabou a facilidade do sorvete. Mas o doce da padaria continuou, porque as crianças não abusavam. E sempre vinha um pãozinho a mais, além dos que a gente pagava.
******
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto: Coleção Coruputuba – Museu Histórico e Pedagógico Dom Pedro I e Dona Leopoldina

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Como foi que aprendi a gostar de ler


Como foi que aprendi a gostar de ler? Provavelmente vendo papai ler, percebendo o seu carinho com os livros... E ele nunca achou ruim quando a gente pegava os livros dele. Mas foi decisiva a atuação de minha professora do segundo ano, Dona Célia.
Quase no final da aula, período das onze às duas, todos tinham pressa em guardar o material, cruzar os braços sobre a carteira e fazer completo silêncio. Só então Dona Célia abria a gaveta e tirava o livro “Uma história e depois... outras”. E começava a ler, contando-nos a continuação da história do cão “Lobo-Bom”, que vivia no sítio do vovô e se afeiçoou pelo casal de netos em certas férias da escola - e depois, quando as crianças partiram, partiu também atrás do trem e viveu muitas aventuras, muito sofrimento e cansaço, até chegar à cidade... E a história prosseguia...
A história prosseguia, um pedacinho por dia, provocando minha imaginação de criança de oito/nove anos... Aqueles minutos no final da aula de cada dia, antes que a sineta da Dona Luiza Assoni começasse a soar pelos corredores... Aqueles minutos eram aguardados com ansiedade, como hoje se espera pelo capítulo da novela da TV.
Quando finalmente chegou a última página do livro, com o final da história do “Lobo-Bom”, foi uma tristeza geral: acabou... Mas Dona Célia passou para a segunda fase de seu plano: falou sobre a biblioteca da escola, contou que o livro estava à disposição dos alunos, e havia outros livros, também interessantes, e nos ensinou como fazer a inscrição que nos habilitaria a emprestar tais livros, podendo levá-los para casa.
Toda noite, daí em diante, havia em casa uma sessão de leitura, comandada pelo Pedro, que já estava no ginásio e lia em voz alta com muita clareza, usando os tons adequados a cada passagem. Eu e meus irmãos, sobre a cama ou ao lado do fogão, viajávamos pelos mais diferentes pontos do mundo, conhecendo povos, costumes, animais, rios, florestas. Viajávamos, nós, tão pobrezinhos... Levados pelas asas dos livros, livros cheios de bonitas letras e ilustrações atraentes, livros com um cheiro especial de relíquias, encapados de papelão azul...
Professora Célia Lopes Malhado, Deus a abençoe!
***
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto: Museu Histórico e Pedagógico Dom Pedro I e Dona Leopoldina