sábado, 22 de dezembro de 2018

Rezar o Terço em Família



Depois da janta, todos se reuniam na sala para rezar o terço. A primeira parte era ajoelhados, na parte do meio a gente se sentava e, no encerramento, ajoelhados de novo. Ajoelhar era dificultoso, os tijolos estavam gastos, mas a junção entre eles era de cimento e não se gastava. Machucava um pouco. O joelho da gente ficava procurando o afundadinho redondo do tijolo.
O pai, a mãe, a avó e as crianças, quando se ajoelhavam, usavam o encosto das cadeiras ou então a mesa, para apoiar os cotovelos. Com os olhos no altarzinho que o pai fez de caixote e pregou no canto da sala, com o crucifixo e a imagem de Nossa Senhora de Fátima.
A vela acesa. A chama ficava se modificando de cor e de formato. A cera escorria em fios hesitantes, a fumacinha subia fininha, retinha. No altarzinho, a pequena chama da marquinha, flutuando no azeite. Entrava às vezes um arzinho frio pelas janelas, mas ainda era verão. A gatinha Mimosa, vindo da cozinha, passava devagar entre nós, sentava-se debaixo da mesa.
Na lâmpada da sala, entusiasmado com as procissões noturnas da Santa Missão, eu tinha instalado um abajur de papel impermeável, azul claro, a nossa reza acontecia num ambiente onírico. 
 Uma vez por mês, a reza tinha uma visita importante: a imagem de Nossa Senhora das Graças, que circulava pela vizinhança, um pernoite em cada família. Aí era interessante, porque a imagem era sempre levada de uma casa para outra com uma pequena procissão. E a chegada era recebida pelos pobres anfitriões com chá de erva-cidreira e biscoito duro. Assim, a gente ia conhecendo as outras vilas.
Para introduzir cada um dos mistérios do terço, rezava-se alguma jaculatória, louvando algum santo: “São José, rogai por nós!”,  Santa Rita, rogai por nós!” Então, o Pedro soltou: “São Beda! Alguns responderam de imediato: “Rogai por nós!
Mas estranhamos, demos um pouco de risada. E ele explicou: “Tem sim, tem São Beda, sim!” É que ele tinha pesquisado, no verso da folhinha do Sagrado Coração, a lista dos santos de cada dia do ano. Eu pensei: “Ah, assim não vale...” Mas, daí em diante, comecei a pesquisar também, para surpreender a família com santos novos.
Isto foi quando já estávamos adolescendo. Anos antes, a nossa participação na reza era bem inocentinha. Pedro nos contava que, toda noite, secretamente, ele pedia a Nosso Senhor que não deixasse no dia seguinte o rodeiro passar por cima da bosta de galinha, para não sujar a mão.
O que não variava era a série de procedimentos. Começava com “Creio em Deus Pai, todo poderoso...” Em seguida, o oferecimento: “Divino Jesus, nós vos oferecemos esse terço que vamos rezar...” Seguiam-se as contemplações dos mistérios, gozosos, dolorosos e gloriosos, conforme o dia da semana: “No primeiro mistério glorioso contemplamos...” Terminado tudo isto, vinha o agradecimento a Nossa Senhora: “Infinitas graças vos damos, Soberana Senhora, pelos benefícios que todo dia recebemos de vossas mãos liberais...” E esse agradecimento terminava com uma espécie de respeitosa intimação à Virgem: “... e para mais vos obrigar, vos saudamos com uma Salve Rainha. E, afinal, a Salve Rainha: “Salve Rainha, mãe de misericórdia, vida, doçura e esperança nossa, salve...
E aí estávamos todos liberados para nos levantar, limpar os joelhos, ir conversar na cozinha, o Carlinhos ligava o rádio na Mayrink Veiga... até que, um por um, a gente ia pedir a bênção para os mais velhos, estava na hora de deitar, no outro dia havia escola para uns, trabalho para os outros...
No quarto da frente dormiam os cinco irmãos homens. Depois de tudo silenciado, até que o sono viesse, conversávamos baixinho, ouvindo os cães muito distantes, talvez lá na Vila Jacarandá, ou no fim na Alberto Simi, seria na Vila Esperança? Vila Maria... E a gente dormia...
Até que tocava o apito da fábrica : cinco horas!
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Carta de Manuel Bandeira a Guimarães Rosa


Carlos Drummond, Guimarães Rosa e Manuel Bandeira 


AMIGO. MEU, J. Guimarães Rosa, mano-velho, muito saudar!

Me desculpe, mas só agora pude campear tempo para ler o romance de Riobaldo.

Como que pudesse antes? Compromisso daqui, obrigação dacolá… Você sabe: a vida é um Itamarati – viver é muito dificultoso.
Ao despois de depois, andaram dizendo que você tinha inventado uma língua nova e eu não gosto de língua inventada. Sempre arreneguei de esperantos e volapuques.

Vai-se ver, não é língua nova nenhuma a do Riobaldo. Difícil é, às vezes. Quanta palavra do sertão! A princípio, muito aplicadamente, ia procurar a significação no dicionário. Não encontrava. Pena o título: Grande Sertão: Veredas. Nenhum dicionário dá a palavra “vereda” com o significado que você mesmo define à página 74: “Rio é só o São Francisco, o Rio do Chico. O resto pequeno é vereda.” Tinha vezes que pelo contexto eu inteligia: “ciriri dos grilos”, “gugo da juriti” etc. Mas até agora não sei, me ensine, o que é “arga”, “suscenso”, “lugugem” e um desadôro de outras vozes dos gerais. Tinha vezes que eu nem podia atinar se a palavra era nome de bicho vivente, plantinha ou coisa sem corpo nem côr nem coragem, abstrato que se diz, não é? Ou é? Ou será?

Ainda por cima disso, você fez Riobaldo poeta, como Shakespeare fez Macbeth poeta. Natural: por que um jagunço dos gerais demais do Urucuia não poderá ser poeta? Pode sim. Riobaldo é você se você fosse jagunço A sua invenção é essa: pôr o jagunço poeta inventando dentro da linguagem habitual dele. O vocabulário dele já é riquíssimo, dá a impressão que seus pagos e arredores; aumentado com os neologismos, sempre de boa formação linguística, ficou um potosi, nossa! A gente acaba tendo que entregar os pontos, nem que seja um Gilberto Amado. O diabo é que depois de ler você a gente começa a se sentir e cantar eu sou pobre, pobre, pobre, rema, rema, rema, ré. Só que acho que não precisava contar de um rojão só, como o Joyce do último capítulo de Ulysses, as 594 páginas da história de Riobaldo. Quantas horas levaria? Eu levei dias para ler. Ainda bem que você virgulou tudo, minudente. E o caso de Diadorim, seria mesmo possível? Você é dos gerais, você é que sabe. Mas eu tive a minha decepção quando se descobriu que Diadorim era mulher. Honni soit qui mal y pense, eu preferia Diadorim homem até o fim. Como você disfarçou bem! Nunca que maldei nada.

Amigo meu J. Guimarães Rosa, mano-velho, o menino Guirigó e o cego Borromeu são duas criações geniais. Aliás todo esse mundo de gente vive com uma intensidade assombrosa. E o sertão?

O sertão é uma espera enorme.
E o silêncio?

O vento é verde. Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio, põe no colo.
Tão deleitável tudo, nem que estar nos braços da linda moça Rosa’uarda, ou de Nhorinhá, de Ana Dazuza filha, ou daquela prostitutriz que proseava gentil sobre as sérias imoralidades.

Ah Rosa, mano-velho, invejo é o que você sabe:
O diabo não há! Existe é o homem humano.

Soscrevo.
13/3/1957
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Fonte: BANDEIRA, Manuel. “Grande sertão: veredas”. in: Poesia completa e prosa. 2ª ed., Rio de Janeiro: Aguilar, 1967. p.590-92.
https://www.revistaprosaversoearte.com/

domingo, 9 de dezembro de 2018

Dos terraços do Museu



Se fosse apenas para guardar coleções preciosas, não seria um Museu. Seria um cofre de colecionador, para deleitar uns poucos escolhidos.

Mas um Museu deve deleitar a muitos. Deve encantar todos os seus visitantes. Cada pessoa que percorrer suas salas, observar suas exposições, conversar com seus monitores – cada visitante, tocado pelo que viu e ouviu, ao terminar uma visita, deve sair diferente da pessoa que era ao entrar. Deve ter se tornado uma pessoa melhor. Se a visita foi bem realizada, sairá imbuída de um sentimento de sacralidade em relação ao passado.
A visita ao Museu deve ser epifânica.
Para os visitantes do Museu Histórico e Pedagógico Dom Pedro I e Dona Leopoldina, de Pindamonhangaba, a missão é facilitada – justo por estar o Museu instalado num prédio mágico: o Palacete Visconde da Palmeira.
O acervo é maravilhoso e raro. E o prédio, em si mesmo, é a mais importante peça do acervo. Mas, independentemente da contemplação e do estudo das exposições, a magia pode ser alcançada simplesmente olhando-se pelas janelas. Olhando com atenção e ternura através das janelas do Palacete, para contemplar um cenário que começou a ser montado há milhões de anos.
Quando, na década de 1860, o construtor Chiquinho do Gregório, sob encomenda do então Capitão Antonio Salgado Silva (depois Barão e Visconde da Palmeira), começou a erigir o magnífico prédio hoje intitulado Palacete Visconde da Palmeira, almejava um prédio aberto à luz solar e com ampla visão das serras que adornam a região.
Isto, quem nos conta são as próprias linhas arquitetônicas do solar, sua posição na topografia da cidade, seu elevado número de janelas e, em especial, seus dois terraços voltados para o norte.
Dispondo de consideráveis recursos financeiros, o proprietário poderia, para tal edificação, ter adquirido terrenos onde bem lhe aprouvesse. Porém, escolheu um lote no topo da ladeira, próximo à Matriz, com frente para o movimento da urbe que prosperava – porém, com os fundos voltados para a tranquilidade verde da paisagem do Vale.
Essa visão é um bem público de valor inestimável. De modo especial, o que nos encanta todos os dias, despertando nos visitantes do Museu momentos de contemplação silenciosa, é a deslumbrante vista que se tem da Serra da Mantiqueira, a partir dos terraços e das janelas do andar superior. Complementa tal visão, como moldura natural, a exuberante vegetação do Bosque da Princesa, o rebrilhante leito do Rio Paraíba do Sul, as várzeas cujo colorido vai cambiando durante o ano em função do ciclo vegetativo do arroz, e as árvores plantadas nas ruas e jardins da cidade, em direção ao Crispim ou à Boa Vista.
Do terraço superior do Palacete, em dias limpos, avistam-se quase 220 quilômetros de Serra da Mantiqueira, desde o Maciço de Itatiaia, a leste, até o sopé da Pedra do Cume, a oeste. Sendo que, do Palacete, o Maciço de Itatiaia dista 130 km e a Pedra do Cume 90 km. De leste para oeste, avistamos alguns dos pontos mais elevados da região:
O Maciço de Itatiaia, com seus picos altíssimos, entre os quais o de Agulhas Negras (2.787m), a Pedra do Sino (2.670m), a Pedra do Altar (2.665m) e o Morro do Massena (2.609m);
O Pico dos Três Estados (2.665m);                                                          
A Pedra da Mina (2.798 m), ponto culminante da Serra da Mantiqueira e do Estado de São Paulo, entre Passa Quatro (MG) e Queluz (SP);
O Pico dos Marins (2.420m), em Piquete (SP);
Acima do Bosque da Princesa, o Pico do Itapeva (1.950).
O Pico do Diamante (que, como o anterior, está dentro do município de Pindamonhangaba).;
No trecho da Mantiqueira em Pindamonhangaba, o Morro do Trabiju, a Usina Isabel, o caminho para o Sul de Minas, com seu túnel iluminado;
Mais à esquerda, o Pico Agudo (1.634m), em Santo Antônio do Pinhal; e,
No extremo oeste, as montanhas em torno da Pedra do Cume (1.600m), na divisa dos municípios de Joanópolis (SP) e Extrema (MG).
Não são apenas as grandes altitudes, no entanto, que estão providas de interesse. São visíveis também as passagens de transposição de Mantiqueira, desde séculos utilizadas – e até hoje – para se acessar as terras de Minas Gerais: a passagem do Embaú e a Garganta do Piracuama. Estas passagens estão para sempre ligadas à nossa História. Pela passagem do Embaú subiu o Padre Faria para ir descobrir ouro e fundar Vila Rica. Pela Garganta do Piracuama subiu Emílio Ribas levando os trilhos a Campos do Jordão, abrindo um caminho em busca da saúde.
Rolando suas águas no rumo leste, buscando lentamente o mar, o Rio Paraíba do Sul tem trechos visíveis a partir do terraço. Caminho dos bandeirantes e definidor da fertilidade da várzea, mercê de suas cheias ritmadas há milênios, seu curso interessa a estudiosos de várias áreas do conhecimento.
Ao contemplar o Paraíba correndo de Oeste para Leste junto ao Bosque, num dos poucos meandros deixados pela retificação do curso nos anos de 1960, o espectador se lembrará de que, às suas costas, o mesmo rio está correndo de Leste para Oeste, lá no meio da Serra do Mar. Só nas proximidades de Guararema é que o rio começa a fazer a curva para a direita, completando essa curva em Jacareí e, a partir daí, vem descendo direto em direção ao Estado do Rio de Janeiro.
Já a Serra da Quebra-Cangalha, apesar de ocupar a região sul do município de Pindamonhangaba, tem um bom trecho visível do terraço do Palacete, principalmente em direção leste. Os morros mais visíveis, localizados em Roseira e Aparecida, despidos da vegetação nativa, contam-nos a história da ocupação agrícola da região, marcando a passagem do café e, mais recentemente, das pastagens para o gado leiteiro e de corte.
Um professor, falando a seus alunos sobre vales e montanhas, rios e várzeas, entradas e bandeiras, cidades paulistas e cidades mineiras, ocupação humana e equilíbrio ecológico – se estiver falando a partir do que se vê das janelas e terraços do Palacete Visconde da Palmeira, estará transmitindo informações e valores de um modo significativo, diferente das aulas dadas apenas com a lousa e o giz.
Claro que todo Museu deve dirigir seus visitantes ao estudo do acervo. Mas talvez seja uma boa ideia simplesmente convidar os visitantes a contemplar a paisagem que se vê dos terraços e das janelas.
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Texto e foto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes