Depois
da janta, todos se reuniam na sala para rezar o terço. A primeira parte era
ajoelhados, na parte do meio a gente se sentava e, no encerramento, ajoelhados de
novo. Ajoelhar era dificultoso, os tijolos estavam gastos, mas a junção entre
eles era de cimento e não se gastava. Machucava um pouco. O joelho da gente
ficava procurando o afundadinho redondo do tijolo.
O
pai, a mãe, a avó e as crianças, quando se ajoelhavam, usavam o encosto das
cadeiras ou então a mesa, para apoiar os cotovelos. Com os olhos no altarzinho
que o pai fez de caixote e pregou no canto da sala, com o crucifixo e a imagem
de Nossa Senhora de Fátima.
A
vela acesa. A chama ficava se modificando de cor e de formato. A cera escorria
em fios hesitantes, a fumacinha subia fininha, retinha. No altarzinho, a
pequena chama da marquinha, flutuando no azeite. Entrava às vezes um arzinho
frio pelas janelas, mas ainda era verão. A gatinha Mimosa, vindo da cozinha, passava devagar entre nós, sentava-se debaixo da mesa.
Na
lâmpada da sala, entusiasmado com as procissões noturnas da Santa Missão, eu
tinha instalado um abajur de papel impermeável, azul claro, a nossa reza acontecia
num ambiente onírico.
Uma vez por mês, a reza tinha uma visita
importante: a imagem de Nossa Senhora das Graças, que circulava pela vizinhança,
um pernoite em cada família. Aí era interessante, porque a imagem era sempre
levada de uma casa para outra com uma pequena procissão. E a chegada era
recebida pelos pobres anfitriões com chá de erva-cidreira e biscoito duro.
Assim, a gente ia conhecendo as outras vilas.
Para
introduzir cada um dos mistérios do terço, rezava-se alguma jaculatória,
louvando algum santo: “São José, rogai
por nós!”, “Santa Rita, rogai por nós!” Então, o Pedro soltou: “São Beda!” Alguns responderam de imediato: “Rogai por nós!”
Mas
estranhamos, demos um pouco de risada. E ele explicou: “Tem sim, tem São Beda, sim!” É que ele tinha pesquisado, no verso
da folhinha do Sagrado Coração, a lista dos santos de cada dia do ano. Eu
pensei: “Ah, assim não vale...” Mas,
daí em diante, comecei a pesquisar também, para surpreender a família com
santos novos.
Isto
foi quando já estávamos adolescendo. Anos antes, a nossa participação na reza
era bem inocentinha. Pedro nos contava que, toda noite, secretamente, ele pedia
a Nosso Senhor que não deixasse no dia seguinte o rodeiro passar por cima da
bosta de galinha, para não sujar a mão.
O que
não variava era a série de procedimentos. Começava com “Creio em Deus Pai, todo poderoso...” Em seguida, o oferecimento: “Divino Jesus, nós vos oferecemos esse terço
que vamos rezar...” Seguiam-se as contemplações dos mistérios, gozosos,
dolorosos e gloriosos, conforme o dia da semana: “No primeiro mistério glorioso contemplamos...” Terminado tudo isto,
vinha o agradecimento a Nossa Senhora: “Infinitas
graças vos damos, Soberana Senhora, pelos benefícios que todo dia recebemos de
vossas mãos liberais...” E esse agradecimento terminava com uma espécie de
respeitosa intimação à Virgem: “... e
para mais vos obrigar, vos saudamos com uma Salve Rainha.” E, afinal, a Salve Rainha: “Salve Rainha, mãe de misericórdia, vida,
doçura e esperança nossa, salve...”
E aí
estávamos todos liberados para nos levantar, limpar os joelhos, ir conversar na
cozinha, o Carlinhos ligava o rádio na Mayrink Veiga... até que, um por um, a
gente ia pedir a bênção para os mais velhos, estava na hora de deitar, no outro
dia havia escola para uns, trabalho para os outros...
No
quarto da frente dormiam os cinco irmãos homens. Depois de tudo silenciado, até
que o sono viesse, conversávamos baixinho, ouvindo os cães muito distantes,
talvez lá na Vila Jacarandá, ou no fim na Alberto Simi, seria na Vila
Esperança? Vila Maria... E a gente dormia...
Até
que tocava o apito da fábrica : cinco horas!
***
Texto de Paulo
Tarcizio da Silva Marcondes
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