quarta-feira, 27 de março de 2019

O que rolou de ontem para hoje



“Fazei-me instrumento de Vossa paz!”
Oração de São Francisco de Assis

Para o Professor é mais um dia de aula, um dia como outro qualquer, será uma aula como qualquer outra. Tantos anos, tanto giz, tantos diários de classe... Não há mais diferença, podemos engatar o piloto automático que a aula sairá como sempre, com começo, meio e fim. O olhar flutuando rapidamente sobre as cabeças dos jovens, a chamada, a lousa, os trabalhos, o livro, a tentativa de controlar a atenção rebelde, a tarefa para casa, o sinal... Sim, vai ser mais um dia. Será mais um dia de aula, como qualquer outro.
Está bem, Professor. Mas agora pare. Pare aí mesmo, na porta da sala de aula. Quer dizer, pare só um pouquinho, também não precisa chamar a atenção dos alunos, não precisa que eles estranhem essa paradinha. Então não pare nada, entre direto. Só que hoje, antes de iniciar suas atividades rotineiras, dedique dois segundos para este pensamento, para esta constatação: Como assim um dia como outro qualquer? Você não sabe uma coisa, falta-lhe uma informação, uma preciosíssima informação. Sem ela você é fraco, ineficiente, ineficaz.
Mas não tem jeito de obter a informação – e você não poderá ser um fracasso hoje. Então assuma estas verdades: Primeira: Você não sabe o que rolou de ontem para hoje na vida de cada um de seus alunos. Segunda: Não tem jeito de saber. Terceira: Sem saber o que rolou você não poderá dar a aula mais adequada para a situação.
Nada de desespero, meu amigo Professor. Falta ainda a quarta verdade: O fato de não saber o que rolou, somado à constatação de que dar aula sem saber isto é tempo desperdiçado, ainda somado ao fato de que é impossível descobrir o que rolou, tudo isto junto lhe fornece a quarta verdade.
Que é a humildade. A humildade do cego que não sabe o caminho, sabe que nunca verá o caminho, mas apalpa e vai em frente.
Ah, meu amigo Professor! Você não sabe como as suas palavras serão recebidas por seus alunos. Então vá como o cego vai, com um respeito digamos assim: religioso, respeitando profundamente cada aluno como o cego respeita o caminho por onde precisa passar. Pesando a palavra, pesando o olhar, pesando o silêncio.
Olhe para a sua classe. Um desses alunos está em carne viva.
Rolou uma coisa na vida dele, de ontem para hoje. E você não sabe qual desses alunos. Um deles perdeu uma coisa que nunca tinha pensado possível perder. Um deles conquistou uma coisa que julgava inconquistável. Um descobriu que o globo terrestre continua a girar apesar do que rolou.
Um deles descobriu o veneno da traição. Um sentiu pela primeira vez medo de viver. O remorso brotou em alguém, a preocupação alugou uma cabeça, parece que para sempre. Outro mandou tudo às favas e está prestes a incluir você na lista.
Então não leve a sério toda palavra inábil. Preste a atenção a cada sorriso, porque é uma flor brotando onde isto pareceria impossível se você tivesse todas as informações.
Nestes anos todos de magistério já aconteceu de eu ter sido completamente desajeitado... diante de uma criança, diante de um adolescente, diante de um adulto – diante de um aluno que, naquele dia, naquela aula, precisava tanto de uma atenção, pequena que fosse... E eu passei reto, ocupado com a matéria...
Por não saber o que tinha rolado. Por não perceber que não sabia. Por não compreender que jamais saberia e, por isto mesmo, deveria ter sido o melhor que eu poderia ser, o mais delicado possível, o mais acolhedor, o mais solícito. Cuidadoso, como um cego numa estrada que ele não conhece.
Mas tudo bem, Professor. Agora, agora você já pode fazer a chamada.
Boa aula, Professor.

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Paulo Tarcizio da Silva Marcondes, no livro “Aconteceu na Escola”

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