“Ceia de Natal”, de 1896, de Charles Green (1840-1898)
Foi o primeiro Natal sem presépio, porque Mamãe não deixou a gente fazer. Os caixotes permaneceram fechados em cima do guarda-roupa, numa espécie de homenagem ao contrário. Fazia parte do luto. Papai tinha morrido em outubro, ele, que todo ano desencaixotava as figuras, fazia as montanhas com papelão azul salpicado de tintas, espalhava a serragem natural e a tingida de verde, demarcava as estradinhas com conchinhas e pedrinhas, colocava cacos de espelhos no vão das montanhas...
Estava tudo muito recente, como iríamos conviver com aquela coisa tão alegre que era a visão de um presépio? Não combinaria com a tristeza do primeiro Natal sem Papai. Tudo apontava, portanto, para o primeiro Natal sem graça da nossa vida.
Mas minha madrinha Dona Chiquita mandou recado convidando a mim e ao Bosco para participar do almoço de Natal na casa dela. Mamãe deixou. Então, de manhã, nós dois, eu com nove anos e o Bosco com sete, já ficamos arrumados, com nossos paletozinhos com tarja preta, esperando a hora do nosso primeiro almoço fora de casa.
Ninguém da família nunca tinha almoçado fora de casa.
Ali pelas onze horas fomos avisados: está na hora de vocês irem lá. Só que Vovó ficou com dó de nós porque estávamos, pela primeira vez na vida, saindo de casa sem almoçar – imagina! – e falou: − Mas come um pouquinho de macarronada com frango, depois vocês vão lá!
O que não faz a falta de experiência: enchemos o bucho!
E fomos para a casa da Dona Chiquita, na Avenida Alberto Simi. A casa estava cheia. Pedi a bênção ao meu padrinho Bizinho, trombonista da Euterpe; à madrinha Jair; e ao padrinho Chiquito Faria, grande violonista e possuidor de uma lambreta – ou vespa, não sei. Brincamos com o Luiz Fernando e a Neusinha, a linda Neusinha dos cabelos encaracolados e olhos claros, e com outras crianças, priminhas dos dois.
O presépio deles era bonito, grande, cheio de engenhocas que se moviam sozinhas. Um trem elétrico, criação do padrinho Bizinho, corria pelos trilhos, passando entre os Reis Magos e os Pastores.
As pessoas falavam todas ao mesmo tempo, algumas vinham nos agradar. Um gato branco, enorme, deslizava debaixo das mesas.
Um espetáculo a mesa do almoço! Vimos, pela primeira vez na vida, um leitão assado inteiro, com uma maçã na boca. Isto, na mesa dos adultos, na sala. Nós, crianças, fomos encaminhados para uma mesinha na varanda de brilhante piso vermelho, cheia de vasos de samambaias e avencas.
E começou o almoço. Carnes de todo tipo, macarrão, arroz, farofa... Tudo era trazido para a mesa dos pequenos, todos comiam, estavam todos com muito apetite. Menos eu e o Bosco, os dois bocós que tinham almoçado antes do almoço... A gente beliscava, dava uma colheradinha no arroz, fingia que comia uma carninha...
Depois, vieram as sobremesas: manjar branco com calda de ameixas, pudim de leite condensado, doce de abóbora, arroz-doce... Nem isto a gente provou: não cabia mesmo, a gente estava quase passando mal.
Então eu escutei a Dona Chiquita explicando para o pessoal da sala: − É que eles estão tristes, coitadinhos, o pai morreu não faz nem dois meses.
* * *
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto: peregrinacultural.wordpress.com
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