quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Pentecostais em Coruputuba



No ambiente extremamente católico de Coruputuba, até o começo dos anos de 1960 eu ainda não tinha conhecido de perto ninguém que fosse de outra religião. Mas então veio morar na casa vizinha à nossa a família Amarante que, pelo que se dizia em voz cochichada, eram “quebra-santos”. Era assim que, preconceituosamente, o povo simples se referia aos protestantes, aos crentes. Meu Pai, não. Ele dizia “nossos irmãos separados” e rezava para que um dia todos se reunissem: “Um só rebanho e um só pastor”. Só que o Pai já tinha falecido havia tempos.

Independente do preconceito, eu e o Bosco rapidamente fizemos amizade com eles, principalmente com o Zezé (Edevaldo) e o Miltinho, por causa do futebol. Eles pulavam a cerca e vinham jogar no nosso campinho do quintal. Depois, nosso futebol, digamos, evoluiu, e começamos a jogar no campinho perto do campo da Industrial. A partir daí, nosso timinho passou a excursionar pelos vários campinhos do bairro, desde a Vila Maria até a Fazenda, a Jacarandá, a Campineira, a Figueira...

Nessa fase do nosso timinho, a amizade com o Zezé e o Miltinho enraizou. Mas havia uma questão espinhosa: a diferença de religião, como se Deus estivesse muito preocupado com isto. Deus certamente não estava, mas nossa Mãe estava. Apesar de até conversar bastante na cerca com a Dona Tereza Amarante, sempre que nós praticávamos alguma desobediência, ela já vinha com a explicação: “É essa bendita amizade com os quebra-santos que está deixando vocês assim, antes vocês não me desobedeciam!”.

Esses encontros e desencontros com os vizinhos por causa de religião acabaram por gerar fases de aproximação e fases de afastamento. Nós, crianças e adolescentes, acabamos por conseguir manter o relacionamento amigável – em grande parte por causa do futebol – e os adultos tinham mais dificuldade nisto. Tudo por causa do ritual, por causa da exterioridade. Por um lado, nossos vizinhos, sendo pentecostais, adotavam formas de culto bem chamativas, com cânticos, palmas, orações e pregações em voz bem alta. Por outro lado, nossa família ficava muito atenta para ver se eles não estavam “falando mal de Nossa Senhora”. Porque, se estivessem, nós iríamos reagir. Houve uma ocasião em que pedradas voaram pelos céus de Coruputuba, em nome da Mãe de Deus.

Das pregações que ouvíamos durante os cultos na casa dos Amarante uma frase acabou por se entranhar na minha personalidade, provocando alguns efeitos no meu modo de agir. O pai do Seu Moacir, portanto avô do Zezé e do Miltinho, na qualidade de pastor, ensinava um dia aos crentes: “Quando na oficina uma ferramenta cair no pé de vocês, digam alto ‘Aleluia! Glória ao Senhor’, em vez de falar palavrão”. Isto eu escutei ouvindo a pregação agachado no quintal, olhando pelo vão da cerca. Até hoje não consegui chegar a este ponto de louvar a Deus em altos brados quando me machuco. Mas também não falo palavrão. E me impressionava a mansidão daqueles vizinhos. Agiam como os primeiros cristãos: perseguidos, não reagiam, não xingavam, oferecendo seu sofrimento a Jesus.

E a Mãe de Deus deve sorrir quando se lembra daquelas guerrinhas de Coruputuba. E talvez fique contente de lembrar que nossa amizade superou essas bobeiras. Apesar de que faz tempo que não vejo o Zezé, o grande goleiro do nosso timinho. Sei que, na vida adulta, foi um valoroso bombeiro. E o Miltinho, sei que ele está há bastante tempo na Amazônia, vivendo seu ideal missionário.

Ainda bem que Deus não tem religião.
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto da Avenida Dr. Cícero Prado, em Coruputuba: www.pindamonhangaba.sp.gov.br – Centenário da Fazenda Coruputuba – Fundo Patrick Assumpção

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