No ambiente extremamente
católico de Coruputuba, até o começo dos anos de 1960 eu ainda não tinha
conhecido de perto ninguém que fosse de outra religião. Mas então veio morar na
casa vizinha à nossa a família Amarante que, pelo que se dizia em voz
cochichada, eram “quebra-santos”.
Era assim que, preconceituosamente, o povo simples se referia aos protestantes,
aos crentes. Meu Pai, não. Ele dizia “nossos irmãos separados” e rezava para
que um dia todos se reunissem: “Um só rebanho e um só pastor”. Só que o Pai já
tinha falecido havia tempos.
Independente do preconceito, eu e o
Bosco rapidamente fizemos amizade com eles, principalmente com o Zezé
(Edevaldo) e o Miltinho, por causa do futebol. Eles pulavam a cerca e vinham
jogar no nosso campinho do quintal. Depois, nosso
futebol, digamos, evoluiu, e começamos a jogar no campinho perto do campo da
Industrial. A partir daí, nosso timinho passou a excursionar pelos vários
campinhos do bairro, desde a Vila Maria até a Fazenda, a Jacarandá, a
Campineira, a Figueira...
Nessa fase do nosso
timinho, a amizade com o Zezé e o Miltinho enraizou. Mas havia uma questão
espinhosa: a diferença de religião, como se Deus estivesse muito preocupado com
isto. Deus certamente não estava, mas nossa Mãe estava. Apesar de até conversar
bastante na cerca com a Dona Tereza Amarante, sempre que nós praticávamos
alguma desobediência, ela já vinha com a explicação: “É essa bendita amizade
com os quebra-santos que está
deixando vocês assim, antes vocês não me desobedeciam!”.
Esses encontros e
desencontros com os vizinhos por causa de religião acabaram por gerar fases de aproximação e fases de
afastamento. Nós, crianças e adolescentes, acabamos por conseguir manter o
relacionamento amigável – em grande parte por causa do futebol – e os adultos
tinham mais dificuldade nisto. Tudo por causa do ritual, por causa da
exterioridade. Por um lado, nossos vizinhos, sendo pentecostais, adotavam
formas de culto bem chamativas, com cânticos, palmas, orações e pregações em
voz bem alta. Por outro lado, nossa família ficava muito atenta para ver se
eles não estavam “falando mal de Nossa Senhora”. Porque, se estivessem, nós
iríamos reagir. Houve uma ocasião em que pedradas voaram pelos céus de
Coruputuba, em nome da Mãe de Deus.
Das pregações que ouvíamos
durante os cultos na casa dos Amarante uma frase acabou por se entranhar na
minha personalidade, provocando alguns efeitos no meu modo de agir. O pai do
Seu Moacir, portanto avô do Zezé e do Miltinho, na qualidade de pastor, ensinava
um dia aos crentes: “Quando na oficina uma ferramenta cair no pé de vocês,
digam alto ‘Aleluia! Glória ao Senhor’, em vez de falar palavrão”. Isto eu
escutei ouvindo a pregação agachado no quintal, olhando pelo vão da cerca. Até
hoje não consegui chegar a este ponto de louvar a Deus em altos brados quando
me machuco. Mas também não falo palavrão. E me impressionava a mansidão daqueles vizinhos. Agiam como os primeiros cristãos: perseguidos, não reagiam, não xingavam, oferecendo seu sofrimento a Jesus.
E a Mãe de Deus deve
sorrir quando se lembra daquelas guerrinhas de Coruputuba. E talvez fique
contente de lembrar que nossa amizade superou essas bobeiras. Apesar de que faz
tempo que não vejo o Zezé, o grande goleiro do nosso timinho. Sei que, na vida
adulta, foi um valoroso bombeiro. E o Miltinho, sei que ele está há bastante
tempo na Amazônia, vivendo seu ideal missionário.
Ainda bem que Deus não tem
religião.
* * *
Texto de Paulo Tarcizio da
Silva Marcondes
Foto da Avenida Dr. Cícero
Prado, em Coruputuba: www.pindamonhangaba.sp.gov.br
– Centenário da Fazenda Coruputuba – Fundo Patrick Assumpção
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