terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Ensinando indignação às crianças


 
Toda terça cantamos os hinos diante das bandeiras e falamos sobre o dever de cada cidadão para com a coletividade. Daí, vamos para a sala de aula e começamos a enxugar as poças d’água formadas pela chuva que goteja do telhado ou escorre pela parede. No mês passado, uma pequena luz vermelha começou a piscar dentro de mim, indicando que nesse capítulo de cidadania estava acontecendo alguma encrenca.
Comentei com as crianças: “Será que na sala do prefeito também tem goteira? Será que na sala da Secretária de Educação também forma poça desse jeito? Será que é justo isto que está acontecendo com a gente?”
Seguiu-se uma discussão demorada. As crianças de dez anos percebem as coisas, mas nem sempre sabem se podem falar a respeito. Encorajadas, argumentam bem e vão se exercitando nessa arte de pensar, ponderar, falar, repensar.
Decidimos registrar suas manifestações de indignação. Reunidas em duplas, escreveram o que pensavam sobre o assunto. Ocultei os nomes, para proteger as crianças. Sabe-se lá, nesse clima de coronelismo vingativo, os pais podem sofrer pelo que seus filhos falam. O resultado foram as redações abaixo, algumas mais lógicas, outras mais confusas. Mas todas muito sinceras.
Bom, eu poderia ter aproveitado para ensinar paciência e conformismo? Podia dizer-lhes que chove porque Deus quer. Que nossa sala de aula fica molhada enquanto que as salas dos ricos ficam sequinhas porque o mundo é assim mesmo e temos que aceitar. Podia dizer-lhes que o Prefeito é um ser muito mais importante do que nós, pobres mortais. Podia ter feito essas crianças entenderem que precisa ficar rico para não ter que estudar em salas molhadas.
Mas eu agora estaria com nojo de mim mesmo se tivesse embarcado no joguinho do poder. No joguinho chamado ideologia das classes dominantes.
Ensinar medo e encolhimento para nossos alunos nos transforma em adultos encolhidos e medrosos.
Ensinar coragem e clareza nos transforma em pessoas claras e corajosas.
Tenho que fazer jus aos aluninhos claros e corajosos que tenho. Por isto, é preciso perguntar, em voz clara e inequívoca: E então, Prefeito Vito Ardito? E então, Professora Beth Cursino? E então, Vereadores? É para isto que vocês estão ocupando os seus cargos? A Escola Franco Montoro vai continuar com as salas alagadas a cada chuva? O que devo dizer aos meus alunos sobre isto?
O que devo dizer aos meus alunos sobre a administração de um município?

Texto e fotos do Professor Paulo Tarcizio

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A sala de aula (Alunos X e Y)
Sempre quando chove, a sala do 5º ano C fica alagada e um aluno ou o professor tem que pegar o pano.
A Secretaria de Educação devia arrumar as goteiras para o bom estudo do aluno.
Também algumas pessoas correm na sala, se elas escorregarem elas podem se machucar. Isso é injustiça, eles deviam arrumar a sala do 5º ano C.

O que eu acho (Aluno W)
Eu acho isso errado, porque outras salas não têm goteiras e não ficam encharcadas. Quando os alunos vão entrar nas salas, estão todas encharcadas, algumas das carteiras também estão encharcadas. Outras salas mais importantes não têm uma gota d’água.
As salas que não têm goteiras não têm porque são salas mais importantes. As salas menos importantes que têm goteiras as pessoas não arrumam, eu acho isto injusto.

Redação (Aluno X²)
É verdade, só a sala de aula que fica encharcada quando chove e os outros lugares não, na sala da Secretária da Educação não fica encharcada porque é bem cuidada, é uma sala um pouco grande, as janelas sempre são fechadas para não encharcar a sala e impedir de cair goteiras.
A sala do Prefeito ainda é melhor cuidada, é muito grande mas é bem cuidada, não tem goteiras e sempre tomam cuidado para não encharcar a sala do Prefeito.
Nas escolas particulares também não ficam encharcadas, são escolas boas e têm muita proteção para não encharcar as salas e não cai goteiras, mas eu ainda acho que precisamos de algo para não cair goteiras e fazer alguma coisa para melhorar as salas de aula municipais.

Goteiras – Alunas YZ e B³
Quando chove nossa sala fica cheia de goteiras, aí nós temos que colocar baldes e panos no chão.
Nós acreditamos que isso não aconteça nas escolas particulares, nem na Sala do Prefeito e nem na Sala da Secretária da Educação.
Seria melhor se arrumassem essas goteiras pois nós alunos ou até mesmo o professor, podemos escorregar e até quebrar um braço ou coisas parecidas.

Sem título – Aluno “não identificado” (Verdade, ele assinou assim mesmo)
Eu acho isso muito injusto, nosso país tem muitas desigualdades, as escolas municipais são do governo, tinha que ser salas estruturadas muito bem. Alguns colégios tem goteiras porque as salas de algumas autoridades têm que ser melhor? O Prefeito tem uma ótima sala porque a sala dele não tem goteira! Vamos melhorar o país! Vamos ter um país melhor sem desigualdade.

Goteiras – Alunas 5Y e 9X
Eu acho injustiça isso pois quando começa a chover a nossa sala é a que fica mais molhada.
E fica muito feio.
A única solução será arrumar o telhado das salas, porque os lugares como a Sala da Secretária da Educação, nem na sala do Prefeito, nem escolas particulares estão assim com tantas goteiras assim, e eu só peço uma coisa, que arrumem as goteiras da sala de aula.

As minhas opiniões – Aluno HX
Em minha opinião nós devíamos juntar mais garras pet, latinhas etc.
E quando juntarmos muito, arrumaremos os telhados para arrumar as goteiras, tirar os rachados para não acontecer mais nada.
Para ficar que nem a sala da Secretária de Educação, ficar igual a sala do prefeito, igual as Escolas particulares como a Magistra, Colégio Aprendiz no Colégio Construtor etc.
Se fizermos isso nossa Escola ficará melhor.

Sem título – Aluna NN
Chegamos à sala de aula às 7h da manhã, tudo alagado pelas goteiras da sala, o professor fica passando e torcendo o pano de chão toda hora. Nem tem tempo de dar aula pra gente. E por que então na sala da secretária de educação não alaga? Nem na sala do prefeito? E nem nas escolas particulares? E porque então só em algumas escolas da prefeitura tem goteira? O prefeito e a secretaria têm que dar um jeito na nossa escola e em outras escolas da prefeitura. Espero que o prefeito e a secretária arrumem isso.

Sem título – Aluno R¢
Isso não é justo, outras escolas não têm goteira e a escola municipal tem goteira, Devia ter protesto porque não podia ter goteira em nossa escola tem muitas tragedia para enxugar.
Por que a sala da Dona Dilma não tem? Por que a nossa tem? Nem na idade da Pedra tinha goteiras nas caverna, por que não arrumam nossa escola? Quando será que isso vai acontecer?

Vazamento injusto – Aluno W£ e Y@
Toda noite chuvosa nosso teto escorre, assim chegamos de manhã e o nosso chão está encharcado.
Então o nosso professor pega um pano, põe esse pano no chão, sobe em cima do pano e começa a secar e parece que está dançando.
Isso é uma injustiça. Por que as salas das autoridades da cidade não tem vazamento? E a nossa tem?
É uma coisa tão simples arrumar o nosso telhado e assim não teria mais goteira.

domingo, 24 de novembro de 2013

Papai Noel... e o Menino Jesus?



Nossa! Dez a zero para o Papai Noel! Tadinho do Menino Jesus, já teve seus dias de glória. A imagem de Menino Jesus com os bracinhos abertos? Agora, só nas igrejas mesmo. E só nas católicas, porque as igrejas evangélicas não curtem imagens. Mas, nas vitrines das lojas da cidade e dos shopping centers, bem capaz. Só árvores de natal, bolas, sinos, laços, muito vermelho com muito verde, papais noéis... mas Menino Jesus, presépio? Nada!
Rodei Pinda, São José, Taubaté – o comércio nem sabe mais quem foi Menino Jesus. O espírito natalino de agora não tem nada a ver com o nascimento de Jesus. Tem a ver somente com a ansiedade de compras, pacotes, festas, comidas gostosas, confraternizações onde ninguém faz uma oração. Aliás, quem quiser fazer uma oração numa confraternização num restaurante vai compor um tipo extravagante, melhor não...
***
Quando eu era criança, logo que entrava o mês de dezembro, começávamos a brincar de Natal.
Pleno dia, sol claro, fechávamos a janela do quarto: ficava escuro como a noite. Espalhados pelo ambiente, cada um de nós representava um dos animais da lapinha: um era o Boi, outro o Cavalo, alguém era a Ovelha e havia o Galo também.
Então um de nós, fazendo de contrarregra – diríamos hoje: efeitos especiais – começava a abrir e fechar rapidamente, um tantinho só, a janelinha da vidraça, provocando como que ligeiros relâmpagos no quarto escuro. Era o instante do nascimento do Menino Jesus, os relampaguinhos seriam os raios de luz emitidos pelos anjos.
O Galo cantava: Cristo nasceeeeeeu!!!
O Boi mugia grosso: Aoooonde?
A Ovelha berrava: Em Belééééém....
O Galo tornava: Para queeeem???
Ao que a Ovelha explicava: Para o nosso beeeeeemmm!!!
Então cantávamos a Noite Feliz.
***
Papai montava um minucioso presépio, com o Menino Jesus, Nossa Senhora e São José dentro da lapinha, junto com o Boi, o Jumento e as Ovelhas. A lapinha era feita com papel de seda rosa, com uma pequena lâmpada oculta. De noite, com a luz da sala apagada, o resplendor da lapinha iluminava os nossos corações infantis.
Diante da lapinha, uma planície de serragem colorida. Ali ficavam, de costas para nós, os Pastores e os Reis Magos, aproximando-se do Mistério. Sobre a lapinha, como que flutuando com suas boas novas, o Anjo. Acima e por trás da lapinha, montanhas de papelão azul que iam subindo pela parede do canto da sala. Em alguns recantos da montanha, cacos de espelho com as bordas escondidas por orquídeas e parasitas. Caminhos recobertos de areia e margeados por conchinhas, que terminavam de repente no caco de espelho: parecia que o caminho penetrava nas rochas e continuava, continuava...
Pelas encostas e pirambeiras das montanhas, casinhas com janelinhas recortadas, galos, uma onça, um gato, um leão... no meio da planície, num laguinho de vidro rodeado de conchas e parasitas, nadavam pequenos patos de celuloide.
No dia vinte e dois, ao acordar, cada um encontrava, debaixo do travesseiro, um pequenino milagre: três avelãs.
No dia vinte e quatro, à tardezinha, Papai e Mamãe mandavam que a gente colocasse nossos sapatos num banco diante do Presépio. E íamos para o quintal. Na sombra da mangueira todos nos sentávamos e Papai abria a História Sagrada (bíblia não, isto era coisa dos crentes). E Papai lia as encantadoras passagens descrevendo como São José e Nossa Senhora foram obrigados por decreto a se dirigir para Belém. E sofríamos juntos a aflição do casal, a gravidez de Nossa Senhora, as pessoas que negavam pouso, as estalagens lotadas... Mas a história acabava bem, Jesus nascia na lapinha, sobre a palha que alimentava os animais.
Papai fechava a História Sagrada e dizia: Agora vocês podem ir ver se o Menino Jesus trouxe alguma coisa para vocês!
Íamos correndo. E todo ano encontrávamos alguma coisinha. Um saquinho com algumas avelãs e nozes, uva passa, figo... Às vezes, uma garrafinha de guaraná. Castanhas, doces... E era Menino Jesus que tinha trazido. Nunca nenhum de nós reparava que, durante a leitura de Papai, sempre dava uma dor de barriga na Mamãe e ela precisava “ir pra dentro um pouquinho”.
Mas nada de Papai Noel, nada de árvore de natal. Isto não era costume católico. Na nossa casa humilde, naqueles dias de final de um ano e começo de outro, imperavam o Presépio e o Menino Jesus.


Texto e foto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O operário em construção - de VINICIUS DE MORAES





Este poema dirige a minha vida. Impressionou-me desde o primeiro contato, em 1969. Só comecei a declamá-lo em público em 1986. Já repeti a ousadia mais de cem vezes, em lugares diferentes, ocasiões diferentes, para públicos diferentes.
E com resultados diferentes.
Fiquei plenamente integrado a este poema. Quando o declamo, estou querendo convencer as pessoas das verdades expostas por Vinicius. 
Este poema não permite que eu me amedronte, nem que eu me venda.
Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
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O Operário Em Construção
E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
- Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
- Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. IV, vs. 5-8.

Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.
De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.
Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão -
Era ele quem fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.

Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.
Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.
Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.
E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.
E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.
Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
- "Convençam-no" do contrário -
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.
Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!
Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.
Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.
Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!
- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.
E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido.
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.




segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Quem serve para ser professor?




O Jofre foi meu aluno no quarto ano do magistério. Um desses alunos que passam ao professor uma tranquila segurança com relação ao futuro da profissão. Era o único homem na classe. Um homem grandão, um negro forte, de fala sossegada. Através das histórias que me contou, provavelmente eu aprendi mais com ele do que ele comigo.
Jofre era seminarista. Pretendia mais do que ser sacerdote, queria ser sacerdote e professor. Acumulara uma série de experiências raras na estrada da educação. Tinha coordenado trabalhos comunitários em favelas, aproveitando muito bem as oportunidades de conhecer de perto o povo de Deus. Agora, quando se preparava para ser dirigente espiritual, ao mesmo tempo queria ser educador desse povo.
O que podíamos nós, professores do magistério, fazer por ele?
Primeiro, devíamos nos sentir honrados em tê-lo como aluno. Depois, devíamos desenvolver-lhe as habilidades pedagógicas, habilitando-o a nos suceder na missão de ensinar.
Ele tinha dificuldades, sim. Ao colocar suas ideias no papel não conseguia fazê-lo com a mesma desenvoltura com que as colocava numa conversa. Durante o ano todo foi essa a nossa prioridade no trabalho com ele: auxiliá-lo, indicando-lhe meios de burilar a sua expressão escrita.
Pois chegou o final do ano letivo e, surpresa: o Jofre estava retido em Psicologia. As colegas dele não se conformavam, eu não me conformei... Mas calma, vai haver o conselho de classe, claro que essa decisão vai ser revogada...
Reunião do conselho, um tanto de boa vontade, outro tanto de guerrinha de vaidades...  Os casos vão sendo analisados, nota vermelha, excesso de faltas, essa dá para passar, essa é boa, essa uma avacalhou... E assim foi indo. Chegou a vez do Jofre. Os professores concordavam que ele tinha muito potencial, mas tinha suas dificuldades de expressão. Ué, mas o professor de Português, o que diz? Disse: o João superou suas dificuldades, passou comigo. E então? A professora de Psicologia, inflexível: Comigo, não dá para passar.
Defendi o Jofre. Será um excelente professor. É de pessoas como ele que o magistério precisa, pessoas com toda a vivência social que ele tem... Mas afinal, professora, qual a deficiência dele na sua matéria?
E as provas foram exibidas: olha aqui, essa prova do último bimestre, eu perguntei aqui e ele não soube responder o que é mancinismo.
Terrível alguém não saber o que é isso? Eu disse: Eu também não sei. E isto não me prejudicou até hoje... Então tenho que ser mandado embora desta escola, não posso mais dar aula... Pois se o Jofre vai ser impedido de receber o diploma por causa disso.
E foi impedido mesmo. O conselho não quis prosseguir a polêmica, a maioria foi pelo parecer da professora da matéria: se ela acha que não dá para receber o diploma, então não dá. E não deu... Foi mais uma vitória para a já famosa inflexibilidade da professora.
Aconteceu a cerimônia de diplomação. O quarto magistério... As moças muito bem arrumadinhas, uma festa, e o Jofre não estava... Dias depois, encontrei-o na igreja. Que pena, professor, fiquei triste sim, mas não faz mal. Desisti do magistério, agora estou indo para Lorena, já passei no vestibular, vou fazer Teologia, me ordenar padre.
Então foi assim: O Jofre servia para ser padre, mas no entender da professora de Psicologia, e de vários colegas do conselho, não servia para ser professor primário. Pois desconhecia o que é mancinismo. Hoje talvez ele tenha aprendido o significado da palavra, mas se não souber, também não lhe deve fazer falta nenhuma.
Continuo acreditando que o magistério só teria a ganhar com a participação dele como professor.

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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Extraído do livro “Aconteceu na Escola”, do autor.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Uma aluna em dificuldades



Senhor, fazei-me instrumento de Vossa paz!
Oração de São Francisco


Estava uma manhã muito bonita, era primavera. Depois do recreio, os alunos muito quietinhos faziam as lições. O gado do Seu Irineu, lá longe, de vez em quando mugia. Parede e meia com a escola, a casa da Dona Rosinha era quase silêncio completo: uma ou outra panela que batia, chinelos pelo corredor de tijolo, o rádio ligado num programa evangélico... Aí a Eva chegou até a minha mesa e falou baixinho: “Professor, a Joana fez cocô na saia, posso levar ela lá em casa pra ela se lavar? Eu peço pra vó emprestar uma roupa minha pra ela.”
A avó da Eva era justamente a vizinha, a Dona Rosinha. E para lá foram as duas. Eu peguei o pano de chão, molhei, pinguei um pinho-sol e limpei a carteira e o chão. Os aluninhos nas suas lições. A Maria Lúcia que falou: “Coitada da Joana, né Professor?”
Demora um pouco, voltam as meninas. A Eva com um sorrisão tranquilo, tinha feito um ato bom. A Joana meio envergonhada, mas feliz na roupa limpa emprestada pela Dona Rosinha, e cheirosa do banho tomado. Depois, fim de aula, até amanhã, não esqueçam a tarefa etc., as crianças vão embora conversando em grupinhos, mas quase todas juntas, a estrada era uma só para todos, até a encruzilhada do Cepinho. Ali se dividiam, porque o pessoal da Fazenda Santana tinha que seguir reto mais uns quilômetros.
E eu reparei: “Veja só, que sossego, todos conversando bem amigos, ninguém debochando de ninguém, a Joana recebeu só manifestações de atenção, de coitadinha... Se fosse na cidade? Se fosse noutro lugar? Como que a gente faz para levar este clima para outros lugares?
A estrada era a Estrada do Pagador Andrade, que levava a outras fazendas, à represa, e a mais sossego. Hoje essa estrada leva para uma imensa fábrica de cerveja e a loteamentos novos. O lugar é o mesmo, o tempo passou, muito. O sossego deve ter acabado. Eu, depois desse dia, já trabalhei em muitos lugares, já confirmei que aquilo só podia ter acontecido ali, naquele tempo, com aquelas crianças, naquelas manhãs de primavera.
Mas dentro do meu coração eu continuei acreditando que é preciso caminhar naquela direção, que não posso perder de vista aquele momento, que a minha missão é reconstruir a utopia que eu vivenciei numa pobre sala de aula do Bairro do Rio Abaixo, em Jacareí.
E hoje eu sei que fraternidade é o nome daquela utopia. 

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Autor: Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

Extraído do livro “Aconteceu na Escola”