Francisco Fonseca Marcondes aos 21 anos de idade. Foto
datada de 23 de maio de 1935. Do álbum de Maria Clara Fonseca Marcondes.
Meu pai,
o Professor Francisco Fonseca Marcondes, filho de Francisco Carlos Marcondes e Maria Clara Fonseca Marcondes e
neto de José Pedro Marcondes, fazendeiros no bairro de Itapecerica em Taubaté, queria
ser padre e estudou nos seminários até quase se ordenar. Quando faltavam dois
anos para isto, ficou doente e teve que desistir do sacerdócio. Trabalhou na
CTI e depois no Diocesano, até que o bispo decidiu que só padres podiam
lecionar naquele colégio. Então, o Padre João, vigário em Pindamonhangaba,
indicou papai para dar aulas em Coruputuba, para os funcionários da Companhia
que precisavam completar os estudos.
Foi para
Coruputuba no início de 1942, com a esposa Maria Tereza. Ele tinha vinte e oito
anos, ela vinte, e tinham dois filhos. Primeiro, foram morar na Vila Tanque,
vizinhos do Seu Alcides Sampaio. Seis anos depois, a família mudou-se para a
Avenida Dr. Cícero Prado, a rua de entrada do bairro.
Papai
era muito religioso. Ele que tinha a chave da Igreja, abria, trocava o azeite
da lâmpada do Santíssimo, tocava os sinos, ajudava as missas. Ensinou os filhos
a ajudar as missas, em latim.
Era um
sábio. Eu vivia atrás dele, enquanto ele molhava os canteiros da horta: Pai,
como que é casa em latim? E em alemão? E em francês? E em italiano? Ele respondia com paciência, mas eu não
guardava as respostas, só me interessavam as perguntas. Mas eu prestava muita
atenção no jeito dele dar aula, explicar, tornar a explicar... Conhecia vários
idiomas e dava aulas particulares de latim, francês e inglês, além de
matemática e as outras matérias. Preparava alunos para os exames de admissão ao
ginásio e dava aulas de reforço.
O
quintal da nossa casa na Avenida Cícero Prado era enorme. Papai, amante da
natureza, foi enchendo esse quintal com pés de fruta. Banana tinha de todo
tipo: prata, nanica, ouro, São Domingos, da terra, banana-figo... Várias
mangueiras... E tinha coqueiros de coquinho, pés de goiaba, de caju, de laranja
pera, laranja lima, laranja morja, laranja baiana... Tinha dois pés de araçá.
Dois pés de fruta do conde, um raro pé de uva-japonesa, que os colegas da
escola conheciam por macaquinho. Tinha um pé de uvaia, que papai morreu pensando
ser um pé de jabuticaba. Um lindo pé de ingá também só encorpou e frutificou depois
de seu falecimento. E sempre tivemos pés de maracujá subindo pelas árvores,
chuchu se enganchando nas cercas – e o que mais estranhei quando fui morar na
cidade foi ter de pagar pela baciinha de chuchu na feira...
Quando
eu ia ao bar com papai, comprar alguma coisa, reparava que todos faziam
silêncio quando ele entrava, tiravam o chapéu, interrompiam o bilhar e as
piadas, até que a gente saísse. O Professor era muito respeitado. Nossa casa
era a “casa do Professor”. Éramos “os filhos do Professor”. Até hoje, mais de
meio século depois daqueles acontecimentos, se preciso refrescar a memória de
algum coruputubense que não se lembra mais de mim, digo: Sou filho do professor
– e o rosto da pessoa se ilumina, e a conversa toma velhos rumos.
Depois
de algum tempo, a delegacia de ensino não permitiu mais que as aulas do curso
de adultos fossem dadas no grupo escolar. Por isto, a Companhia mandou fazer
várias mesas de armar sobre cavaletes e mandou tudo para nossa casa. A partir
daí, toda noite nós retirávamos os móveis da sala (tão poucos!) e as nossas
caminhas do quarto da frente, para que os pobres cômodos se transformassem em
salas de aula. Então chegavam os alunos, uns trinta homens em busca do saber.
Papai
morreu com quarenta e três anos. Morreu do coração, na Santa Casa, depois de
uns quinze dias internado. Morreu na presença de mamãe e de dois padres, o
Padre Mario Cury e o Padre Orlando. Quem foi a Coru avisar a gente foi nosso
Tio Gordo, o radialista Jota Marcondes, que era o irmão mais criança de papai.
Fomos todos buscar o corpo na cidade, fomos na ambulância da Companhia. Paramos
no Grupo Escolar para pegar o Zaga, que estudava de tarde e ainda não sabia de
nada. Alguém foi lá chamá-lo. Quando apareceu no portão da escola, saindo com o
embornal e seus cadernos, ele estava tão vermelho, parecia que ia explodir.
Entrou na viatura chorando, nós todos começamos a chorar alto e alguém dizia
chorando: Não chora!
De tudo,
no meio daquela tristeza, o que mais me chamou a atenção foi o mundo continuar
funcionando: quando a gente estava voltando da cidade, as içás estavam caindo,
era outubro, e elas se esborrachavam no vidro do carro. O céu estava azul,
continuava ventando nos eucaliptos, continuavam a flutuar no céu as nuvens
brancas, tudo continuava, e eu achava esquisito aquele negócio de tudo continuar,
era como se a morte do papai não fosse nenhum acontecimento importante...
Mamãe
ficou viúva com trinta e cinco anos – e oito filhos. O maior, o Carlinhos,
tinha dezessete anos. A caçula, Salete, tinha dois anos. Coitada da mamãe, para
nos sustentar ficou só com a pensão do papai. E o esforço do Carlinhos e da Ana
Clara, que tinha quinze anos e começou a trabalhar na farmácia. O Carlinhos já
trabalhava no escritório fazia dois anos. Devo tudo a esses dois irmãos mais
velhos, que não puderam prosseguir os estudos porque precisavam trabalhar para
sustentar a casa.
Naquele
tempo a gente nem reparava, mas agora sei que vivíamos na pobreza, mesmo no
tempo de papai vivo, coitado, ganhando tão pouco. Na hora do almoço e da janta,
não tendo prato para todos, alguns comiam na tampa da panela, ou na lata de
goiabada. Imagino o sofrimento dos adultos, vendo que as crianças sofriam a
falta de coisas essenciais.
Mas nós
não percebíamos. Nossa casa era uma
agitação de alegria e de brincadeiras. Os móveis foram feitos quase todos por
papai. Nossas camas ele fazia com madeira que ganhava da fábrica. Os
brinquedos, muitos ele mesmo fazia. Lembro de um ônibus feito de toco de
madeira, onde ele pintou as janelinhas com as caras dos passageiros. E, se até
hoje eu e meus irmãos nos encantamos diante de um presépio, é por causa do
costume que ele plantou em nós naqueles dezembros de Coruputuba.
Quando
papai morreu, nossa casa virou um ajuntamento. Eu nunca tinha visto um
movimento assim, a não ser nas procissões. Todo mundo foi em casa, cumprir a
obrigação do velório. Dona Naná e o Seu João Mexas, da padaria, mandaram dois
enormes sacos de pão. E também uma grande lata de manteiga. A Cooperativa
mandou muito pó de café e açúcar. E a noite foi movimentada. Fui dormir tarde,
meus irmãos também. Eu tinha nove anos e estava mais espantado do que triste.
Até chorei no dia seguinte, na saída do enterro, mais por ver mamãe chorar do
que de tristeza própria.
O povo
ficou tão bonzinho para nós! Passamos a ser tratados com tanta atenção naquela comunidade!
Várias famílias nos ajudando, tanto carinho, que nem sobrava muito lugar para
tristeza.
Tristeza
eu fui ter passado algum tempo. Após a semana de luto, voltei para a escola,
estava no segundo ano. Um dia aprendi uma coisa nova, não lembro o quê, na
aula. Cheguei em casa correndo e fui direto para o quintal, queria contar o que
tinha aprendido, fui chamando: Pai, pai! Mas não tinha ninguém na horta, os
canteiros estavam secos, o mato crescendo, papai não estava lá, regando as
verduras... Então bateu em mim, de um jeito duro, a compreensão de que ele
tinha morrido mesmo, e isto era sem volta.
* * *
Texto de Paulo Tarcizio da Silva
Marcondes
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