sábado, 22 de dezembro de 2018

Rezar o Terço em Família



Depois da janta, todos se reuniam na sala para rezar o terço. A primeira parte era ajoelhados, na parte do meio a gente se sentava e, no encerramento, ajoelhados de novo. Ajoelhar era dificultoso, os tijolos estavam gastos, mas a junção entre eles era de cimento e não se gastava. Machucava um pouco. O joelho da gente ficava procurando o afundadinho redondo do tijolo.
O pai, a mãe, a avó e as crianças, quando se ajoelhavam, usavam o encosto das cadeiras ou então a mesa, para apoiar os cotovelos. Com os olhos no altarzinho que o pai fez de caixote e pregou no canto da sala, com o crucifixo e a imagem de Nossa Senhora de Fátima.
A vela acesa. A chama ficava se modificando de cor e de formato. A cera escorria em fios hesitantes, a fumacinha subia fininha, retinha. No altarzinho, a pequena chama da marquinha, flutuando no azeite. Entrava às vezes um arzinho frio pelas janelas, mas ainda era verão. A gatinha Mimosa, vindo da cozinha, passava devagar entre nós, sentava-se debaixo da mesa.
Na lâmpada da sala, entusiasmado com as procissões noturnas da Santa Missão, eu tinha instalado um abajur de papel impermeável, azul claro, a nossa reza acontecia num ambiente onírico. 
 Uma vez por mês, a reza tinha uma visita importante: a imagem de Nossa Senhora das Graças, que circulava pela vizinhança, um pernoite em cada família. Aí era interessante, porque a imagem era sempre levada de uma casa para outra com uma pequena procissão. E a chegada era recebida pelos pobres anfitriões com chá de erva-cidreira e biscoito duro. Assim, a gente ia conhecendo as outras vilas.
Para introduzir cada um dos mistérios do terço, rezava-se alguma jaculatória, louvando algum santo: “São José, rogai por nós!”,  Santa Rita, rogai por nós!” Então, o Pedro soltou: “São Beda! Alguns responderam de imediato: “Rogai por nós!
Mas estranhamos, demos um pouco de risada. E ele explicou: “Tem sim, tem São Beda, sim!” É que ele tinha pesquisado, no verso da folhinha do Sagrado Coração, a lista dos santos de cada dia do ano. Eu pensei: “Ah, assim não vale...” Mas, daí em diante, comecei a pesquisar também, para surpreender a família com santos novos.
Isto foi quando já estávamos adolescendo. Anos antes, a nossa participação na reza era bem inocentinha. Pedro nos contava que, toda noite, secretamente, ele pedia a Nosso Senhor que não deixasse no dia seguinte o rodeiro passar por cima da bosta de galinha, para não sujar a mão.
O que não variava era a série de procedimentos. Começava com “Creio em Deus Pai, todo poderoso...” Em seguida, o oferecimento: “Divino Jesus, nós vos oferecemos esse terço que vamos rezar...” Seguiam-se as contemplações dos mistérios, gozosos, dolorosos e gloriosos, conforme o dia da semana: “No primeiro mistério glorioso contemplamos...” Terminado tudo isto, vinha o agradecimento a Nossa Senhora: “Infinitas graças vos damos, Soberana Senhora, pelos benefícios que todo dia recebemos de vossas mãos liberais...” E esse agradecimento terminava com uma espécie de respeitosa intimação à Virgem: “... e para mais vos obrigar, vos saudamos com uma Salve Rainha. E, afinal, a Salve Rainha: “Salve Rainha, mãe de misericórdia, vida, doçura e esperança nossa, salve...
E aí estávamos todos liberados para nos levantar, limpar os joelhos, ir conversar na cozinha, o Carlinhos ligava o rádio na Mayrink Veiga... até que, um por um, a gente ia pedir a bênção para os mais velhos, estava na hora de deitar, no outro dia havia escola para uns, trabalho para os outros...
No quarto da frente dormiam os cinco irmãos homens. Depois de tudo silenciado, até que o sono viesse, conversávamos baixinho, ouvindo os cães muito distantes, talvez lá na Vila Jacarandá, ou no fim na Alberto Simi, seria na Vila Esperança? Vila Maria... E a gente dormia...
Até que tocava o apito da fábrica : cinco horas!
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Carta de Manuel Bandeira a Guimarães Rosa


Carlos Drummond, Guimarães Rosa e Manuel Bandeira 


AMIGO. MEU, J. Guimarães Rosa, mano-velho, muito saudar!

Me desculpe, mas só agora pude campear tempo para ler o romance de Riobaldo.

Como que pudesse antes? Compromisso daqui, obrigação dacolá… Você sabe: a vida é um Itamarati – viver é muito dificultoso.
Ao despois de depois, andaram dizendo que você tinha inventado uma língua nova e eu não gosto de língua inventada. Sempre arreneguei de esperantos e volapuques.

Vai-se ver, não é língua nova nenhuma a do Riobaldo. Difícil é, às vezes. Quanta palavra do sertão! A princípio, muito aplicadamente, ia procurar a significação no dicionário. Não encontrava. Pena o título: Grande Sertão: Veredas. Nenhum dicionário dá a palavra “vereda” com o significado que você mesmo define à página 74: “Rio é só o São Francisco, o Rio do Chico. O resto pequeno é vereda.” Tinha vezes que pelo contexto eu inteligia: “ciriri dos grilos”, “gugo da juriti” etc. Mas até agora não sei, me ensine, o que é “arga”, “suscenso”, “lugugem” e um desadôro de outras vozes dos gerais. Tinha vezes que eu nem podia atinar se a palavra era nome de bicho vivente, plantinha ou coisa sem corpo nem côr nem coragem, abstrato que se diz, não é? Ou é? Ou será?

Ainda por cima disso, você fez Riobaldo poeta, como Shakespeare fez Macbeth poeta. Natural: por que um jagunço dos gerais demais do Urucuia não poderá ser poeta? Pode sim. Riobaldo é você se você fosse jagunço A sua invenção é essa: pôr o jagunço poeta inventando dentro da linguagem habitual dele. O vocabulário dele já é riquíssimo, dá a impressão que seus pagos e arredores; aumentado com os neologismos, sempre de boa formação linguística, ficou um potosi, nossa! A gente acaba tendo que entregar os pontos, nem que seja um Gilberto Amado. O diabo é que depois de ler você a gente começa a se sentir e cantar eu sou pobre, pobre, pobre, rema, rema, rema, ré. Só que acho que não precisava contar de um rojão só, como o Joyce do último capítulo de Ulysses, as 594 páginas da história de Riobaldo. Quantas horas levaria? Eu levei dias para ler. Ainda bem que você virgulou tudo, minudente. E o caso de Diadorim, seria mesmo possível? Você é dos gerais, você é que sabe. Mas eu tive a minha decepção quando se descobriu que Diadorim era mulher. Honni soit qui mal y pense, eu preferia Diadorim homem até o fim. Como você disfarçou bem! Nunca que maldei nada.

Amigo meu J. Guimarães Rosa, mano-velho, o menino Guirigó e o cego Borromeu são duas criações geniais. Aliás todo esse mundo de gente vive com uma intensidade assombrosa. E o sertão?

O sertão é uma espera enorme.
E o silêncio?

O vento é verde. Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio, põe no colo.
Tão deleitável tudo, nem que estar nos braços da linda moça Rosa’uarda, ou de Nhorinhá, de Ana Dazuza filha, ou daquela prostitutriz que proseava gentil sobre as sérias imoralidades.

Ah Rosa, mano-velho, invejo é o que você sabe:
O diabo não há! Existe é o homem humano.

Soscrevo.
13/3/1957
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Fonte: BANDEIRA, Manuel. “Grande sertão: veredas”. in: Poesia completa e prosa. 2ª ed., Rio de Janeiro: Aguilar, 1967. p.590-92.
https://www.revistaprosaversoearte.com/

domingo, 9 de dezembro de 2018

Dos terraços do Museu



Se fosse apenas para guardar coleções preciosas, não seria um Museu. Seria um cofre de colecionador, para deleitar uns poucos escolhidos.

Mas um Museu deve deleitar a muitos. Deve encantar todos os seus visitantes. Cada pessoa que percorrer suas salas, observar suas exposições, conversar com seus monitores – cada visitante, tocado pelo que viu e ouviu, ao terminar uma visita, deve sair diferente da pessoa que era ao entrar. Deve ter se tornado uma pessoa melhor. Se a visita foi bem realizada, sairá imbuída de um sentimento de sacralidade em relação ao passado.
A visita ao Museu deve ser epifânica.
Para os visitantes do Museu Histórico e Pedagógico Dom Pedro I e Dona Leopoldina, de Pindamonhangaba, a missão é facilitada – justo por estar o Museu instalado num prédio mágico: o Palacete Visconde da Palmeira.
O acervo é maravilhoso e raro. E o prédio, em si mesmo, é a mais importante peça do acervo. Mas, independentemente da contemplação e do estudo das exposições, a magia pode ser alcançada simplesmente olhando-se pelas janelas. Olhando com atenção e ternura através das janelas do Palacete, para contemplar um cenário que começou a ser montado há milhões de anos.
Quando, na década de 1860, o construtor Chiquinho do Gregório, sob encomenda do então Capitão Antonio Salgado Silva (depois Barão e Visconde da Palmeira), começou a erigir o magnífico prédio hoje intitulado Palacete Visconde da Palmeira, almejava um prédio aberto à luz solar e com ampla visão das serras que adornam a região.
Isto, quem nos conta são as próprias linhas arquitetônicas do solar, sua posição na topografia da cidade, seu elevado número de janelas e, em especial, seus dois terraços voltados para o norte.
Dispondo de consideráveis recursos financeiros, o proprietário poderia, para tal edificação, ter adquirido terrenos onde bem lhe aprouvesse. Porém, escolheu um lote no topo da ladeira, próximo à Matriz, com frente para o movimento da urbe que prosperava – porém, com os fundos voltados para a tranquilidade verde da paisagem do Vale.
Essa visão é um bem público de valor inestimável. De modo especial, o que nos encanta todos os dias, despertando nos visitantes do Museu momentos de contemplação silenciosa, é a deslumbrante vista que se tem da Serra da Mantiqueira, a partir dos terraços e das janelas do andar superior. Complementa tal visão, como moldura natural, a exuberante vegetação do Bosque da Princesa, o rebrilhante leito do Rio Paraíba do Sul, as várzeas cujo colorido vai cambiando durante o ano em função do ciclo vegetativo do arroz, e as árvores plantadas nas ruas e jardins da cidade, em direção ao Crispim ou à Boa Vista.
Do terraço superior do Palacete, em dias limpos, avistam-se quase 220 quilômetros de Serra da Mantiqueira, desde o Maciço de Itatiaia, a leste, até o sopé da Pedra do Cume, a oeste. Sendo que, do Palacete, o Maciço de Itatiaia dista 130 km e a Pedra do Cume 90 km. De leste para oeste, avistamos alguns dos pontos mais elevados da região:
O Maciço de Itatiaia, com seus picos altíssimos, entre os quais o de Agulhas Negras (2.787m), a Pedra do Sino (2.670m), a Pedra do Altar (2.665m) e o Morro do Massena (2.609m);
O Pico dos Três Estados (2.665m);                                                          
A Pedra da Mina (2.798 m), ponto culminante da Serra da Mantiqueira e do Estado de São Paulo, entre Passa Quatro (MG) e Queluz (SP);
O Pico dos Marins (2.420m), em Piquete (SP);
Acima do Bosque da Princesa, o Pico do Itapeva (1.950).
O Pico do Diamante (que, como o anterior, está dentro do município de Pindamonhangaba).;
No trecho da Mantiqueira em Pindamonhangaba, o Morro do Trabiju, a Usina Isabel, o caminho para o Sul de Minas, com seu túnel iluminado;
Mais à esquerda, o Pico Agudo (1.634m), em Santo Antônio do Pinhal; e,
No extremo oeste, as montanhas em torno da Pedra do Cume (1.600m), na divisa dos municípios de Joanópolis (SP) e Extrema (MG).
Não são apenas as grandes altitudes, no entanto, que estão providas de interesse. São visíveis também as passagens de transposição de Mantiqueira, desde séculos utilizadas – e até hoje – para se acessar as terras de Minas Gerais: a passagem do Embaú e a Garganta do Piracuama. Estas passagens estão para sempre ligadas à nossa História. Pela passagem do Embaú subiu o Padre Faria para ir descobrir ouro e fundar Vila Rica. Pela Garganta do Piracuama subiu Emílio Ribas levando os trilhos a Campos do Jordão, abrindo um caminho em busca da saúde.
Rolando suas águas no rumo leste, buscando lentamente o mar, o Rio Paraíba do Sul tem trechos visíveis a partir do terraço. Caminho dos bandeirantes e definidor da fertilidade da várzea, mercê de suas cheias ritmadas há milênios, seu curso interessa a estudiosos de várias áreas do conhecimento.
Ao contemplar o Paraíba correndo de Oeste para Leste junto ao Bosque, num dos poucos meandros deixados pela retificação do curso nos anos de 1960, o espectador se lembrará de que, às suas costas, o mesmo rio está correndo de Leste para Oeste, lá no meio da Serra do Mar. Só nas proximidades de Guararema é que o rio começa a fazer a curva para a direita, completando essa curva em Jacareí e, a partir daí, vem descendo direto em direção ao Estado do Rio de Janeiro.
Já a Serra da Quebra-Cangalha, apesar de ocupar a região sul do município de Pindamonhangaba, tem um bom trecho visível do terraço do Palacete, principalmente em direção leste. Os morros mais visíveis, localizados em Roseira e Aparecida, despidos da vegetação nativa, contam-nos a história da ocupação agrícola da região, marcando a passagem do café e, mais recentemente, das pastagens para o gado leiteiro e de corte.
Um professor, falando a seus alunos sobre vales e montanhas, rios e várzeas, entradas e bandeiras, cidades paulistas e cidades mineiras, ocupação humana e equilíbrio ecológico – se estiver falando a partir do que se vê das janelas e terraços do Palacete Visconde da Palmeira, estará transmitindo informações e valores de um modo significativo, diferente das aulas dadas apenas com a lousa e o giz.
Claro que todo Museu deve dirigir seus visitantes ao estudo do acervo. Mas talvez seja uma boa ideia simplesmente convidar os visitantes a contemplar a paisagem que se vê dos terraços e das janelas.
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Texto e foto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

domingo, 14 de outubro de 2018

O meu pé de manga-espada



Meu primeiro contato mais emocionante com a mangueira foi a minha primeira e única lição de paraquedismo. Com o guarda-chuva do meu pai. Sozinho, calculei que dava. Do último galho, pulei, aberto o guarda-chuva, que virou do avesso. Mas caí sem dor. Chato foi devolver o paraquedas para o meu pai. Surpreendente foi ele não achar ruim, deu risada. Talvez tenha se lembrado de alguma aventura da infância dele, na fazenda Itapecirica, em Taubaté...
Mas, nas brincadeiras de esconde-esconde, o piques não era a mangueira, era o abacateiro. Você vai brincar com os irmãos e os vizinhos que pularam a cerca, ou passaram por baixo. Vai contar e tapar a cara no pé de abacate. Então vai gritar: Quem não escondeu não esconde mais!
E vai sair procurando: atrás das bananeiras, dentro do chiqueiro, atrás do galinheiro... E vê, junto à mangueira, um par de chinelos velhíssimos. Ah! Danado de alguém! Subiu na mangueira, bobo deixou os chinelos embaixo, denunciadores. Agora você tem que chutar um nome, não pode errar, os chinelos podem estar trocados. Vai de um lado para outro, olhando a copa da mangueira (cabe alguém ali, dentro da folhagem?).
De repente, num vento gargalhante, passa alguém correndo por trás de você e vai ao piques e bate: Um dois três! Um dois três!
Os chinelinhos engaram você. Tinha ninguém lá em cima não.
Mas isto tinha sido havia muito tempo, meu pai ainda era vivo, eu ainda não tinha nove anos. Depois fomos crescendo, e o quintal continuou sendo nosso espaço de magia.
O quintal não era muito largo, mas era bem longo... Começando na varandinha do tanque e terminando no muro da Fábrica. Na primeira metade  dele ficavam a horta com suas leiras verdes, o viveiro dos passarinhos, o galinheiro, a casa das cabras, as coelheiras, os caixotes para ninho dos pombos. Tudo isto no meio das ameixeiras, os pés de laranja-natal, o pé de uva japonesa, a parreira, o pé de conde. Então, uma cerca de taquaras, com o portão.
Ali começava a parte mais selvagem. Pés de lima com espinhos ameaçadores. Bananeiras em duas filas, acompanhando as cercas laterais. O meio, limpo, desimpedido, varrido. Era o campinho de futebol. Improvável, mas sim. Com duas caixas de abelhas num dos lados e o chiqueiro no outro. Nesse trecho os esquemas futebolísticos se comprimiam, num afunilamento.
Abelha não ataca quem joga bola, suando muito. Mas é erro pisar descalço numa abelha. Dói muito, e o jogo não para.
A mangueira velha no centro do campo, detendo os chutes de qualquer dos times. Se a bola ficasse presa nos galhos considerava-se bola fora, lateral.  Bola que resvalasse no velho tronco e entrasse no gol, era o quê? Era gooooool...
Triste era se a bola, ultrapassando o gol, fosse se espetar nos espinhos do pé de lima, vazando num assobio desalentador...
A touceira de espada-de-são-jorge, numa lateral, foi destruída aos poucos. A bola caía lá dentro e ninguém concordava em bola fora. Vinha todo mundo chutando, despedaçando as espadas, arrancando os caules subterrâneos. Até que um dia não existia mais a touceira.
E, meio que de repente, não existia mais a infância encantada, que ia dando espaço para a adolescência curiosa e mais encantada ainda. E o entorno da mangueira era uma espécie de templo de meditação solitária, ou de convívio com os irmãos, agora um bandinho de adolescentes.
A mangueira velha também era o meu posto de observação. Assim: Olhe bem a mangueira, buscando as frutas mais coloridas. Nada de cutucá-las com bambu, isto seria para iniciantes. Você não. Você suba, ágil como um macaco. É fácil. A casca é grossa, áspera, com cicatrizes salientes. Mãos e pés acham apoio fácil, não escorregam. Vá para os galhos mais altos. Alcance a manga madura. Sente-se, montado. Agora, aproveite para ver a paisagem.
Aqui por perto, os quintais. O do Seu Luiz Crepaldi, com o galo vermelho, as galinhas carijó, os pés de cana, as enormes goiabeiras. Adiante, o quintal dos Duran, o terreiro varridinho, o galinheiro e a coelheira, os marrecos. Do outro lado, o quintal dos Amarante, do Jurandir, do Seu João da Ponta, dos Machado, do Seu França. Vire mais a cabeça: o quintal do Seu Eurico, o que foi do seu Dionísio e agora é do Seu Nikita. O do Seu Fusco não dá para ver, muita folhagem tapando seus olhos.
Então, mais distante, a torre do sino e os coqueiros da igreja. Ainda mais longe, as últimas casas da Alberto Simi e, além, a Vila Jacarandá... Fechando de azul o panorama, a Serra da Quebra Cangalha.
Opa. Pronto, agora, a manga. Aperte-a de leve contra o tronco da mangueira. Gire-a, aperte de novo, até que sinta que se criou um meio líquido envolvendo todo o caroço, que ficou solto no meio desse mel. Com cuidado, morda e arrance o biquinho da casca. Eis uma perfeita mamadeira, cheinha de suco dourado, doce. Aproveite, sugue tudo, tudo. Depois, só resta arrancar a casca, lambê-la, rapar com os dentes as fibras amarelas, açucaradas. Por fim, aproveitar do caroço tudo o que sobrou de chupável e mordível. E olha a pontaria: o caroço voa e vai parar dentro da touceira de banana-prata.
Já pode descer. Vai lavar essa cara feliz lá na torneira do tanque.  
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

domingo, 26 de agosto de 2018

Terminando o primário



Estava terminando o ano de 1958 e estavam terminando os dias do quarto ano do grupo. Estava terminando o curso primário! Dali para frente, só uns poucos continuariam a estudar. Só quem passasse no temível peneiramento do “exame de admissão ao ginásio”.

Era um tempo em que primário e ginásio pertenciam a mundos diferentes. Professores diferentes, matérias diferentes, salários diferentes para professores, diretores, funcionários.  Formação diferente: um professor de primário tinha estudos de nível colegial: a Escola Normal. Um professor de ginásio tinha que ter curso superior. E as escolas eram separadas. Onde funcionava o primário, era só primário, com vasinhos de flores nas janelas. Onde funcionava ginásio, era só ginásio e colegial, nenhum vaso de flor.
Mas aproximava-se o final do quarto ano e eu ia deixar de ser aluno do Grupo Escolar Rural. Ia começar a viajar todo dia para a cidade, ia encontrar professores desconhecidos, colegas desconhecidos, gente da cidade, tudo novo. E ia voltar para casa quando já estivesse escurecendo. No ginásio não ia ter horta, nem mina d’água, nem canjica... Nem ia poder usar calças curtas. E, antes do ginásio, ainda tinha que passar pelo curso preparatório e pelo exame de admissão.
Nos últimos quinze dias letivos não houve aula de verdade, era todo o tempo dedicado a trabalhos manuais para a Exposição. Hoje eu diria: artesanato. Puxa vida, pensava, por que só no final do ano? Devia ter mais disto. Os alunos fazendo bolsas e cintos de barbante, trabalhos com madeira decorativos, ou utilitários, como porta-toalhas, cabides, tudo lixado, pintado, envernizado com goma arábica. As meninas bordavam panos de prato, panos para cobrir o fogão, costuravam, faziam bainhas, tricotavam. Nada mais de aulas de Linguagem, nem de Aritmética, tudo era alegria e criatividade.
A escola toda estava meio febril, excitada com duas coisas: a Exposição e a Formatura.
No último dia fomos à tarde para a escola, era o ensaio da cerimônia de formatura.  Depois, todos os colegas se foram, saindo em grupinhos, conversando, rindo e, aos poucos, se espalhando pelas ruas do bairro. Mas eu não estava com vontade de ir embora, não queria dar risada, nem conversar.  Fiquei para trás, na escola deserta, ampla, quieta. O sol da tarde fazia brilhar as árvores do pátio. A horta, lá embaixo, perto do ranchinho das ferramentas, estava invadida de capim, fazia tempo que ninguém cuidava, nas últimas semanas de aula ninguém se lembrava mais da horta, tudo tinha sido colhido.
Eu me sentei num dos bancos do galpão, olhando as andorinhas que voavam no meio das vigas do telhado. Depois deu uma tristeza, fui embora, pelo meio dos eucaliptos do campo de futebol.

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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
No livro ACONTECEU NA ESCOLA
ISBN 978-85-913453-4

terça-feira, 17 de julho de 2018

A flauta do Seu Bartolo




No terceiro ano estudei no período da manhã com o Professor José Murillo Françoso, jovem recém-chegado de Piracicaba. Na verdade, eram quatro professores que chegaram a Coruputuba nos anos cinquenta: Frederico Perencin Filho, Antonio Calixto Rodrigues, José Thomé Junior e o Prof. Murillo. A Companhia cedeu para residência temporária deles a linda Casa Verde na beira do lago, a casa coberta de heras, que bem mais tarde abrigou a assistência social.  O Professor Frederico veio para ser diretor da escola. Os outros, para dar aula.
O Professor Murillo era engraçado. Muito magro, de óculos, sempre de terno escuro, às vezes vinha de bicicleta para a escola. Certa manhã, todos os alunos já estavam em fila no galpão, preparando-se para a sineta, e o Prof. Murillo ainda não tinha chegado. De repente, chegou, de bicicleta, a toda. Tentou fazer a curva para entrar pelo portão dos alunos, mas derrapou, caiu e foi com bicicleta e tudo nas ripas da cerca. Naquele tempo os alunos não davam risada dos professores. Pelo menos abertamente não. Imagino o que aconteceria hoje, num caso desses. Mas o Professor Murillo nem se abalou com a queda, limpou o pó, desentortou o guidão e entrou empurrando a coitada da bicicleta, guardou e veio fiscalizar a nossa fila de entrada.
Os alunos ficavam perfilados, no galpão, antes de entrar. Cada dia era uma classe que cantava. Músicas patrióticas, ou folclóricas, tinha de tudo. Eu gostava do Hino da Escola Rural. Muito, mas muito mais tarde, fui descobrir que o hino tinha letra de Gustavo Kukinann e música de João Gomes Junior – este, um famoso compositor pindamonhangabense, filho do maestro João Gomes de Araújo.  No tempo da ditadura militar, a música recebeu uma versão meio plagiada, assinada por famosos cantores sertanejos, incentivados pelos generais de plantão. Mas a letra verdadeira é esta:
Nesta escola modesta da roça / Rodeada de pés de café / O Brasil se levanta e remoça / Numa nova alvorada de fé! / Batida de sol ardente / És do saber o fanal / Que nos guia para frente / Bendita Escola Rural! / Através da lavoura florida / Que a riqueza da Pátria produz / Nossos pais vão lutar pela vida / E nós vimos em busca de luz!
Batida de sol etc..
O Prof. Murillo era um humorista. Ensinou para a gente uma canção que nunca mais acabava, um moto-perpétuo:
Bartolo tinha uma flauta / A flauta do Seu Bartolo / Sua mãe sempre dizia / Toca flauta seu Bartolo / Tinha uma flauta / A flauta do Seu Bartolo / Sua mãe sempre dizia / Toca flauta seu Bartolo / Tinha uma flauta... (e assim a gente iria ad infinitum, ninguém queria parar, precisava o Seu Frederico mandar a classe entrar – e a classe entrava cantando...)
No entanto, o bom humor do professor não o deixava imune aos costumes disciplinadores então vigentes. Era a época dos castigos humilhantes. Certo dia, eu, que estudava de manhã, fui condenado a permanecer na sala de aula uma hora a mais que os colegas. Quer dizer, todos foram embora e fiquei em pé no fundo da sala. Então entrou a classe do período intermediário – e era uma classe feminina. As alunas, ao entrar, foram dando de cara com aquele menino parado feito uma estátua envergonhada. A professora, já a par do assunto, explicou-lhes que eu estava de castigo porque não tinha estudado. De fato, na chamada oral de ciências o professor tinha me perguntado sobre a digestão e confundi quimo com quilo, coisa imperdoável para um aluno de nove anos...
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
No livro ACONTECEU NA ESCOLA
ISBN 978-85-913453-4

sábado, 24 de março de 2018

A tempestade mais feia



18 de dezembro de 1952. Uma quinta-feira de muito calor, mas de céu azul, limpinho. Sem nenhum vento, a tarde abafada. Passaram duas senhoras, conhecidas de minha mãe, pararam para reclamar que estavam lenhando e surgiu o guarda, a cavalo, botou as duas para correr, não podia catar lenha mais grossa do que uma garrafa. E foram embora, para a Vila Campineira, falando, comentando...

A gente morava na Avenida Cícero Prado, a rua de entrada do bairro. Casas só de um lado. Do outro lado, um bosque de velhos e poderosos eucaliptos. Bem na frente da nossa casa, um deles se destacava dos outros, inclinado para a rua, arcado bem na nossa direção. Quem estivesse na linha do trem olhava e via aquela coisa, aquela árvore muito grossa, ameaçando cair para longe das companheiras.

Eu tinha cinco anos só. Mas já tinha percebido o medo da minha mãe. Qualquer começo de ventania, ela perguntava ao meu pai: “Quito, pra que lado que tá o vento?” E ele abria a janelinha da janela da varanda, olhava um pouco e sempre respondia assim: “Tá pro lado de lá, Nega”.

De tardinha, o sol se escondendo – e escondia logo, porque tudo em volta eram eucaliptos muito altos e encorpados –, mas o ar ainda muito abafado, mamãe foi molhar a roseira de Santa Terezinha, que tinha esse nome porque foi plantada num dia primeiro de outubro. Aos poucos, escureceu, sem vento, calorão.

Vovó acabou de preparar a janta, arroz com linguiça e chuchu, todo mundo jantou e fomos para a sala rezar o terço da noite. Depois, papai ligou o rádio, testando a antena de arame que ele tinha esticado de cima da casa até o pé de abacate. Nós ficamos conversando sobre o Natal que vinha vindo. Vinha vindo, a gente brincava que ontem ele estava perto do Portão, hoje já devia estar chegando na linha, amanhã vai estar perto da casa do Seu João da Ponta...

Um primeiro trovão comprido e longe, repetido e repetindo de novo, agora mais perto, e o barulho do vento chegou duma vez, sem aviso, aumentando sempre mais, e os trovões rebentando e os relâmpagos alumiando, os raios caindo – e ninguém podia falar essa palavra – e as lâmpadas se apagaram e mamãe começou a rezar alto, tão alto que dava mais medo na gente. Vovó foi depressinha para o fogão catar brasas na tampa da panela para queimar palma benta. Fomos todos para o quarto e subimos na cama da mãe e do pai. Papai tapou os espelhos e acendeu velas e a terra tremia, e dava estrondo. Um estrondo em cima do outro e as telhas debaixo do castigo da chuva de pedra que vinha meio de lado, fazendo um barulhão nas vidraças. As telhas da cozinha se mexiam quando fui no banheiro, voltei correndo.

“Estrela do Céu, Maria Santíssima, que a seus peitos criou ao Senhor e extinguiu a mortal peste que no mundo introduzira o primeiro pai dos humanos. Digne-se agora a mesma estrela reprimir os influxos dos astros que, por suas disposições malignas, ferem o povo com pestíferas epidemias”. Isto era papai e mamãe e vovó rezando alto a oração forte de abrandar as tempestades. Depois começamos a cantar músicas de igreja: “Ó mãe de ternura, o teu puro amor é nossa ventura, alívio na dor! Matutina estrela, um sorriso teu torna a terra bela e serena o céu”. A gente estava era pedindo misericórdias para Deus. Trovão estourando....

Eu rezava olhando para o quadro de Nossa Senhora Auxiliadora, que tinha em cima da cama da mãe. Nossa Senhora com o Menino Jesus no braço e segurando um cetro.

Os estrondos não paravam. Cada estrondo a terra tremia. O Seu Luiz Crepaldi, nosso vizinho, começou a bater na parede e papai chegou perto da janela do quarto, aos gritos, perguntando o que era. O barulho da água que caía da calha e batia igual uma cachoeira no cimento da área, não deixava escutar. Mas era que o nosso vizinho escutou as nossas orações e músicas e queria saber se tinha acontecido alguma coisa na nossa casa, porque na casa dele as telhas da cozinha tinham voado e chovia tudo dentro.

No meio do barulho de vento, chuva de pedra, trovões e estrondos, de repente começou a tocar o apito da fábrica! Meu Deus! Parecia um animal grandão berrando, machucado. Pedia socorro. Precisava dos operários para socorrer alguma coisa lá. O apito ficou tocando, um tempão, igual na passagem do ano, mas era triste, dava angústia na gente.

Daí foi parando a chuva, o vento foi parando, parou, a chuva parou. Trovões foram indo embora, para outro lugar longe, mas ainda dava um estrondão às vezes e a terra dava uma tremida. Depois a trovoada virou só um resmungo distante e acabou. A gente não queria ir dormir, a luz não voltou, vovó fez chá de erva cidreira, demorou para a gente ficar calmo. A tempestade tinha ido embora, mas por que será que ainda dava um chiado e um estouro de balançar o chão?

De manhã, acordamos com papai chamando: “Nega vem ver!” Ele estava na varanda. Fomos lá e vimos. O bosque não tinha mais. No lugar dele, uma coisa feia: montanha de eucaliptos, monstros, deitados uns por cima dos outros, alguns com o raizame para cima, lá no ar, ainda com pedação de terra agarrado. Por isso, os estrondos que a gente tinha escutado! A terra tremia cada vez que um gigantão daqueles caía, derrubando outros e batendo com tudo no chão, toneladas.

E o céu estava lindo de azul, toda a destruição estava molhada e iluminada pelo sol dourado, estava até meio friozinho.

Passarinho morto, eu e o Zaga achamos no quintal. Pé de amora tinha meio que deitado no chão, mas não quebrou. Poças enormes, pegavam a horta inteira e até perto do galinheiro. Nesse dia e nos dias seguintes as pessoas grandes falavam coisas que outras pessoas tinham falado, e a gente ia escutando assim:

"Que foi que nem um redemoinho, os calipero caíram em toda direção, misturados (quem contava isto fazia com a mão o movimento de pião, dramatizando)".

"Que o pessoal que mora lá na serra diz que olhava aqui para baixo e via era uma fogueira só de raio, em cima só de Coruputuba. Não tinha essa fogueira de raio na Água Preta, por exemplo, nem em Moreira César, só em Coruputuba".

"Que foi ruindade dos guardas, que falaram que não podia catar lenha mais grossa que uma garrafa. Pois caiu foi tudo calipero mais grosso que um barril".

"E diz que foi castigo de Nossa Senhora, porque o dia oito de dezembro era para a fábrica não trabalhar, que é dia de Nossa Senhora da Conceição, e não fecharam, fizeram todo mundo trabalhar".

"Que foi milagre, que Alguém segurou o calipero grosso, que caiu foi para o outro lado, certinho, para dentro do bosque. Se caísse para o lado de cá, para onde vivia arcado, ia derrubar a nossa casa. Mas ia mesmo, grossão daquele jeito".

"Que foi milagre de Santa Terezinha que a roseira não aconteceu nada com ela e até as rosas que estavam abertas nem despetalaram, nada. Ficaram bonitas, inteiras, com gotinhas de chuva brilhando nelas. Enquanto que calipero grosso virou de raiz para cima, cada um deixando um buracão no chão".

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Durante acho que um mês inteiro a gente ficava na janela do quarto da frente, ou então na varanda, vendo bois, tratores, correntes, machados, serras, muitos homens o dia inteiro picando e arrastando o que caiu e no fim derrubando o pouco que ainda tinha ficado de pé.

Eucalipto enorme, reto, altíssimo. Um homem subia até bem alto no calipero, levando a corda. Amarrava lá em cima e descia depressa. Começavam a cortar com machado e depois com a serra, um tanto. Paravam e os outros amarravam na corda um baita de um tronco para contrapeso. E juntavam uns vinte puxando a corda. O tronco de contrapeso subia, absurdo, balançando no ar, enquanto outros homens metiam machado para acabar de cortar. O bicho gemia, se mexia, as folhas se agitavam e o tronco começava a se inclinar. Um gritava e todos saíam correndo. A gente escutava o assobio das folhas cortando o ar, e daí era o baque com estrondo e a terra tremia. Ficava um tempo caindo que nem uma chuva de pedaços de folhas e de casca e graveto.

Limparam tudo, tiraram os tocos. Os buracos eles foram enchendo de terra, ficou tudo aplainadinho, para plantar um cafezal. Isto na frente da nossa casa, nos fundos da igreja e nos fundos da Alberto Simi. Tudo foi cortado, tiraram os tocos, tiraram toda raiz. Cafezal no lugar, por todo lado.

Vinte e oito de dezembro, todo mundo pensou que vinha outra daquela tempestade feia. O céu ficou roxo, começou a ventar, mas passou, passou, nem choveu, o sol clareou de novo, não aconteceu nada.

Ninguém morreu na tempestade de dezoito de dezembro. Casas foram danificadas, árvores derrubaram postes e cortaram os fios de eletricidade, mas não teve alagamento nenhum, a ideia do engenheiro Alberto Simi era muito boa, tinha sempre lugar para a água escoar.

Naquela noite caiu calipero, caiu cedro, caiu árvore de fruta nos quintais. Caiu árvore dentro do tanque do chalé, diz que no fundo ainda tem, que eucalipto não apodrece dentro d’água, não sei.

Coqueiro não caiu nenhum.

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Se eu tinha cinco anos, meus irmãos tinham: Carlinhos 13, Ana Clara 11, Pedro 9, Zaga 7, Bosco 3, Auxiliadora 1.


Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

sexta-feira, 9 de março de 2018

A horta do grupo escolar rural


 Alunos do quarto ano com o Professor Antônio Calixto Rodrigues

O nosso Grupo Escolar tinha no nome a palavra Rural, mas não era só por causa de estar na roça. Era porque ali havia ensino agrícola mesmo. Aprendíamos a cultivar verduras e legumes trabalhando na horta da escola e depois fazíamos hortas em casa e o professor visitava os quintais de alguns alunos, para verificar como estava indo a produção doméstica...
Duas vezes por semana, após o recreio, a classe toda ia para a horta. Cada um fazia um serviço, as meninas também. Aprendíamos a cuidar das sementeiras, fazer o transplante das mudinhas, molhar os canteiros, pegando água na bica. Existia uma mina d’água no fundo da horta. Depois da ampliação da escola, em 1970, a mina desapareceu, mas ficava mais ou menos onde foram construídas a diretoria e a secretaria da escola nova.

Havia os dias de colheita, quando as verduras estavam prontas para o consumo. Todos levavam para casa sacos de alface, chicória, couve, rabanete... Nos dias de transplante, quem estava fazendo horta em casa ganhava mudinhas prontas para os canteiros definitivos.
Junto à horta, havia um ranchinho muito organizado, construído com toras de madeira. Era o depósito das ferramentas, gerenciado pelo Seu Zé e mais tarde pelo Seu Dito, que acabou se aposentando na Escola Eurípedes Braga, na cidade. As ferramentas ficavam penduradas arrumadinhas e ali a gente pegava e ali as devolvia no final do trabalho. Era preciso limpar e lavar antes de devolver. Assim, estavam sempre apresentáveis as enxadas, os enxadões, as pás, os rastelos...

A glória verdadeira era chegar correndo na frente dos colegas e pegar o peruzinho para ir buscar esterco. Formava-se um trio: um empurrando o peruzinho e os outros dois com pás para catar esterco de boi nos pastos atrás da Vila Jacarandá. Claro que a gente esticava a caminhada, ia procurar esterco perto do primeiro tanque, ou do outro lado do segundo tanque, onde depois fizeram a Casa Amarela. O chato era começar de repente a encontrar esterco verde, fresco: queria dizer que os bois estavam por perto. Acontecia às vezes, e a gente recuava logo, medo de dar de cara com boi bravo no meio dos eucaliptos...
Atrás da Vila Jacarandá tinha umas casas com laranjeiras e às vezes a dona da casa deixava a gente apanhar as laranjas que estavam quase rachando de maduras... Aprendi a abrir laranja na mão, sem faca.


Quando voltávamos com o carrinho cheio de esterco, a Dona Luiza Assoni já tinha preparado uns belos pratos de canjica doce, quentinha, para nós. É que muitas vezes as aulas já tinham acabado, os colegas tinham ido embora e só nós tínhamos sobrado, pequenos heróis queimados de sol na batalha pelo adubo para a horta.
E ninguém achava ruim a demora, nem os professores, nem as famílias. Pequeno paraíso, a nossa Coruputuba. Onde mais, neste mundo, alguém iria confiar uma tarefa daquela para crianças de nove ou dez anos?
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Fotos: Coleção Patrick Assumpção, Museu Histórico e Pedagógico Dom Pedro I e Dona Leopoldina

domingo, 25 de fevereiro de 2018

Xícaras de porcelana dourada


Esse negócio de tomar café elegantemente, um bocado de pão, um gole de café... isso demorou. A gente bebia o café de gúti-gúti na caneca de folha, que o Seu Miguelzinho tinha colocado asa, e saía para o quintal comendo o pão. A caneca de folha deixava marca na testa, tanto tempo que a gente ficava bebendo e respirando dentro da caneca, o narizinho ficava cheio de gotinhas de vapor.
Mas no bufê, de vidro e espelhos manchados, tinha umas xícaras de porcelana, branquinhas por dentro e pintadas de amarelo por fora, com paisagem de coqueiro, casinha e mar. E também, do mesmo jogo, o bule, a leiteirinha, a manteigueira e o açucareiro. Mas era só de enfeite tudo isto, eu pensava. Até que veio o batizado da Auxiliadora, quando eu tinha quatro anos.
Na igreja, depois da missa cheia de incenso e do harmônio do Maestro Romão, minha irmãzinha bebê, de longa camisolinha branca, não estava no colo da mamãe, nem do papai. Estava no colo dos padrinhos, o Seu Vando e a Dona Bela Esteves. Orações, a fala do padre, a vela acesa, o algodão com óleo na testa e no peitinho da criança... Depois, fomos todos para casa – e os padrinhos também! Foram tomar café com a gente.
Quer dizer, tomar café com o papai e mamãe. Nós, crianças, fomos para a cozinha, sob os cuidados da Vovó, que estava com o Bosquinho no colo. Vovó falou que era para dar sossego para as visitas, tinha que ir para o quintal. Mas bem capaz! A gente queria ficar no corredor, espiando pelo vão da cortina de chita. Eu espiava, disputando espaço com os maiores, num empurra-empurra, mas não podia dar muita risada, nem cochichar muito.
Eu espiei, e vi. Ó maravilha! A mesa tinha ido para perto da janela da varanda, estava com toalha. Em cima da mesa, as xicrinhas amarelas! E o bulinho! E a leiteirinha, com o açucareiro de tampa, e a manteigueira! E tinha manteiga, que compraram na Dona Naná. E tinha pão doce, de casca marrom brilhando!
As cadeiras de pau tinham recebido capas de morim branco, que mamãe tinha costurado e bordado, com tirinhas para prender no encosto. Sentados, solenes, os adultos conversavam contentes, comentavam coisas, passavam manteiga no pão doce, punham café e leite, e tudo fumegava, e as colherinhas dançavam dentro das xícaras, tilintando. Mas me deram um bruto de um empurrão por trás e eu fui de cambalhota para o meio da sala e já fui me levantando aos trambolhões para me safar dali, mas deu tempo de ver a cara da minha mãe e o gesto que queria dizer “Ocê me paga!”.
Tinha mais ninguém no corredor não. Fugi para o quintal e estava todo mundo lá, rachando o bico de tanto dar risada.
Acho que não apanhei não, acho que ninguém apanhou, não lembro. Lembro que logo depois a gente tomou café com leite com pão doce com manteiga. Mas o café foi nas canecas de folha mesmo, as xicrinhas amarelas já tinham voltado para o bufê e ali ficaram mais uns vinte anos, até que foram sumindo, quebrando, desaparecendo.
O bufê acabou, as cadeiras de pau também, e as suas capas de encosto. Acabou essa coisa de ter na sala mesa com cadeiras. Acabou isso de a gente levar tombo e dar risada, a gente vai ficando mais fraco e triste e os tombos agora fazem a gente chorar.
Xicrinhas douradas de café com leite! Doces, lindas, frágeis, como a infância!  Frágeis como a vida.
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Fotos: Mercado Livre