quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Nada mais lindo que uma criança...

Poema de Charles Pierre Péguy (1873 – 1914  )

Nada mais lindo do que uma criança que adormece rezando, disse Deus.
É como vos digo, nada mais lindo no mundo.
Eu nunca vi nada tão lindo no mundo
E, no entanto, muitas coisas lindas vi no mundo.
E entendo de belezas. Minha criação regurgita de belezas.
Há mesmo tantas belezas que nem sei onde colocá-las.

Vi milhões e milhões de astros rolar sob os meus pés como as areias do mar.
Vi dias ardentes como chamas,
Dias de verão, dias de junho, julho e agosto,
Noites de invernos pousadas como mantos,
Noites de verão, calmas e suaves como uma queda de paraísos,
Inteiramente consteladas de estrelas.

Vi essas colinas do Meuse, e essas igrejas que são minhas próprias casas,
E Paris, e Reims, e Ruão, e catedrais que são meus próprios palácios e castelos,
Tão lindos que os guardarei no céu.

Vi lágrimas de amor que hão de durar mais que as estrelas do céu.
Vi olhares de prece, olhares de ternura,
Perdidamente caridosos,
Que brilharão eternamente na noite das noites.
E vi vidas inteiras, do nascimento à morte
E do batismo aos Santos Óleos
Desenrolar-se como um fuso de lã pura.

E eu vos digo, disse Deus, que não conheço nada mais lindo no mundo
Do que uma criança que adormece rezando
Sob as asas de seu anjo da guarda.
E que ri para os anjos ao adormecer
E já mistura tudo e não compreende mais nada
E enfia as palavras do Padre Nosso, a torto e a direito, entre as palavras da Ave Maria,
Enquanto desce um véu sobre as suas pálpebras,
O véu da noite, sobre seu olhar e sua voz.

Vi os maiores santos, disse Deus, pois bem, em verdade vos digo que nada me pareceu tão gracioso e portanto tão lindo no mundo
Como essa criança que adormece rezando
(esse pequenino ser que adormece na confiança)
E mistura o Padre com a Ave Maria.

Nada é tão lindo, e neste ponto
A Santa Virgem é também da minha opinião.
E posso dizer até que é esse o único ponto em que temos a mesma opinião
Porquanto em geral nós divergimos.
Ela é pela misericórdia
E eu, tenho que ser pela justiça.


(Tradução de Sérgio Milliet)

domingo, 28 de setembro de 2014

Reunião Pedagógica sem Frescuras Democráticas



Já vou avisando que não quero que vocês entrem com essa coisa na sala, esse tal de espírito crítico, que eu nem sei para que que serve e ainda fica atrapalhando o andamento da reunião. Deixem lá fora, ou então se desfaçam dessa porcaria. Mas na minha reunião, de jeito nenhum, não quero e vocês façam o favor de obedecer para não criar complicação. Mas já vamos passar para os avisos de hoje, façam o favor de parar com essa conversa aí atrás, que aliás são sempre os mesmos, não é? Tou errada?
Quando o lápis estiver sem ponta, melhor apontar. Favor não tentar escrever com o lápis sem ponta. Tem ocorrido problemas...
Quem tiver dúvidas deve perguntar. A não ser que haja alguma dúvida sobre isto. Neste caso, é bom perguntar também.
Atenção: não dei este aviso de manhã. Então não darei também para vocês, da tarde. A não ser mais tarde, ou mais cedo, conforme avisei. Ou não avisei, não sei, mas fica avisado. Não venham com gracinha depois.
Favor não ir tirando conclusões apressadas. Se bem que as conclusões assim muito vagarosas também não adiantam. Melhor, em conclusão, não tirar conclusão nenhuma. Se bem que isto também pode ser uma conclusão apressada, não sei.
Voltando ao problema dos lápis sem ponta: é bom não ficar apontando problemas já discutidos. Este é um apontamento que é bom fazer, para não causar... desapontamentos. Eu me divirto com certas coisas. E também não quero que fiquem apontando problemas que não foram discutidos. Se não foram discutidos é porque não devem mesmo ser discutidos, entenderam.
Têm chegado ao nosso conhecimento certos casos envolvendo certas pessoas, que, em determinadas situações, têm tomado algumas atitudes que, sinceramente, provocam determinadas reações que nos obrigam a tomar algumas providências que acabam causando algumas consequências que gostaríamos de evitar. E às vezes ocorre o quê? Justamente o contrário!
Para esclarecer em definitivo, pois eu não gosto de deixar as coisas no ar. Ainda certo dia ficamos sabendo de alguém que, talvez por não querer uma atitude que outra pessoa lhe recomendara, acabou tomando uma atitude que, Meu Deus, nem vou comentar.
Mas eu também não quero tirar conclusões apressadas. Nem deixar as coisas no ar. Eu me sinto na obrigação de contar quem foi. Ah, foi exatamente quem vocês estão pensando! Quem me contou tudo tim-tim por tim-tim foi uma pessoa que vocês nem imaginam!
Favor pedir aos pais que, no caso de excursão, recomendem cuidadosamente aos seus filhos isto: Quando estiver sentado, evite ficar em pé. E vice-versa, Meu Deus do Céu. Se der sede, beber água. Se der fome, comer alguma coisa. Se fizer frio, ponha a blusa. Ah, bom, e tirar a blusa, se fizer calor, por favor. Isso tudo é muito importante. O pessoal aí atrás podia fazer o obséquio?
Agora, a questão da chamada. Os alunos que faltarem não devem responder à chamada. A não ser que estejam ausentes na hora da chamada – ou caso o professor não faça a chamada, ocasião em que o aluno deverá permanecer onde estiver.
Espero ter orientado com segurança a todos vocês. Como dizia aquele grande educador: Às vezes é preciso fazer certas coisas para obter certos resultados. Mas nem sempre!
***
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Livro: Aconteceu na Escola
Registrado na Biblioteca Nacional

Ah, mas pode usar o texto, se gostar. Mas faça a bondade de mencionar a fonte, caramba!

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Coroação de Nossa Senhora em Coruputuba



Coroação de Nossa Senhora Aparecida em Coruputuba! Cerimônia comovente, soleníssima, encerrando as festividades do mês de maio. A linda e pequena capela, que já tinha ficado lotada nos domingos anteriores, transbordava de coruputubenses no último domingo. Todas as luzes acesas, o perfume do incenso flutuando, em transparente névoa azulada. No coro, o maestro João Antonio Romão tocava o harmônio. Sobre o altar, colocadas numa espécie de pódium, as Meninas de Coruputuba, vestidas de túnicas brancas, rosas, azuis. No topo do pódium, a imagem de Nossa Senhora colocada entre duas Meninas: a que ia fazer o papel principal, de realmente coroar a santa, e a sua, digamos, ajudante, ou assistente: a que ficava segurando o pratinho com a coroa.
A Menina Principal cantava sozinha um trecho da música, enquanto colocava a coroa na imagem. Era o momento culminante. O povo prendia a respiração diante daquele quadro: a Menina Principal cantando sozinha, acompanhada apenas pelo harmônio.
Todas tinham cantado juntas a primeira parte da música: “Hinos e flores nesse dia / viemos aqui pra te ofertar / cheias de amor e de alegria / viemos aqui te coroar”
Então a Menina Principal, como solista, cantava levantando a coroa: “Aceita ó Mãe esta coroa, em que nos toma o penhor / daquela que um dia na gloria / nos está guardando / teu amor”
E colocava a coroa na cabeça da imagem, enquanto as outras Meninas cantavam: “Nós somos filhas tão amadas / da pura mãe do Redentor / quem poderá conter a chama / quando no peito arde o amor?”
Momentos celestiais, em que as jovens vozes femininas flutuavam pela capela, junto com o aroma do incenso.
Tudo muito lindo. Só que, para conquistar o papel de Menina Principal, todo ano acontecia, secretamente, uma guerra cheia de lances altos e baixos, de segredinhos entre as meninas, entre as catequistas, as moças do coro, as mães das meninas. Acho que só o padre que não se envolvia. Todas falavam mal de todas, todas criticavam todas.
Uma vez, minha irmã Auxiliadora, depois de tanta confusão nos ensaios, tantos boatos sobre a provável vencedora, finalmente foi escolhida: ela é que ia levantar bem alto a coroa, ela que ia cantar sozinha o trecho principal da música, ela que ia coroar Nossa Senhora! Isto, para despeito de todas as amiguinhas e suas famílias. Uma porção de gente começou a virar a cara.
No sábado, ensaio final. Fui assistir. Estava perfeito. Minha irmã cantou divinamente. No domingo, ela amanheceu completamente rouca, até com um pouco de febre. A voz não saía mesmo. Não teve jeito. Quem coroou foi a Segunda Menina, subitamente promovida a Primeira Menina e solista.
Na segunda-feira minha irmã já estava de novo com a voz normal.

***
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto: Museu Histórico e Pedagógico Dom Pedro I e Dona Leopoldina. Visível no site da Prefeitura: www.pindamonhangaba.sp.gov.br
no link Centenário de Coruputuba.

sábado, 10 de maio de 2014

Promoção automática



Minha beata Santa Catarina, vós que sois digna e clara esposa do Divino Espírito Santo, que entrastes pelas portas de Abrahão e abrandastes quatrocentos homens todos bravos como leões e com palavras de justiça conseguistes abrandar os seus corações, abrandai o coração dos meus alunos para que se tornem mansos como cordeiros. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.
Oração a Santa Catarina, rezada por alguns professores antes de ir para a sala de aula


Está bem, desculpem, não é promoção automática não. Como se chama mesmo? Seria progressão continuada?
Eufemismos à parte, a pedra de tropeço da educação pública nas últimas décadas é esta: a promoção automática. Principalmente para a segunda metade do ensino fundamental. As crianças de primeira a quarta séries são menos atingidas pela praga. Porém os adolescentes rapidamente descobrem: não repete.
E é assim: não repete, aconteça o que acontecer, estude ou não estude, compareça ou não compareça às aulas, faça ou não faça a tarefa, traga ou não traga o material, o adolescente sabe: não repete. Quer dizer: tanto faz.
Ingressamos na preguiçosa era do tanto faz e tiramos do adolescente o seu motor, que é o desafio. Tiramos o desafio do estudante, não há motivo para estudar, para cumprir, para respeitar regras...
O professor, que no começo falava mal da promoção automática, foi também se acomodando à situação. Percebeu que é melhor deixar rolar. Antes, o professor ficava magoado, percebia aquela coisa acontecendo com seus alunos, reparava: encaminhado para as aulas de reforço, o aluno fraco não comparecia, desprezava aquela ajuda, encarava a ajuda como um castigo... E o professor reparava de novo: o aluno desprezava a ajuda, tão necessária, e daí? Daí nada, não repete... O aluno passava do mesmo jeito. Tanto faz!
Ainda antes de ser decretada a promoção automática, esta já existia, no entender dos delegados de ensino que queriam auxiliar o governo a obter melhorias estatísticas. Desde aquele tempo, os professores perceberam que o melhor é só dar notas azuis, porque estas não precisam ser justificadas. Ah, mas se der notas vermelhas! Tem que preencher tanta planilha, apresentar tanto comprovante de que o professor se comportou direitinho, apresentou planejamento, preencheu certinho, sem uma rasura, sem um errorex, o diário de classe... Nossa! O melhor mesmo é dar logo uma nota boa, sem parar para pensar no quesito merecimento.
Um professor me diz: “Eu faço força para o aluno se interessar pela aula, falta só eu dançar em cima da mesa, ninguém liga. No noturno tem uma turma que fica jogando truco no fundo da sala. Alguns entregam prova em branco e, quando sai a nota baixa, vêm tirar satisfação, que eu devia considerar... Mas, na verdade, não se preocupam, já sabem que não repete. Bem que eu queria ensinar, mas como ensinar quem nem ao menos comparece? Ou, quando comparece, nem olha para o meu lado?”
O mesmo professor me conta: Olhou para a classe e viu uma mocinha desconhecida. Perguntou: – Ué, aluna nova? Você veio de onde? E a menina: – Qualé, teacher, sou aluna desde o começo do ano, pode ver, o meu nome é tal, taí na chamada, não tá? E o professor: – Mas eu nunca vi você na classe! Nossa, é mesmo, o seu nome está aqui no diário, só tem falta, você nunca veio, já é outubro, você já repetiu!
Mas a menina não se estressou: – Ô teacher, que isso, é só o senhor dar um trabalho pra tirar as faltas!
A indiferença dos alunos pelos estudos tem, nos últimos anos, se manifestado de forma tão arrogante que o mínimo respeito pelos professores vai desaparecendo, e a situação em sala de aula se torna caótica. Nas classes de adolescentes, alguns professores entram com medo, já não se sentem com autoridade suficiente para mandar, resta-lhes pedir humildemente, às vezes negociar. Se o mestre consegue obter a simpatia de um chefe de gangue, é através deste que as ordens são passadas aos alunos. Evidente que não podemos responsabilizar apenas a promoção automática por esse estado de pré-criminalidade na escola. Mas a certeza do “não repete” veio se juntar aos demais motivos que levam os alunos a desobedecer, desrespeitar, avacalhar, agredir...
Esses professores, desrespeitados e diminuídos, já desistiram de levar queixas aos diretores, nem pensam mais nisto. Para quê? Para escutar frases do tipo:
1-    Precisa ter mais paciência;
2-    Melhor não enfrentar;
3-    Olha que a mãe dele vai na delegacia;
4-    Mas será que não é você que precisa mudar o seu jeito?;
5-    Mas não se pode exigir muito deles;
6-    Tenta falar de novo com ele, mas com jeitinho;
7-    Você tem que entender que ele está em fase de desenvolvimento...

Já foram classificados de “defensores da cultura da reprovação” os que se metem a fazer tais análises. Engano. Não é isto. Todo bom professor detesta reprovação de alunos. Todo bom professor se sente realizado quando seus alunos são promovidos para a série seguinte. Desde que eles passem de ano porque demonstraram competência, não porque iam passar de qualquer jeito mesmo.
Enquanto isto, os filhos da elite continuam ralando nas escolas que exigem esforço, aplicação, realização. Estão se preparando para continuar ocupando os cargos de mando, as profissões mais disputadas, as funções melhor remuneradas, os papéis de maior prestígio social. Estão tendo o mesmo tipo de educação exigente que tiveram, no passado, os atuais ocupantes de cargos de mando, aí incluídos os responsáveis pelas decisões políticas sobre educação.
Quanto aos filhos dos trabalhadores, estudando nas escolas onde não repete, vão adquirindo uma visão de si muito positiva, a autoestima cresce, infla, infla. Isto pode ser bom no momento. Mas o triste é que a visão de si que adquiriram é falsa, o ego inflado vai estourar, espetado pelo espinho do primeiro mau resultado num concurso, num vestibular, numa entrevista para emprego... Ah! Teria sido melhor para os filhos dos trabalhadores que tivessem passado por uma escola que exigisse empenho, que valorizasse o esforço produtivo, que ensinasse o sabor da vitória obtida pela seriedade e determinação.
E os governos, não vão fazer nada? Vão sim, quando se tornarem muito fortes as queixas dos empresários que, cada vez mais, se ressentem da falta de trabalhadores minimamente responsáveis, cumpridores de horários e de compromissos, dignamente alfabetizados, capazes de ler e entender os manuais de procedimentos. Capazes, quem sabe (aí já é um sonho?), capazes de redigir esses manuais.
Eu também já defendi a promoção automática.
Eu acreditava numa escola tão boa, com tantos recursos, que nenhum aluno conseguisse passar por ela sem aprender. Nem que fosse por osmose, o aluno aprenderia muito numa escola com muitas atividades produtivas. Aluno atrasado seria encaminhado para atividades de reforço, de frequência obrigatória. As classes teriam no máximo vinte e cinco alunos, o professor ganharia tão bem que poderia se dedicar exclusivamente para o trabalho em uma determinada escola. Fora dos horários de aula, o professor ficaria em seu gabinete, tanto preparando aulas e corrigindo exercícios, como atendendo os alunos em dificuldade.
Ah! E a escola teria Orientador Educacional, cargo que não consta mais dos planos dos governos, nem dos sonhos dos sindicatos, apesar dos fracassos formativos que acontecem nas escolas todos os anos. Fracassos que só chegam à mídia quando assumem o nível de desgraças, tragédias.
E também já inventei a minha promoção automática.
Houve uma época em que eu via alunos serem retidos por motivos tão bobos! Em outro lugar deste blog conto a história do Jofre ("Quem serve para ser professor"), que foi reprovado no quarto ano do curso normal porque não sabia o que é mancinismo. Também já vi, faz tempo, aluno ser retido em História porque não sabia algum detalhe da vida de um dos reis da França. Ou ser reprovado em Geografia por ter errado a ordem dos afluentes do Rio Amazonas.
Quando comecei a lecionar, final da década de sessenta, as crianças de primeira série repetiam de ano. Era um sistema tão ingrato, tão ineficiente! Quem repetia a primeira série era obrigado, no ano seguinte, a começar novamente a cartilha. Assim, quem tinha dificuldade em ler e escrever as sílabas mais complexas – que ficavam no final da cartilha – nunca chegava a estudá-las, pois, derrubado antes disto, no ano seguinte não chegava a enfrentá-las: começava o estudo na mesma lição que ia ocupar as cabeças de seus novos coleguinhas.
Quem repetia de ano ia ficando cada vez maior, em comparação com o restante da classe. Assim é que toda classe de primeira série tinha um enorme meninão, muitas vezes já com quatorze anos, no meio dos pequerruchos. Aquilo era humilhante. E os humilhados podem adotar outras posturas diante da vida. Era comum que alguns partissem para a violência contra os pequenos, ou começassem a ensinar besteira para eles. Também era possível que aquele meninão, ou aquela moçona, se tornasse uma espécie de monitor da classe, ajudante da professora, colaborando em tomar lições das crianças, em ver os cadernos.
Fazendo estágio na classe de primeira série da Tatá[1], acompanhei a aula sobre a lição da Macaca. Era a cartilha que toda escola usava. A lição começava com uma preciosidade assim: “A macaca é má”. Abaixo daquela frase, e de mais uma ou duas frases igualmente inconsequentes, vinham três pequenas colunas de palavras formadas somente por sílabas bem simples. Uma delas era a palavra “mania”. A Tatá, alegrinha, querendo introduzir um pobre ar de Escola Nova naquela escola antiga, perguntou: quem sabe o que é mania? O meninão da classe da Tatá era o Manuel, que todo mundo chamava de Mané. Pois ele falou: Eu sei, Professora. E ergueu os dois braços, fazendo com eles uma curva, encostando as pontas dos dedos da mão direita nas pontas dos dedos da mão esquerda, fechando um círculo: “Eu sei, professora, mania é um canão assim, que nem o que o pessoal tá enterrando lá atrás da fábrica.” Claro, estava se referindo às manilhas da rede de captação de água do Paraíba.
Noutro dia, outra aula, agora sobre Tiradentes, a Tatá perguntou quem sabia alguma coisa sobre esse herói. E o Manuel interveio, que sim, que ele sabia quem era Tiradentes. Era um homem que morreu enforcado na árvore da beira da represa, o pai dele contou. Foi na represa perto do chalé, o primeiro tanque.
Nessas ocasiões a Tatá ficava muito vermelha, não sabia se ria ou se chorava, diante das tiradas do meninão da classe. Sendo que as outras professoras também tinham, cada uma, o seu meninão ou a sua moçona, chamados de cavalão, cavalona, marmanjo...
Anos mais tarde, quando me tornei diretor de escola, inventei umas regrinhas para evitar esse tipo de constrangimento. Criança repetente de primeira série tinha que, no ano seguinte, continuar a cartilha a partir de onde tinha parado – e não mais recomeçar tudo desde a primeira lição. Isto eu implantei na Escola Benedita Freire de Macedo em 1980, muito antes do Governo pensar em inventar o ciclo básico. Também inventei que, no primário, quem começasse a criar bigodinho ou despontar os seios não podia repetir de ano. As professoras adoravam, isto acabava com os meninões e moçonas do fundo da classe.
Então – isto anos mais tarde, na Escola Ismênia – o Haroldo, da terceira série, acabou se beneficiando, mas não acreditou. É que ele todo ano abandonava a escola em outubro. Não sei por que motivo, sempre que o verão ia chegando o Haroldo pulava o muro e não aparecia mais. Voltava no começo do ano seguinte, para matricular-se de novo na terceira série. Pois aconteceu que o Haroldo tinha sumido de novo e, no começo do ano seguinte, eu decretei: O Haroldo passou para a quarta série, pode colocar na lista. Não veio fazer matrícula? Azar dele, tanto faz, vai para a quarta! Tive que ir até a casa dele, era janeiro. Contei: – Haroldo, você passou de ano! E ele: – Não, professor, não passei não. – Passou sim! – Não passei não... Mas ele acabou sendo convencido. Foi para a escola, frequentou a quarta série pela primeira vez na vida, de peito estufado. E passou para a quinta e não parou mais.
Portanto, não somos da cultura da reprovação não. Só achamos que, para passar de ano, precisa o aluno fazer força, conquistar a promoção como toda promoção precisa ser conquistada: com esforço, com empenho. E não de mão beijada, numa escola que não repete.

***
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
No livro “Aconteceu na Escola”
Imagem: Santa Catarina de Alexandria



[1] Tatá é a Professora Maria Apparecida dos Santos

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Ereção da Capela de Coruputuba


Importante por situar a data da inauguração e os motivos que levaram a família do Dr. Cícero da Silva Prado a erguer a capela.
Transcrição paleográfica de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

Dia 7 – Benção e inauguração da Capella de N. Senhora d’Appa
recida, no bairro de Coruputuba.
Às espensas do Sr. Dr. Cicero Prado, proprietário
das Fabricas de papel naquelle bairro, foi erecta uma
nova Capella, estylo Colonial, na parochia, em hon-
ra de Nossa Senhora d’Apparecida. Prendeu-se
tal gesto a um voto feito pela esposa do mesmo
Sr., pelo qual, si os exércitos ditatoriais, na Revolu-
ção de 32 não attingissem em armas tal bairro,
ali seria, em agradecimento a N. Senhora d’Apparecida,
erecta uma Egreja (para) piedade dos operarios das
fabricas. Com efeito. A ultima trincheira paulis-
ta, estendida ao longo dos bairros de Moreira Cesar,
Taipas, Sapucaia e Piedade, não chegou a ser uti-
lisada. A guerra cessou em Engenheiro Neiva,
entre Guaratinguetá e Apparecida. Não era possível
que a boa Mãe dos brasileiros, assistisse impassí-
vel a lucta de irmãos em briga, passando por
defronte de Sua Basilica. E a lucta cessou.
O ultimo quartel general Constitucionalista da frente norte,
foi precisamente no chalet residencia do Sr.
Dr. Cicero Prado. Ali se concertou o Armisticio,
com a reunião celebre dos generais paulistas, -
Andrade, Palimercio, Figueiras e Herculano de Carva-
lho .. de tristissima memória! A Egreja que,
desde 7 de janeiro de 1934 ali se ergue, ficará
portanto, como o marco milliario da investida dos
bandeirantes, contra os que não quiseram a lei na
pátria!..
O Rev Vigario celebrou a 1ª Missa, às 8 horas
dando Comunhão a mais de 100 pessoas, dos quaes
49 creanças, preparados pelas virtuosas Irmans vi-
centinas, fizeram sua 1ª Comunhão.
Celebrou a 2ª Missa às 10 ½ horas, aos opera-
rios, aos quaes pregou sobre o problema do opera-
riado em nossos dias e de como Só a S. re-
ligião o sabe resolver!
À tarde, às 5 ½ horas, organizou-se Solene
Procissão pelas alamedas da fazenda, com gran-
de acompanhamento de fiéis. Ao seu termo, o
Rev Vigario, novamente pregou à porta da Egreja.
O Sr. Dr. Cicero Prado offereceu a Egreja e terrenos adja-
centes (5 metros) à Curia Diocesana, como de direito,
para as provisões devidas. 

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Vermelho sobre negro


Quase uma hora da tarde. No meio da multidão de alunos, eu descia a ladeira da Bicudo Leme, sob o sol de verão, indo para o Instituto. O colorido das calças cáqui, das saias azuis, das blusas brancas com emblema, o falatório geral, as risadas, os gritos, tudo aquilo me deixava meio tonto, com vontade de não estar indo para a escola coisa nenhuma. A terceira série do ginásio não me alegrava.

O que me alegrava era ficar em casa, no quintal, debaixo das ameixeiras, cuidando dos animais, limpando o galinheiro, o chiqueiro, levando as cabras para pastar, arrumando os canteiros das verduras. Queria ficar olhando as gaiolas dos passarinhos, queria pegar numa vassoura e ir varrendo o caminho que passava entre as bananeiras e terminava lá no fundo, no muro da fábrica. Eu estava deprimido naquele ano, mas nem sabia o que era isto.

Algumas semanas antes, tinha ido à Imperial, para comprar as meias pretas e mais alguma coisa do uniforme. Tudo na conta da Companhia Cícero Prado, era o prêmio por ter tirado o diploma do primário em primeiro lugar. Só que, na hora de escolher as meias, um problema: a loja não dispunha de meias inteiramente pretas. As que comprei tinham três bolinhas vermelhas no punho. Mas isto ninguém ia ver, debaixo das calças cáqui.

Dobrei a esquina, junto com o rebanho de alunos. E todos foram diminuindo a marcha, havia um aglomerado junto aos portões: os inspetores estavam verificando os uniformes e recolhendo as cadernetas. Eu me sentia em paz: meu uniforme completo, minha caderneta no bolso. Podem me examinar, Seu Cacá, Seu Lula, Seu Gumercindo, Dona Toninha, Seu Mattos... Não vou perder a prova de hoje.

O Seu Lula me parou. Fui mostrando: “Está tudo certo, camisa com emblema, a calça cáqui, cinto preto, sapato preto, meia preta”. Mas então ele falou: “Levanta a perna da calça!”. Então lembrei do problema das meias, puxei para cima só um pouquinho a perna da calça. “Levanta mais! Quero ver a canela!”. Meu Deus do Céu, levantei mais um pouco e ele bradou triunfante: “Tem essas bolinhas vermelhas, não é meia do uniforme, não vai entrar”.

Argumentei, sem força. Pedi, mostrei que as bolinhas nem apareciam, só se alguém fosse arregaçar as minhas calças. Não adiantou, ele já me descartou de lado, o rebanho precisava passar. “Vou perder prova, Seu Lula!”. Ele nem respondeu, os colegas que entravam me empurravam para a calçada, sem querer: era a multidão. “Seu Lula, eu vim de Coru, vou perder aula, vou ter que voltar?” Mas ninguém deu atenção, fui embora.

Nem tinha ônibus do Seu Ciro naquele horário, tive que pegar o Pássaro Marrom, descer na estrada, no Portão de Coru, andar um trechão até chegar em casa. O Pedro estava lá, ele estudava de manhã. Começamos a consertar o telhadinho de sapé da casa da cabra. Deu tempo ainda de aproveitar o vento, empinar pipa com o Bosco. De noite, a Vó fez arroz com linguiça de lombo, bem fritinha.

*****

Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

quinta-feira, 27 de março de 2014

Falando caipira




Nós não nos considerávamos caipiras. Sim, falávamos barde, memo (em lugar de mesmo), falá, comê, trabessero, têia (do teiado, ué!), ocê, bonde no lugar de ônibus, ridico, cuié,  muié, tá, nóis tava. Mas não éramos caipiras que nem o pessoar da varge. Aquele pessoar sim, era caipira memo, uns jacu do mato. Os caipiras de verdade, no nosso entender, eram os que falavam num carece, em lugar de não precisa, entonce em vez de então e – o pior de tudo – falavam ponhá em vez de pôr. O ponhá, para nós, era o estigma derradeiro. Quando queriam provar que não eram caipiras ficava pior: faziam força para acertar e falavam galfo, malmita... Nós, os filhos do professor, querendo falar “Eles foram varrer o quintal porque estava muito sujo e nós fomos também”, falaríamos “Eles fôro varrê o quintar porque tava muito sujo e nóis fomo tamém”.  Já os caipiras do fundo da varge diriam “Êzi fôro barrê o quintar a mode que tava munto xujo e nóis fumo tamém”. Eram diferenças fundamentais, acreditávamos.
A escrita nos salvou de continuar falando daquele jeito. Escrever, a gente escrevia certo. Ainda mais no Ginásio, quando comecei a prestar mais atenção na minha fala e aos poucos fui perdendo a caipirice do jeito de falar. Se bem que em casa e no bairro mantive, como uma espécie de resistência e saudosismo, na medida do possível, o meu linguajar costumeiro, como um bilíngue. Quando comecei a trabalhar em dois lugares ao mesmo tempo, na escola e na fábrica, falava de um jeito com as professoras e alunos e de outro jeito com a peãozada.
Tentei transformar meus aluninhos do Rio Abaixo em cidadãos bilíngues. A intenção era torná-los capazes de usar a forma culta sem desprezar o seu riquíssimo linguajar coloquial. E sem misturar. Porque misturando dá confusão. Com todo o respeito, não podemos desejar que numa casa caipira as crianças de escola usem o linguajar culto no seu dia a dia. Presenciei um garoto, que decerto queria estrear as novidades aprendidas na escola, falando para sua avó: Vou pegá as telha.
E a avó: Pegá  o quê, minino?
O neto, sério: As telha.
E a velha, no máximo do deboche: Que isso, “telha”? Que “telha”? Fala direito, sua besta: é têia, viu, é têia... minino bobo... inventano moda...
Trabalhando com os alunos da primeira série, certa vez forneci uma folha mimeografada com quatro grupos de figuras. Em cada grupo uma figura estava completa e as outras sofriam a falta de algum elemento do desenho. O Rubens embatucou num dos desenhos. Olhava, olhava e não atinava com o que estaria faltando. Fui ajudar: Este coelhinho está completo? Não falta nada nele?
E o Rubens examinando, examinando... – Escuta Rubens: este coelho tem orelha? E ele: – Tem...
E assim fui, perguntando, dando voltas, para não mostrar direto o que estava faltando, que era justamente o olho: no desenho do coelhinho, de perfil, faltava o olho. Mas o Rubens não se resolvia. – Rubens, este coelho tem olho? E o Rubens, incrível, fez que sim, e falou: – Tem. Então entendi. E perguntei: Rubens, este coelho tem zóio?
Heureca! Imediatamente o Rubens desenhou o olho do coelho.
*****

Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Na obra: ACONTECEU NA ESCOLA
Edição do autor – Pindamonhangaba
224 páginas; 21 cm
ISBN 978-85-913453-0-4
1. Educação. 2. Docentes. 3. Formação de Docentes
Contato com o autor: paulotarcizio@gmail.com

sábado, 15 de março de 2014

Lecionando para soldados - 1967

Levei para a Escola Regimental do quartel o mesmo jeito das minhas aulas no Grupo Escolar. Substituindo o Professor Ivan Vizaco durante seis meses, fui lecionar para os soldados que não tinham completado o primário. Ainda engatinhando na profissão, fui ser colega de mestres já consagrados: os professores Augustinho Ribeiro e Rubens Zamith. Meus alunos eram rapazes de dezenove anos – e eu tinha vinte. A minha pouca idade, que na escola primária tinha sido um problema angustiante, no quartel nada significou. Eu usava cabelo curto, a sentinela batia continência, decerto pensava que eu fosse um dos aspirantes.

A disciplina era perfeita. A classe, de quarto ano, tinha uns vinte alunos, todos interessados em aprender, inclusive para poder seguir carreira, prestar exame para cabo. E ninguém podia faltar. Toda noite, ao sair da aula, eu devia entregar ao oficial do dia a lista de presença. Do mesmo modo como meu pai tinha que fazer quando dava aula para os adultos da fábrica em Coruputuba. Só que, no quartel, quem tivesse faltado às minhas aulas pegava um dia de cadeia. 

Com esses alunos, o meu jeito de dar aulas começou a melhorar. Fui incluindo o debate, a troca de informações, eles tinham coisas para contar e queriam contar, e respeitavam a vez de falar uns dos outros. Não cheguei à ousadia de dar trabalhos em grupo, bem que poderia, as mesas do refeitório seriam boas para isto, não estavam parafusadas no piso... Mas dar tarefas a um grupo de alunos e ficar supervisionando – isto, na época e, ainda mais, no quartel, imaginei que poderia ser considerado uma espécie de matação de aula.

 Durante os debates, comecei a perceber que a participação dos alunos não era perda de tempo, tornava a aprendizagem mais fácil e mais significativa. José, um rapaz alto e magro, vindo da zona rural de Lorena, relatava as experiências da vida rural, da faina diária de tratar das vacas e da plantação. Outro jovem, motorista do quartel, narrava as viagens que fazia a serviço, contou-nos sobre a atuação do Exército por ocasião da tromba d’água de Caraguatatuba. 

Assim, todos iam aprendendo Geografia, História e Ciências baseados um pouco na lousa e um pouco nos testemunhos dos colegas. Se bem que, no fundo, parecia que eu estava meio que perdendo um poder, o de dominar todas as cenas da classe: quando um aluno falava, os outros ficavam olhando para ele, dava uma espécie de ciúme... Mas, no final do ano, já tinha percebido: aluno e professor, um não existe sem o outro. Foi esta a primeira turma para quem entreguei diplomas de conclusão de curso.

Meses depois, numa das ruas da cidade, cruzei com um militar comprido, magro, que me cumprimentou e parou para conversar. Era o José, de Lorena. Tinha feito o exame para cabo e foi aprovado. Ia seguir carreira. Disse que muita coisa que aprendeu nas nossas aulas caiu no exame. Agradeceu tanto, tão contente, que comecei a sentir que eu já estava virando mesmo um professor, ia ser que nem o Papai. 

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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Na obra: ACONTECEU NA ESCOLA
Edição do autor – Pindamonhangaba
224 páginas; 21 cm
ISBN 978-85-913453-0-4
1. Educação. 2. Docentes. 3. Formação de Docentes
Contato com o autor: paulotarcizio@gmail.com

Foto: Professor Eduardo Guaycuru San-Martin


sábado, 8 de março de 2014

A menina e o golpe militar



Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira
Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio
Nem a armadura das palavras.
Thiago de Mello


Nunca acreditei que tenha sido em 31 de março. Para mim, foi uma revolução de primeiro de abril. Na verdade, um golpe militar. Mas nós professores, durante décadas intermináveis, éramos obrigados a comemorar a “Revolução de 31 de Março”. E não comemorássemos para ver as consequências...
Na noite em que a coisa aconteceu, minha mãe chorou ao lado do rádio. Eu e meus irmãos em volta... E desde o primeiro momento já tínhamos a claríssima noção de que era ilegalidade aquilo que estava sendo perpetrado.
Moços da roça, muito pobres, todos os dias indo para a cidade estudar... Tínhamos uma esperança tão sincera, tão singela, com relação ao governo do Jango... A esperança foi arquivada naquela noite, em 64, com minha mãe chorando perto do rádio.
Terminei a Escola Normal, comecei a lecionar e me tornei efetivo.
Em 71, lecionando no Porto Novo, em Caraguatatuba, eis que vinha chegando mais um trinta e um de março e eu era obrigado a explicar para a minha quarta série alguma coisa sobre a data. Difícil, porque não queria embarcar na propaganda oficial, nem podia dar abertamente a minha opinião sobre a tramoia.
Mas alguma coisa eu precisava falar porque os militares de São José dos Campos cobravam de nós, do litoral, um concurso de redações sobre a “revolução redentora” ...
Linda manhã de sol, era tão bonita a paisagem que se avistava pelas janelas da minha sala de aula, a escola com fundos para a vegetação da Praia das Palmeiras... E eu falando para meus alunos: Os militares tiraram o Jango... O Jango queria implantar o comunismo etc.
Maria levantou o dedo: Professor, o que é comunismo?
Que dificuldade! Para falar de comunismo eu queria falar de Cristo e dos índios brasileiros. Mas as metralhadoras e os paus de arara preferiam que eu falasse de Marx, União Soviética, Cuba, China, Diabos e Demônios. Fui pronunciando as frases, palavra por palavra, tateando no solo minado.
Está bem, então agora escrevam pelo menos uma página sobre a revolução de trinta e um de março. A Diretora já estava batendo na porta cobrando as redações: “Rápido, vão levar hoje para a Delegacia de Ensino e de lá para São José. Põe neste envelope, escreve o nome do professor, a classe, a escola, vamos, vamos, que é o último dia do prazo”.
Meu Deus! Não dá tempo de corrigir direito. Mas enfiei de novo a mão no envelope e puxei algumas redações (vamos por amostragem, tomara que não tenha muito erro de Português, não podemos envergonhar a escola...). A da Maria começava assim:

Os militares tiraram o João Goulart do poder porque ele queria pôr o comunismo no Brasil. Que bom se começasse o comunismo! Meu pai tem muita vontade de ter uma terra para ele plantar, eu também queria que ele tivesse uma roça que eu gosto de trabalhar com a terra. Mas o meu pai nunca vai poder comprar um sítio, que nós somos pobres. Se entrasse o comunismo no Brasil o meu pai ia poder ter uma terra para a nossa família viver, não precisava mais a gente pagar aluguel (...)

A letra era bonita, redondinha. Quase nenhum erro de ortografia, a concordância toda certinha. Mas aquela redação não poderia subir a Serra do Mar, não poderia dar entrada num quartel lá de cima, no Vale do Paraíba. Aquelas linhas inocentes, assim que fossem lidas pelos militares do CTA, iam pôr em movimento um eficaz sistema de repressão. Em vez de ganhar um pequeno prêmio, a redação da minha aluna ia disparar desgraças para todos: para ela, para sua família, para mim e meus colegas, até para a diretora chata, que nos perseguia... O próprio sossego do bairro seria de alguma forma afetado. E a manhã do Porto Novo estava tão linda, os coqueiros balançavam de leve no vento, os meus alunos tão bonitos com seus uniformes limpinhos...
O envelope foi para a diretoria, mas ficou na minha gaveta a redação da Maria. A diretora não teria mesmo tempo de conferir se estava faltando alguma. Na hora do recreio piquei bem miudinho aquela página tão sincera e tão bem escrita. Piquei, piquei, olhando para as minhas mãos de educador e tendo uma espécie de nojo daquilo que elas estavam fazendo.
Alguns anos depois eu me tornei diretor de escola e, desde o meu primeiro trinta e um de março como diretor, já decretei: Acabou, nós não vamos nunca fazer festa nessa data maldita.
Mas aí já nem era heroísmo nenhum, estávamos em 79 e o regime apodrecia. Difícil mesmo seria ter agido com tanta independência no ano de 71, lá no Porto Novo.
Durante algum tempo ainda, de vez em quando a Maria perguntava: E daí, Professor, aquele concurso de redação, o que que deu lá, não sabe quem que ganhou...?

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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Na obra: ACONTECEU NA ESCOLA
Edição do autor – Pindamonhangaba
224 páginas; 21 cm
ISBN 978-85-913453-0-4
1. Educação. 2. Docentes. 3. Formação de Docentes
Contato com o autor: paulotarcizio@gmail.com

terça-feira, 4 de março de 2014

O Club Republicano de Pindamonhangaba


VERBETE: Pindamonhangaba, 10 de abril de 1881. Ata de instalação – e mais duas atas subsequentes - do Club Republicano de Pindamonhangaba, na residência de João Marcondes de Oliveira Cabral. Importante por revelar que a instalação se deu bem antes da data noticiada por Athayde, que a coloca em 29 de julho de 1888. Fonte: Acervo do Museu Histórico e Pedagógico Dom Pedro I e Dona Leopoldina. Pesquisa e transcrição paleográfica do Dr. Paulo Tarcizio da Silva Marcondes.
FÓLIO 1

Acta  ǀ1
Aos dez de abril de mil oitocentos e oitenta e um, ǀ2
n’esta cidade de Pinda monhangaba, pelas oito ho- ǀ3
ras da manhã, nas casas de residencia de João Mar- ǀ4
condes de Oliveira Cabral, ahi reunidos os cidadãos ǀ5
republicanos: Dor. Carlos Lessa, Dor.José Manoel ǀ6
da Costa França, Dor. José Fortunato da Silveira Bulcão, ǀ7
Dor. Gustavo de Godoy, Dor. José Vieira Marcondes, Dor. ǀ8
Daniel Rezende, Dor. Francisco Moisés, o Coronel ǀ9
José Antonio Fernandes Villela, o Cap. Antonio Galvão ǀ10
de  França Costa, o Cap. João Antonio Marcondes Mon- ǀ11
teiro, Bento José de M. Marcondes, João Cabral, João Ma- ǀ12
rio, Pedro Arnaud Rezende, Olavo Rezende, João Martins ǀ13
da Silva, João Baptista de Carvalho, Paulo Orozimbo ǀ14
de Azevedo, Alfredo Marcondes, José de Sousa Reis Junior, ǀ15
e Alvaro Pestana, foi por proposta do Sr. Dr. Bulcão a- ǀ16
clamado Presidente interino o Sr. Dr. Costa França, o ǀ17
qual, abrindo a meza, indicou o cidadão Dr. Carlos Lessa ǀ18
para o substituir que foi unanimemente approvado, ǀ19
passando o novo eleito a ocuppar seu logar e convidan- ǀ20
do para assumir os logares de secretários aos cidadãos ǀ21
Dor. Bulcão e Alvaro Pestana. ǀ22
Forão apresentados dois officios, um do cidadão Tristão ǀ23
da Costa Rezende e outro do Dor. Marinomio de Brito com- ǀ24
municando á assembléa que, por motivos de saúde, ǀ25
deixavão de comparecer á reunião, mas que adherião ǀ26
ás resoluções da mesma e desejavão ser conside- ǀ27
rados como membros installadores do Club Re- ǀ28
publicano d’esta cidade. Forão ambos approvados. ǀ29
Em seguida o Sor.Presidente disse que a presente reunião ǀ30
tinha por fim eleger o Directorio do partido republicano d’esta ǀ31
cidade e a nomeação de delegados ao Congresso Republi- ǀ32
cano que terão de se reunir brevemente na Capital da ǀ33


FÓLIO 2

FÓLIO 2
da Província e convidava aos cidadãos presentes á votarem em ǀ1                             
um Presidente, secretario e tres delegados que representem o parti- ǀ2
do. Procedendo-se á eleição, verificou-se que obtiverão votos pa- ǀ3
ra Presidente, os seguintes cidadãos: Dor. Carlos Lessa, nove votos; ǀ4
Dor Gustavo de Godoy, sete votos; Dor Bulcão, tres; o Coronel Villela, ǀ5
um. Para secretario foram votados Alvaro Pestana com desessete  ǀ6
votos, Dor Bulcão um, Dor Gustavo, um, Bento Marcondes, ǀ7
um voto. Correndo o escrutinio para a eleição de delegados  ǀ8
ao Congresso, obtiverão votos os cidadãos: Dor Gustavo de Godoy, ǀ9
dezeseis votos; Dor Bulcão, 13, e Dor Mario 13 votos e ou-  ǀ10
tros menos votados. ǀ11
Uzando da palavra o Sr. Dor Bulcão e depois de aduzir diversas  ǀ12
considerações no sentido de tornar bem explicita a missão  ǀ13
do partido republicano nesta cidade, concluiu mandando á  ǀ14
meza para ser inserida na acta uma declaração, que de-  ǀ15
pois de ligeira discussão, quanto á redacção, em que to-  ǀ16
marão parte os cidadãos Dor Gustavo de Godoy e Dani-  ǀ17
el Rezende ficou assim concebida: Os abaixo assignados  ǀ18
considerando que o elemento democratico e a forma de Re-  ǀ19
publica Federativa é a unica  compativel com as circuns-  ǀ20
tancias, indole e necessidades dos americanos brasileiros, ǀ21
resolverão adherir ao partido republicano brasileiro, ap-  ǀ22
provando a organisação do mesmo partido nesta  ǀ23
provincia, cujos manifestos adopta e com cuja comis-  ǀ24
são permanente vai se pôr em relação enviando esta  ǀ25
declaração inserida na acta de instalação do Club.,, ǀ26
Assim se reiniciando[?], pelo mesmo Sr. Dor Bulcão foi mais  ǀ27
indicado e unanimemente approvado, que todos a-  ǀ28
queles que subscreverem a presente acta, embora não es-  ǀ29
tivessem presentes á reunião do partido, serião Considerados  ǀ30
como installadores do Club republicano nesta Cidade. ǀ31
Por proposta do Sr Dor Bulcão foi mais resolvido que o Sr. ǀ32
Presidente ficasse autorisado a nomear uma comissão de dois mem-  ǀ33


[FIM DO FÓLIO 2 – NÃO FOI ENCONTRADA A SEQUÊNCIA DESTA ATA]


FÓLIO 3

Acta ǀ1
Aos vinte e cinco de Julho de mil oitocentos e oitenta e ǀ2
cinco, n’esta cidade de Pindamonhangaba, nas cazas ǀ3
de residencia do cidadão Alvaro Pestana, onde se achavam ǀ4
reunidos os cidadãos republicanos: Dr. José Fortunato ǀ5
da Silveira Bulcão, Coronel José Antonio Fernandes Villela, ǀ6
Dr. Daniel Rezende, Bento José de Moura Marcondes, João ǀ7
Martins da Silva, João Baptista de Carvalho e Álvaro Pesta- ǀ8
na, foi aberta a sessão. ǀ9
N’essa, por proposta do Dr. Bulcão, foi rezolvido que se ǀ10
adoptasse para candidato do partido, á assembléa provin- ǀ11
cial de S. Paulo, por este 3º Distrito, o nome do cidadão ǀ12
Dr. Licurgo dos Santos, e que se levasse ao conheci- ǀ13
mento da Commissão Executiva,  visto ter o Congresso Repu- ǀ14
blicano conferido á aludida Comissão poderes para ǀ15
dirigir o pleito eleitoral. ǀ16
Quanto á indicação de um segundo nome para ser ǀ17
aprezentado  ao eleitorado, o club republicano d’esta cidade ǀ18
deixa de fasel-o, aceitando aquelle que pela Commissão ǀ19
Permanente fôr escolhido. ǀ20
Foi mais assentado, que se remettesse copia da ǀ21
presente acta ao [sic] respectiva Comissão para os devi- ǀ22
dos effeitos. ǀ23
Nada mais havendo á tratar-se foi encerrada ǀ24
a sessão. E para constar lavrei a presente acta ǀ25
que vae subscripta pelos cidadãos presentes, por ǀ26
mim, Alvaro Pestana, servindo de Secretario, que a ǀ27
escrevi. ǀ28


FÓLIO 4

Acta ǀ1
Aos 29 de Julho de 1888, n’esta cidade de Pinda- ǀ2
monhangaba, no salão do Theatro, ao meio ǀ3
dia, prezentes os cidadãos abaixo assignados, ǀ4
e sendo autorisado para prezidir a reunião o ǀ5
cidadão Commendador Ignacio Marcondes ǀ6
Romeiro, que passou a ocuppar a prezidencia ǀ7
e convidou para primeiro Secretario o Dr. Gusta- ǀ8
vo de Godoy e para segundo Alvaro Pestana, ǀ9
e assim constituida a meza provizoria, pelo ǀ10
Prezidente foi dada a palavra ao Dr. Gustavo, ǀ11
que expôz os fins da reunião, e depois de ǀ12
uma discussão de ordem sobre a forma das ǀ13
deliberações passou-se a , digo deliberação, fi- ǀ14
cando assentado que todos quantos assig- ǀ15
nassem a esta acta importam adherirǀ16
as ideias republicanas e ao programa ǀ17
do partido republicano paulista, passan- ǀ18
do a eleição do Directorio, que deu o se- ǀ19
guinte resultado: Comm[menda]dor Ignácio Mar- ǀ20
condes Romeiro, Dr Gustavo Godoy, Dr. ǀ21
Bulcão, Dr. Espindola e Alvaro Pestana. ǀ22
Em conseqüência de uma indicação do Dr. ǀ23
Bulcão que foi unanimemente approvada, ǀ24
ficou o Diretório encarregado de confec- ǀ25
cionar os Estatutos do Club Republicano ǀ26
local. Nada mais houve . Eu, Al- ǀ27
varo Pinto Rebello Pestana, a escrevi. ǀ28
            x Ignácio Marcondes Romeiro ǀ29
            x Dr. Gustavo de Oliveira Godoy ǀ30
            x Alvaro Pestana ǀ31
            x José Fortunato da Silveira Bulcão ǀ32
            x Ma[no]el Thomaz Mar[con]des Sousa ǀ33

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Fonte: Acervo do Museu Histórico e Pedagógico Dom Pedro I e Dona Leopoldina, de Pindamonhangaba
Pesquisa e transcrição paleográfica do Dr. Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
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Na reprodução, favor fornecer os créditos de fonte e de transcrição paleográfica.